Nesta entrevista, Nathalie Beghin, chefe do escritório da Oxfam International no Brasil ? organização que atua em diversos países na busca de soluções para o problema da pobreza e da injustiça -, fala sobre a relação entre mudanças climáticas e pobreza, e aponta quais as populações mais vulneráveis no Brasil.Para ela, a humanidade está diante de um desafio civilizatório e precisa encontrar novas formas de produzir e consumir que não sejam tão agressivas ao meio ambiente. Neste sentido, ela detalha quais os desafios para os governos e sociedade civil no enfrentamento dos impactos das mudanças climáticas, quais podem ser as principais ações de adaptação. Ela explica ainda o que todos nós, cidadãos, podemos fazer por conta própria na tentativa de minimizar o problema.Mobilizadores COEP – Qual é o conceito de mudanças climáticas?
R.: Segundo o ?Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas? (da sigla em inglês IPCC), mudança climática é uma variação a longo prazo estatisticamente significante em um parâmetro climático, como temperatura, precipitação ou ventos, durante um período que pode durar de décadas a milhões de anos. A mudança climática pode ser causada por processos naturais da própria Terra ou por forças externas, incluindo variações na intensidade da luz solar, ou ainda, mais recentemente, pela ação do homem. Entretanto, a partir da Revolução Industrial, a ação humana vem modificando a composição da atmosfera ao emitir gases que provocam o chamado efeito estufa e aquecem a terra. Nos últimos 60 anos houve um aumento significativo da produção industrial, da agricultura e do uso de energia, resultando em grande emissão de gases de efeito estufa. Com isso, os chamados eventos climáticos extremos têm se intensificado, como secas, inundações e tempestades severas.Mobilizadores COEP – Qual a relação entre pobreza e mudanças climáticas? De que forma as mudanças climáticas podem agravar as condições de pobreza?R.: Os eventos climáticos extremos afetam, principalmente, as pessoas que vivem em situação de pobreza agravando sua já precária condição de vida. Nas grandes cidades, em geral, as populações mais excluídas habitam áreas pouco salubres, como encostas, mangues, margens de rios ou em moradias precárias e sem acesso à infraestrutura básica. Com o aumento da frequência e da intensidade das enchentes, as principais vítimas são justamente essas populações que, na maior parte dos casos, perdem quase tudo o que conseguiram juntar com muito esforço, tendo que recomeçar suas vidas praticamente do zero.No campo não é diferente: as alterações do clima – secas, fortes chuvas ou chuvas fora do tempo – destróem a produção de alimentos, especialmente dos agricultores familiares, ou torna inviável a plantação de determinados alimentos que garantem o sustento dos produtores. As mudanças climáticas pioram as condições de vida dos mais pobres porque os destituem de seus meios de produção, de sua moradia e de sua história. Os mais afetados por eventos climáticos extremos não costumam estar inseridos em sistemas de proteção, sejam eles públicos ou privados. Do ponto de vista privado, essas populações, em geral, não têm emprego formal, não têm seguro, não têm patrimônio, nem condições econômicas que possam ajudá-las a recompor suas perdas após eventos, como enchentes, grandes deslizamentos de terra ou incêndios decorrentes de intensas secas, por exemplo. Do ponto de vista de acesso a bens e serviços públicos, o Estado brasileiro, apesar de ter aprimorado significativamente sua atuação nos últimos 20 anos, ainda tem uma grande dívida social: condições de moradia e de infraestrutra urbana precárias, defesa civil fragilizada, políticas de desenvolvimento agrário aquém do desejado, inexistência de políticas públicas de adaptação aos impactos humanos das mudanças climáticas. Em outras palavras, não existem mecanismos adequados nem para prevenir os impactos humanos das mudanças climáticas nem para ajudar as populações afetadas a recomeçarem suas vidas de uma maneira digna.Mobilizadores COEP – Quais sãos as populações mais vulneráveis no Brasil? Por quê?R.: Todos somos afetados pelas mudanças climáticas: é um problema civilizatório. O aumento da intensidade e da freqüência de eventos climáticos extremos (chuvas, secas, etc) têm fortes impactos nas economias dos países e do mundo. Enchentes, queimadas ou secas destroem infraestrutura, colheitas, postos de trabalho. Entretanto, as populações em situação de pobreza são muito mais afetadas pelas consequências do aquecimento global porque vivem em localidades precárias, não têm acesso a infraestrutura e nem a políticas públicas, não estão inseridas no mercado formal de trabalho. Ainda não temos traçado no Brasil um mapa das vulnerabilidades, mas estamos caminhando para elaborá-lo. Sabemos que nas grandes cidades, as populações mais vulneráveis são aquelas que se encontram em assentamentos urbanos precários, às margens dos rios, em mangues, encostas e em terrenos impróprios, e também em condições precárias de moradia, sem acesso à infraestrutura básica.Nas diversas regiões brasileiras, a população convive com as mudanças climáticas inerentes de cada bioma. No Semiárido, a população está mais sujeita a enfrentar períodos maiores de seca, agravando ainda mais a situação de desertificação. No Pantanal, a população sofre com as mudanças mais frequentes dos ciclos de elevação das águas. Nas florestas e no Cerrado, corre-se maior risco de incêndios e avanço do desmatamento.
Mobilizadores COEP – Novas condições de pobreza podem ser geradas com as mudanças no clima? Em que situações?R.: Sim, pois o aumento de eventos climáticos extremos resulta em agravamento da pobreza. Em situações como enchentes, por exemplo, além de impactos como a elevação da insegurança alimentar e nutricional resultante da dificuldade de acesso aos alimentos – seja pelo aumento dos preços, porque a produção alimentar de auto-subsistência foi destruída, seja porque faltam alimentos nos abrigos -, as pessoas afetadas encontram-se em pior situação: não têm mais moradia e, por vezes, meios de produção (de doces, costura, horta, produtos para revenda), não têm mais documentos ou algum ativo, o que impossibilita seu acesso a bens e serviços públicos (programas e créditos), e não têm roupa para procurar emprego. Estas pessoas são também vítimas de doenças como malária e dengue, além de outras moléstias transmitidas pela água não tratada ou pela falta absoluta de serviços básicos de saúde. Além de estarem profundamente afetadas, em termos psicológicos, pela perda material e social.Mobilizadores COEP – Quais são os desafios para os governos e sociedade civil para evitar/minimizar os impactos das mudanças climáticas?R.: Estamos diante de um desafio como civilização e toda a sociedade tem que mudar e encontrar novas formas de produzir e consumir que não sejam tão agressivas ao meio ambiente como as que existem atualmente.Num plano de governos, o desafio é estabelecer acordos entre os países do planeta. Um acordo que seja justo, legalmente vinculante e ambicioso. Justo, pois deve punir mais os grandes poluidores, ou seja, países mais poluentes pagam um preço mais caro. Legalmente vinculante, pois tem que ser obrigatório para todos os países, com metas que devam ser cumpridas. Ambicioso, pois deve ser um acordo radical e abrangente.Cada país deve estabelecer suas metas e elaborar um plano de adaptação e mitigação às mudanças climáticas, e também cumpri-las. Neste ponto, o Brasil tem avançado e aprovou, recentemente, o Plano Nacional de Mudanças Climáticas*1,no qual assume metas quantitativas de redução de emissão de gases de efeito estufa; está construindo um Fundo de Adaptação*2, com recursos que possam financiar as políticas de adaptação e mitigação; além de ampliar o discurso no âmbito do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC). O Fundo Amazônia*3 também é uma experiência inédita.Mobilizadores COEP – Quais são as principais ações de adaptação que deveriam ser promovidas pelos governos no Brasil para proteger as populações mais vulneráveis?R.: Aqui é importante deixar claro qual o conceito de adaptação ao qual se faz referência. Entendemos “adaptação” não como um fim em si mesmo. Na ideia de “adaptar” está embutida a de enfrentar as causas que resultam no aquecimento global e que, por seu turno, provocam eventos climáticos extremos como secas, enchentes e outros fenômenos. Assim, adaptação deve ser entendida como o ajuste dos sistemas sociais, econômicos e ambientais aos atuais e esperados efeitos do aquecimento global, prevenindo seus impactos de forma a diminuir a vulnerabilidade – especialmente das comunidades e regiões mais pobres – à mudança ou variabilidade climática.Nesse sentido, as medidas de adaptação devem fazer parte de um plano geral de políticas públicas de enfrentamento das alterações climáticas que conjuguem, em pé de igualdade, prevenção*4, adaptação*5, resiliência*6 e mitigação*7. A prevenção, a resiliência e a mitigação são conceitos ligados à adaptação e as políticas devem considerá-los em seu conjunto.Mobilizadores COEP – Dentro do conceito de cidadania ativa, o que os cidadãos podem fazer para contribuir para o não agravamento das mudanças climáticas?R.: Temos que agir aqui e agora, tanto individualmente como coletivamente. Muito pode ser feito do ponto de vista individual, como, por exemplo:. economizar água e energia;. evitar a utilização de produtos de plástico;. consumir produtos alimentares oriundos da agricultura familiar ou daagroecologia;. votar em candidatos que tenham as mudanças climáticas nas suas agendas programáticas.Do ponto de vista coletivo, podemos por meio das nossas organizações, como o COEP, por exemplo:. discutir propostas e alternativas com as comunidades mais afetadas;. pressionar os governos para que implementem políticas públicas de moradia, transporte público efetivo, fortalecimento da agricultura familiar, fortalecimento da defesa civil, pesquisa para fomentar tecnologias apropriadas etc;. pressionar o governo federal para que mobilize os países do mundo para assinar um acordo global que proteja a humanidade e a ajude a preparar-se para enfrentar esse novo problema civilizatório.Mobilizadores COEP – Quais as principais contribuições que a Oxfam tem apresentado no Grupo de Trabalho de Mudanças Climáticas, coordenado pelo COEP, à formulação de subsídios para elaboração de um Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas?R.: A Oxfam tem apoiado o COEP desde o início na criação e condução do Grupo de Trabalho de Mudanças Climáticas. Trata-se de uma iniciativa extremamente inovadora e o papel do COEP tem sido crucial no envolvimento de um conjunto amplo de atores, cuja atuação é fundamental para discutir e debater os impactos humanos das mudanças climáticas.A Oxfam também tem buscado viabilizar a questão de gênero, que se agrava com as mudanças climáticas. As mulheres são, em geral, as mais afetadas pelo fenômeno e desempenham papel fundamental para enfrentá-lo. Um enfoque sensível em gênero é um requisito para o sucesso de qualquer intervenção em clima e muitos esforços fracassam porque as mulheres são deixadas de lado. Embora as mulheres sejam mais afetadas pelos desastres naturais, devido à sua maior dependência do meio ambiente e por estarem em uma posição de desvantagem em muitas sociedades, demonstram mais disposição para mobilizar as comunidades no sentido de responderem aos desastres e de criar mecanismos de adaptação e de mitigação às consequências do aquecimento global.Mobilizadores COEP – Na sua avaliação, o que é possível esperar da COP 16?R.: A humanidade espera uma coisa da COP 16: progressos palpáveis. De forma a desacelerar os impactos das mudanças climáticas, os negociadores precisam avançar em diversos temas. Um acordo ambicioso, justo e vinculante é o sonho da sociedade civil organizada. Como as dificuldades associadas a um acordo como esse são muitas para serem superadas até o final do ano, espera-se que, ao menos, ocorram progressos na área de financiamento para as políticas de adaptação, no marco legal dos acordos e na visão comum relacionada aos processos de mudança climática (prazos, linhas de base, reduções desejadas).A sociedade civil também defende que não sejam criadas alternativas que permitam aos países do Anexo I*8 voltar atrás em seus compromissos e tampouco que os investimentos disponíveis para as políticas de adaptação sejam mera reclassificação dos recursos já existentes para as políticas de desenvolvimento oficiais (ODA). Assim como os recursos, esperam-se políticas novas e adicionais em Cancun, no México, cidade sede da COP 16.Além disso, espera-se que uma atenção especial seja dada às mulheres, particularmente aquelas que vivem em situação de pobreza. São elas as principais vítimas dos impactos das mudanças climáticas. Estima-se que entre 60 e 80% dos alimentos consumidos nos países em desenvolvimento são produzidos por mulheres, tornando-as centrais na promoção da segurança alimentar. Entretanto, elas são sistematicamente excluídas dos processos de decisão bem como do acesso à terra, à água, à tecnologias, ao crédito etc. Ainda hoje, em pleno século XXI, a predominância do sexismo, do machismo e de práticas patriarcais impossibilita as mulheres de usufruirem dos seus direitos. Daí a urgência de implementar políticas públicas que revertam esse quadro inaceitável.—————-*1 – Plano Nacional de Mudanças Climáticas: Foi instituído pela Lei no 12.187, aprovada em 29 de dezembro de 2009. A principal meta estabelecida pelo Plano é a redução em 80% do índice de desmatamento anual da Amazônia até 2020, sendo que a redução das taxas de desmatamento deverá ocorrer de forma sustentada, em sua média quinquenal, em todos os biomas brasileiros, até que se atinja o desmatamento ilegal zero.*2 – Fundo de Adaptação: Criado pela ONU, este fundo visa permitir a transferência de recursos financeiros e tecnológicos dos países mais ricos para os países em desenvolvimento que pretendem adaptar suas economias e ritmo de crescimento à nova realidade ambiental. O fundo deve ser alimentado pela cobrança de um imposto de 2% sobre o volume total de negócios do Mercado de Crédito de Carbono e por ?doações voluntárias? feitas pelas nações mais ricas. Até agora, no entanto, o fundo tem somente cerca de US$ 20 milhões em caixa, o que está muito aquém das expectativas iniciais da ONU.*3 ? Fundo Amazônia: O Fundo Amazônia é uma iniciativa brasileira de contribuição para a redução de emissões resultantes do desmatamento e da degradação das florestas, que teve sua criação autorizada em 1º de agosto de 2008. Seu principal objetivo é captar recursos para serem utilizados em projetos de combate ao desmatamento e de promoção da conservação e uso sustentável no bioma amazônico. Saiba mais clicando aqui. *4 – Prevenção: o princípio da prevenção busca a constante vigilância e ação do poder público e da sociedade para evitar a degradação ambiental.*5 – Adaptação: Ajuste dos sistemas humanos e naturais para que respondam, de forma eficaz e eqüitativa, aos impactos esperados pelas mudanças climáticas. O acesso aos recursos necessários para uma maior capacidade de adaptação varia entre comunidades, bem como depende de fatores externos como políticas públicas, a paisagem institucional e as estruturas de poder.*6 ? Resiliência: Habilidade de uma comunidade para resistir, absorver e se recuperar dos efeitos negativos de situações adversas, reduzindo os riscos e recuperando suas funções e identidades básicas anteriores ao evento imprevisto. Uma comunidade resiliente se recupera com certa facilidade após uma crise econômica, ou um evento natural extremo como uma enchente ou uma seca.*7 ? Mitigação: intervenção humana com o intuito de reduzir ou remedir um impacto ambiental negativo.*8 ? Anexo I ? relação dos países, listados na Convenção do Clima, que assumiram compromissos de reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE). São, basicamente, os países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre eles: Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Espanha, Itália e Japão. Entrevista para o Grupo, Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e PobrezaConcedida à: Flávia MachadoEditada por: Eliane Araujo.
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.