Êda Luiz, coordenadora pedagógica do Centro de Integração de Jovens e Adultos (Cieja) Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, começou a lecionar com apenas 15 anos. Foi professora durante 36 anos, diretora, coordenadora, auxiliar, se formou em pedagogia aos 48 anos, e aos 60 fez especialização em Educação de Jovens e Adultos.
Êda está implantando um modelo de escola democrática: um espaço educativo aberto à comunidade, onde as pessoas são respeitadas. O Cieja surgiu com a proposta de atender alunos excluídos da educação: estudantes que haviam sido expulsos de outras escolas, alunos que simplesmente não encontravam vagas, pessoas com deficiência sem escolas adaptadas, meninos e meninas que cumpriam medidas socioeducativas e dependentes químicos que esperavam encontrar um lugar onde fossem bem-vindos.
Para ela, os estudantes têm diferentes demandas, por isso é preciso construir uma escola que seja flexível e uma educação que dialogue com a realidade das pessoas. Nesta entrevista, ela fala sobre educação inclusiva.
Mobilizadores Coep – Desde quando a senhora atua na área de educação? Como começou?
R.: Eu comecei como professora em 1966 e passei por diversas escolas, antes de começar a atuar como coordenadora pedagógica na educação voltada para jovens e adultos. Já fui diretora, coordenadora, professora da sala de informática, enfim, construi uma carreira trabalhando com diferentes realidades até chegar a ser coordenadora geral do Cieja Campo Limpo, onde trabalho atualmente.
Mobilizadores Coep – O que é o Centro de Integração de Jovens e Adultos (Cieja), quando foi criado e com que objetivo?
R.: Em 2002, a prefeitura de São Paulo extinguiu os antigos Centro de Estudos Municipais de Ensino Supletivo (Cemes), transformando-os em Ciejas. Nesta época, eu assumi o cargo de coordenadora pedagógica da unidade do Campo Limpo. Foi quando houve uma reorganização do currículo destas escolas, com o objetivo específico de atender jovens e adultos. Passamos a trabalhar com horários diferenciados e com áreas de conhecimento em vez de disciplinas, trazendo para dentro da escola as necessidades dos alunos. Durante todo o período ? manhã, tarde e noite – acontecem as aulas modulares, que trabalham as áreas de ciências humanas, ciências da natureza, ciências sociais, e códigos e linguagens.
Mobilizadores Coep – Como é seu trabalho do Cieja Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. Que tipo de atividades tem implantado lá?
R.: Nosso trabalho aqui é para atender o ensino fundamental, alunos do 1º ao 5º ano e também do 6º ao 9º. O Centro Integrado tem um diferencial que valoriza o currículo daqueles que aqui estão: implantamos aulas de informática básica que atuam não só para a qualificação profissional como também na vida pessoal; aulas de linguagens específicas como o braile e libras. Promovemos, todas as sextas-feiras, oficinas de capacitação, com a possibilidade de gerar emprego e renda, de acordo com as necessidades dos alunos e da comunidade. Para o ano que vem, teremos aulas de inglês e comunicação midiática, curso que vai ajudar nossos alunos a dialogar com as mídias hoje tão presentes na realidade de todos: rádio, comunicação através de vídeos, internet e redes sociais.
Mobilizadores Coep – Quais as principais especificidades da Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Em que pontos precisamos avançar para melhorar a qualidade da EJA no Brasil?
R.: Jovens e adultos necessitam de um currículo específico, que atenda às suas necessidades de trabalhar e de estudar, que se aproxime da sua realidade, que entenda seus anseios. A partir do momento em que o governo federal passou a destinar verbas específicas para a EJA, avançamos no sentido de promover a capacitação de profissionais mais aptos a lidar com este público, criamos espaços mais adequados. Ainda precisamos avançar mais no sentido de dar liberdade a estes alunos que não precisam de limites, como crianças e adolescentes: jovens e adultos estão na escola porque escolheram, e se faltam as aulas é por necessidade.
Mobilizadores Coep – Qual o modelo ideal de educação na sua concepção? Que aspectos ele deve envolver?
R.: O modelo ideal de educação para mim dialoga com a realidade dos alunos. Os alunos são protagonistas de uma escola e eles têm que ser parte atuante deste ensino que vai transformar e melhorar a sua realidade. O educador deve conhecer a realidade de seus alunos e, a partir daí, construir o conhecimento e dar instrumentos para que estes alunos possam ser capazes de transformar a realidade de sua comunidade.
Mobilizadores Coep – Como as escolas deveriam atuar para promover uma educação mais inclusiva?
R.: Devemos conhecer as particularidades de cada um, entender as necessidades de cada aluno, mas todos devem ser tratados com educação e respeito. A educação inclusiva é aquela que abraça o aluno, respeitas as suas necessidades, mas também considera todos os outros desta mesma maneira. As escolas precisam ter uma gestão mais participativa, abrindo seus espaços para a comunidade e trabalhando seus anseios.
Mobilizadores Coep – Como conciliar necessidades tão diversas quanto de pessoas com deficiência, meninos e meninas que cumpriam medidas socioeducativas e dependentes químicos? É possível atender bem esses diferentes públicos num mesmo espaço? De que forma?
R.: Colocando todos estes alunos como protagonistas e detectando suas necessidades, isso se torna possível. Temos aqui no Cieja uma política de atendimento diferenciado: cada aluno que chega é ouvido ? é o que chamamos de ?registro de observação humanizado?. Todos os profissionais que atuam aqui dentro estão aptos a ouvir, a identificar e a trabalhar as necessidades dos alunos, através de esclarecimentos e orientação.
Para citar alguns exemplos, trouxemos as mães daqueles alunos que são dependentes fisicamente de seus cuidados e as orientamos no sentido de deixar uma substituta registrada, caso aconteça delas faltarem algum dia, já que muitas têm idade avançada. Fomos ao cartório e elas nomearam tutores para seus filhos. Também detectamos a necessidade de se trabalhar a orientação sexual para os alunos e convidamos uma profissional de saúde para realizar uma palestra sobre o tema.
Mobilizadores Coep – A senhora defende que a escola seja aberta para todos. O que quer dizer com isso?
R.: A escola é pública, feita para todos. Temos que construir uma escola que seja agradável, que as pessoas se sintam bem e protegidas, onde exista o respeito. Quanto mais fechada é uma escola, mais os problemas ficam presos dentro dela e não são resolvidos.
Mobilizadores Coep – Como deve ser a integração do ambiente escolar com a comunidade onde está inserida? O que é preciso fazer para melhorar essa integração?
R.: É preciso colocar a comunidade como parceira, formando uma rede, uma espécie de integração. Aqui, temos um mapeamento da região e tudo o que pode ser oferecido. A partir daí, trabalhamos as nossas carências com a ajuda de profissionais do nosso entorno e vice-versa. Quando vamos realizar alguma oficina ou quando precisamos dar orientação sobre higiene bucal, por exemplo, convidamos o dentista do posto de saúde aqui perto para dar esclarecimentos. Outro dia, o banco de sangue da comunidade estava precisando de doadores, então chamamos um profissional que orientou os alunos e quebrou mitos sobre a doação de sangue. Resultado: batemos recordes de doações!
Mobilizadores Coep – Na sua opinião, as escolas trabalham bem as diferenças? O que é necessário para melhorar esta percepção do ?diferente? dentro das instituições?
R.: De uma maneira geral, eu acho que as escolas estão trabalhando pouco esta questão. Parece que falta a percepção do outro. Não é achar que por ser diferente que se deve ter tratamento especial: todos têm que ser tratados com respeito e suas necessidades devem ser detectadas para poder trabalhar melhor a educação.
Outro dia apareceu um aluno da escola municipal aqui da região, dentro de uma viatura, escoltado por dois policiais, que não sabiam bem o que fazer com ele e vieram me pedir ajuda, pois ele havia quebrado os vidros da escola. Primeiro, convidei o menino a sair do carro, pois percebi pelos seus olhos arregalados que ele estava assustado. Viemos até a minha sala, me apresentei e perguntei o seu nome. Samuel me deu um abraço assustado e tremia de medo. Numa breve conversa, ele me disse que estava suspenso da escola e que não o deixavam entrar, mas que ele queria estudar, por isso jogou as pedras no vidro. Pedi que os policiais o deixassem em casa, com um recado para a mãe vir conversar comigo. No outro dia, recebi Samuel e sua mãe ? uma mulher portadora de HIV, com seis filhos em casa para cuidar. Samuel era o mais velho e deveria cuidar de seus irmãos quando sua mãe estava ausente. Ele, no 6º ano do ensino fundamental, ainda não sabia ler e os professores não tinham detectado isso: riscavam seu caderno dizendo que ele não havia feito a lição de casa e que não copiava o texto da lousa. Percebi que a realidade de Samuel era dura, mas que ele estava disposto a estudar e a aprender, se alguém o ajudasse nesta tarefa, dedicando-lhe atenção. Convidei-o para ser ouvinte das aulas aqui no Cieja e o ensinei a ler e a escrever. Hoje ele está matriculado aqui conosco e é um menino feliz, é o mascote da escola!
Mobilizadores Coep – Na sua opinião, como podemos melhorar a educação no Brasil?
R.: Acho que precisamos acreditar mais que educação é importantíssima na formação e construção de seres mais humanos. A educação só precisa ser redescoberta. Depois da família, somente a escola pode acompanhar o desenvolvimento das pessoas e fazer a mediação para que elas alcancem o conhecimento.
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Entrevista para o Grupo Promoção da Educação
Concedida à: Flávia Machado.
Editada por: Eliane Araujo.