Apesar de dispor dos maiores mananciais de água doce do mundo, a região Norte do país é a que apresenta menos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. A realidade expõe às comunidades a riscos de contrair doenças por veiculação hídrica, como diarreias e verminoses, que constituem as maiores causas da mortalidade infantil na região, devido à falta de intervenção rápida e adequada.
Neste contexto, é que surge o Projeto Saúde e Alegria* (PSA). Desde 1987, a iniciativa implementa programas de desenvolvimento comunitário nas áreas de saúde, organização comunitária, educação, cultura e comunicação para melhorar as condições de vida do povo da Amazônia e fortalecê-lo, para que continue a produzir de maneira sustentável.
Nesta entrevista, com Carlos Dombroski, técnico em organização comunitária, você vai conhecer o programa Saúde na Várzea, desdobramento de outro programa do PSA: o Saúde na Floresta. O programa vem trazendo vários impactos positivos à vida das comunidades, principalmente pelo acesso à água tratada e à melhoria das condições sanitárias.
Mobilizadores COEP – O que a água representa para o povo da Amazônia?
R.: Tudo. A vida da Amazônia está diretamente ligada às águas; podemos até definir o povo da Amazônia como o povo das águas. Os rios, igarapés, lagos e igapós são suas estradas e ao mesmo tempo a maior fonte de seus alimentos, e subsistência. É o regime das águas, através das enchentes e das vazantes, que norteia a vida na região, dita o ritmo de vida das populações que moram nas suas margens.
Mobilizadores COEP – Como as mudanças climáticas vêm afetando os rios da região e, consequentemente, a vida das comunidades ribeirinhas?
R.: Nesses últimos anos, deu para observar algumas variações nos ciclos naturais. Verões mais prolongados e invernos curtos e menos chuvosos estão produzindo mudanças no ciclo natural do clima amazônico. Grandes enchentes e grandes secas, cada vez mais próximas umas das outras, estão afetando, além da flora e da fauna, a vida e a produção da população amazônica. Em 1995, por exemplo, houve uma grande seca dos rios da Amazônia, que deixou muitas comunidades isoladas. Já em 2009, a população vivenciou uma grande enchente, com os rios atingindo a marca de mais de 9 metros, alagando e destruindo várias casas na região da várzea, onde as comunidades já calculam uma altura adequada para as moradias.
Estas mudanças também estão causando a perda da vegetação de mata ciliar [formação vegetal localizada nas margens dos nos, córregos, lagos, represas e nascentes] prejudicando todo o ecossistema [conjunto de todos os seres vivos que vivem e interagem em determinada região] local. Dentre outras coisa, a mata ciliar é uma proteção natural contra o assoreamento [depósito de sedimentos nos leitos dos rios]; sem ela a terra é levada para dentro do rio, tornando-o barrento e impedindo a entrada de luz solar, prejudicando, assim, os peixes e toda forma de vida aquática e, consequentemente, a alimentação da população ribeirinha.
Além disso, são mudanças que favorecem a ocorrência de viroses e doenças infecciosas. [De acordo com o Programa Ambiental das Nações Undias, o aquecimento global e as mudanças ambientais estão acelerando a proliferação de doenças. Pesquisas revelam, por exemplo, que 6% de todos os casos de malária dos últimos 25 anos têm sido causados pelas mudanças climáticas].
Mobilizadores COEP – Como são as condições de água para consumo na Amazônia?
R.: Pela ausência de tratamento das águas e saneamento básico, o consumo das águas torna-se perigoso, trazendo consigo a possibilidade de doenças. Na região, em muitos lugares a captação da água para consumo é feita diretamente dos rios e igarapés. Nas áreas rurais e ribeirinhas, as famílias constroem poços 'cacimbas' [poços escavados, de pequena profundidade, que exploram água proveniente do lençol freático* e/ ou fontes] sem nenhum controle de qualidade, enquanto no setor urbano não existe fiscalização, e grande parte da população sofre com a falta de abastecimento, consumindo por consumir água de procedência não confiável.
Mobilizadores COEP – Quais as principais doenças causadas por água contaminada na região? Populações de que faixa etária são mais atingidas?
R.: Principalmente, diarreias, dermatoses e parasitoses. Os mais suscetíveis são crianças e idosos.
Mobilizadores COEP – O que é o programa Saúde na Várzea? Desde quando é implementado e quais suas principais linhas de ação?
R.: O “Saúde na várzea” é um desdobramento do programa “Saúde na Floresta*”, executado pelo projeto Saúde e Alegria (PSA) na região dos Rios Tapajós e Arapiuns. Suas ações são voltadas para as comunidades localizadas nas regiões de várzea, formadas principalmente pelo Rio Amazonas, que ficam alagadas durante toda a época da cheia.
O “Saúde na Floresta” contempla uma série de ações que, desde 2003, vêm sendo desenvolvidas no sentido de buscar a melhoria das condições sanitárias dos ribeirinhos. A implantação de poços semiartesianos [um sistema de bombeamento manual da água do poço perfurado], bem como microssistemas de água, e a disponibilização de filtros de água e pedras sanitárias [que vedam o buraco da fossa cavada e interrompem o ciclo de contaminação] são alguma das atitudes encontradas pelo programa para auxiliar no desenvolvimento sanitário e seus desdobramentos na região.
O saneamento é uma das maiores preocupações do PSA. Para estimar a qualidade de vida de uma população, não podemos prescindir de dados do seu sistema sanitário. Sabe-se que serviços de saneamento básico prestados de forma adequada garantem melhorias nas condições de vida de uma população.
Mobilizadores COEP – Em quais comunidades é implementado o programa?
R.: No município de Juruti (PA), especificamente na Ilha de Santa Rita, no meio do Rio Amazonas. Após um diagnóstico da situação socioambiental no local, iniciamos os trabalhos para a implantação de um projeto piloto de saneamento básico. Juntamente com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e a Colônia de Pescadores, e em parceria com a prefeitura, estamos finalizando a implantação de um sistema de abastecimento de água e de fossas sanitárias, atendendo a quatro comunidades que habitam a Ilha: Barra; Santa Rita; São Sebastião; e São Francisco.
Mobilizadores COEP – Fale um pouco mais sobre as tecnologias sociais que o Saúde na Várzea implementa junto com as comunidades?
R.: São alternativas baratas e de fácil implementação. O microssistema capta a água de poço profundo, abaixo do leito do Rio Amazonas, e incorpora no seu reservatório a distribuição do cloro (hipoclorito) na rede de distribuição. Um poço semiartesiano, cavado entre 24 e 40 metros, com bombeio manual e revestido com tubulação Geomecanico (padrão recomendado pelo Ministério da Saúde) pode abastecer de 5 a 30 famílias e tem um custo de R$ 2.700,00, incluindo material e mão de obra. Os filtros são distribuídos como mais uma garantia da qualidade da água para todas as famílias.
As pedras sanitárias, que custam em média R$ 34, 66 por família, são construídas, adequando-se ao regime das águas. Podem ser usadas durante o ano todo, independentemente da seca ou da cheia, e possibilitam o tratamento dos dejetos, evitando assim doenças como a diarréia. É um dos produtos que trabalhamos mais no programa. A pedra sanitária é uma opção higiênica e prática para cobrir a fossa seca que é o buraco feito no solo para colocar os dejetos, e é construída em terra firme. A pedra tem piso de cimento para impermeabilizar corretamente as fossas e sua medida é 1 metro de largura por 105 de comprimento. Em cima dela, é construída uma casinha de madeira, feita de cimento, areia, piçarra ou seixo e varas de ferro. O valor para construir uma pedra e de R$ 34,66 por família.
Já afossa sanitária / fossa de fermentação ou estanque é um modelo mais sofisticado, adequado para área de Várzea. Para construção, usa, 250 tijolos, 3 sacos de cimento, areia, ferro, seixa. Pode ser usada por até cinco pessoas, com limpeza anual no período da cheia do rio. Para construir uma fossa sanitária, gasta-se, em média, R$ 594,00.
Além disso, para colocar cloro na água, cada família tem um custo de R$0,07. Ou seja, medidas bem viáveis na região.
Mobilizadores COEP – Como as comunidades são capacitadas para se organizar e elas mesmas gerenciarem e darem continuidade às atividades implementadas?
Todo trabalho e instalação destas tecnologias são desenvolvidos com a participação ativa da comunidade em cada uma das etapas: compra de material; transporte; desembarque; e construção, pois a proposta é a comunidade apropriar-se dos conhecimentos de manutenção e gestão de todo o sistema.
São realizadas, em parceria com a Funasa, oficinas comunitárias de mobilização voltadas à saúde e ao saneamento, através do uso do lúdico e do conhecimento da população tradicional, preservando seus costumes, culturas e tradição.
Após as capacitações sobre o uso e a gestão da infraestrutura implantada, parte-se para a elaboração e aprovação do Regimento, que define direitos e deveres dos usuários. Posteriormente, há a escolha da comissão intercomunitária encarregada da gestão e manutenção do sistema.
Mobilizadores COEP – Que impactos o programa vem trazendo à vida das comunidades?
R.: Posso citar a mobilização comunitária no sentido de fortalecimento dos valores coletivos e de cidadania e a diminuição significativa das doenças ligadas ao consumo impróprio de água. Vale ressaltar a queda na taxa de mortalidade infantil
Mobilizadores COEP – Quais os principais desafios para o futuro?
R.: Que o programa se torne um modelo de saúde e saneamento para as demais regiões da várzea.
———————-
*O Programa Saúde na Floresta atende 143 localidades situadas principalmente na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, na Floresta Nacional do Tapajós e áreas de entorno, priorizando a melhoria das condições de higiene e saneamento das comunidades.
** Parte da água, proveniente de chuvas, de rios, de lagos, ou derretimento da neve, infiltra-se no solo ocupando, juntamente com o ar, o espaço entre os fragmentos que o compõe. Esta água constitui o chamado lençol freático.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
Entrevista publicada originalmente em abril de 2010.