O Inesc e a Christian Aid lançaram recentemente uma pesquisa sobre as transformações do cenário de cooperação internacional no Brasil intitulada “Presente e futuro: tendência na cooperação internacional brasileira e o papel das agências ecumênicas”. Elaborado por Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), o estudo tem por objetivo fazer um apanhado da situação da cooperação internacional, tanto a recebida pelo Brasil quanto a promovida pelo país junto a outras nações.
Segundo Nathalie “trata-se de tema ainda pouco estudado e sobre o qual precisamos urgentemente ampliar conhecimentos para poder construir uma agenda de incidência que leve o governo federal a criar e implementar uma política e uma institucionalidade capazes de por em marcha uma Cooperação Internacional para o Desenvolvimento: brasileira, efetiva, transparente e pautada pelos direitos humanos e pela justiça ambiental e social.
Nesta entrevista, ela traça um panorama da atual situação da cooperação internacional e contextualiza a participação do Brasil neste novo cenário mundial.
Mobilizadores Coep – Como podemos definir a cooperação internacional?
R.: A cooperação internacional consiste no esforço levado a cabo por países ou por organizações não governamentais com a finalidade de promover o desenvolvimento. A cooperação promovida por governos, geralmente de países ricos em favor de países em desenvolvimento, é conhecida como Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD). Já a cooperação realizada por ONGs tem o nome de cooperação solidária.
Mobilizadores Coep – Quais são as principais transformações por que passa a cooperação internacional atualmente? E como fica o Brasil neste contexto?
R.: São várias as transformações por que passa a AOD. Em primeiro lugar, a diminuição relativa de recursos. Pois é, em 2002, na Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, celebrada em Monterrey, no México, os países ricos se comprometeram a alocar 0,7% do PIB (Produto Interno Bruto) à AOD. Essa meta não está sendo cumprida, uma vez que, em média, a Assistência Oficial ao Desenvolvimento corresponde à somente 0,3% do PIB. E mais: esse percentual provavelmente irá diminuir devido ao agravamento da crise na Europa.
Outro problema da AOD diz respeito à baixa efetividade dos critérios para distribuição dos recursos. O principal indicador dos países doadores diz respeito à chamada renda média per capita dos países, que privilegia aqueles que apresentam índices de renda baixa (Low Income Countries – LIC). Se é bem verdade que em 1990 mais de 90% dos pobres se concentravam nestes países, atualmente a tendência se inverteu: três quartos dos pobres vivem nos países de renda média (Middle Income Countries – MIC). Entretanto, tais países receberam somente 40% da AOD na década de 2000. Uma terceira questão que vem afetar os rumos da cooperação oficial é o questionamento crescente de seus resultados. Depois de cinco décadas de ajuda, o planeta ainda convive com mais de um bilhão de pessoas passando fome.
Por fim, novos atores entraram em cena, como é o caso do Brasil. Com efeito, de uns anos para cá, o Brasil, além de ser receptor de recursos da AOD, passou a ser doador, tanto para países da América Latina como para a África e a Ásia. Essa relação entre países em desenvolvimento é chamada de Cooperação Sul-Sul. É um fenômeno novo, ainda pouco conhecido. Essa é uma das principais razões que motivou a realização do estudo do INESC e da Christian Aid: aprofundar o conhecimento nesta área.
Mobilizadores Coep – Quais os pressupostos básicos para uma Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, conforme proposto no estudo realizado pelo Inesc e Christian Aid?
R.: Entendemos que a cooperação internacional para o desenvolvimento é um bem comum. Neste sentido, todos os países devem cooperar uns com os outros e devem fazê-lo para combater: as causas da miséria, da pobreza e das desigualdades; a violação de direitos humanos; e a destruição do meio ambiente, onde quer que estes fenômenos ocorram. Daí a importância da horizontalização das práticas de cooperação entre países. É preciso sair de um sistema articulado em torno do binômio doador/receptor para um sistema internacional de cooperantes.
Mobilizadores Coep – O que seria o Conselho Nacional de Política Externa proposto no mesmo estudo? Qual seu objetivo?
R.: Acreditamos que é preciso democratizar a forma como o Brasil atua para além de suas fronteiras e por isso reforçamos a proposta da Rede Brasileira pela Integração dos Povos – Rebrip, da qual o Inesc faz parte; de criação do Conselho Nacional de Política Externa que contaria entre seus membros com representantes do poder público, mas também, dos diversos setores da sociedade envolvidos na formação da política externa. Tal colegiado, público e plural, garantiria um espaço democrático de processamento dos diversos interesses afetos ao tema.
Mobilizadores Coep – Poderia traçar um panorama da cooperação recebida pelo Brasil?
R.: No Brasil, a cooperação internacional recebida – tanto a bilateral e a multilateral quanto a oficial e a não governamental – nunca foi relevante do ponto de vista quantitativo, ainda que tenha tido indiscutivelmente seu papel numa perspectiva mais qualitativa (transferência de conhecimentos, técnicas, experiências, equipamentos, produtos e serviços, entre outros; fortalecimento de movimentos e organizações da sociedade civil do campo democrático, etc.).
No que se refere à cooperação oficial, a AOD, ela tem se mantido relativamente constante nos últimos anos, em torno de U$ 370 milhões, em média, algo em torno de 0,02% do PIB. Quanto à cooperação solidária, não existem dados de âmbito geral, infelizmente. Alguns estudiosos avaliam, e eu me incluo entre eles, que ela não tem diminuído, mas mudado sua forma de atuação (como, por exemplo, concentração de recursos em um número menor de parceiros, mudança de agenda para novos temas como mudanças climáticas ou responsabilidade social empresarial, “nacionalização” de algumas delas etc.).
Mobilizadores Coep – Desde 2009, o Brasil também se tornou um doador nas relações de cooperação mundial. Quais as características e os riscos dessa cooperação tendo em vista as condições socioeconômicas do país? (quais países envolvidos, que tipo de cooperação tem sido realizada)
R.: O Brasil vem fazendo cooperação há mais tempo. Recentemente o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) publicaram um estudo no qual mostram a evolução da cooperação brasileira desde 2005. Ela vem aumentando a passos rápidos. Existem experiências muito bonitas de cooperação técnica nas quais o Brasil leva para países latino-americanos ou africanos experiências bem sucedidas de prevenção e enfrentamento da epidemia HIV/AIDS ou de fortalecimento da agricultura familiar ou, ainda, de prática agroecológicas. Encontramos também exemplos muito interessantes de ajuda humanitária nos quais o Brasil é modelo, inclusive contribuindo para transformar agências das Nações Unidas. No entanto, nem tudo é cor de rosa. Muitas vezes, os interesses comerciais e econômicos prevalecem e a cooperação acaba sendo um instrumento para exportar modelos que produzem exclusão e miséria.
Nesses casos, o Brasil se comporta como muitos países do Norte fizeram em relação a países em desenvolvimento durante décadas, sem se importar com as reais necessidades das comunidades atendidas, com o fortalecimento de institucionalidades democráticas locais, com o empoderamento das sociedades nacionais receptoras da cooperação internacional, com a promoção dos direitos humanos, com a defesa do meio ambiente e com a avaliação dos resultados.
Mobilizadores Coep – Apesar de sermos considerados atualmente a 6ª economia mundial, também somos campeões em desigualdade e os índices sociais ainda são alarmantes. Como podemos buscar uma cooperação internacional que seja mais eficiente no sentido de promover a igualdade de direitos e dos bens comuns?
R.: Precisamos construir uma cooperação solidária e participativa que envolva organizações da sociedade civil tanto na sua formulação como na sua execução, monitoramento e avaliação. A cooperação deve ser baseada na horizontalidade, no estabelecimento de interesses mútuos, na reciprocidade, no respeito mútuo, bem como no respeito à soberania dos países envolvidos.
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Entrevista para o Grupo Mobilização Social: Direitos, Participação e Cidadania
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.
Interessantíssima a constatação do empenho brasileiro na cooperação. Muito animadora!!!
Muito interessante a entrevista que nos remete às ações humanitárias de combate à fome, dentre outras em curso.