O Brasil é o campeão mundial de crimes motivados pela homo/transfobia. De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2014, foram documentados 326 assassinatos de gays, transgêneros e lésbicas, o que representou um aumento de 4,1 % em relação a 2013, quando foram registrados 313 assassinatos.
Diante desse quadro, o psicólogo Marcelo Santana Ferreira, professor do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense e editor do periódico Fractal: Revista de Psicologia, afirma que mais importante do que criminalizar a homofobia é inventarmos “uma escola mais viva, em que aprendamos a viver, sem nos tornamos algozes daqueles que diferem de nós”.
Ele adverte que não basta que as minorias sejam toleradas, “precisamos diluir tentativas antidemocráticas de criminalização da diversidade”. Marcelo Ferreira acredita que o combate à discriminação deve ser uma meta permanente: “nunca chegaremos a um estágio final desta luta”, ressalta.
Rede Mobilizadores – O que caracteriza a intolerância à orientação sexual e de gênero? Como ela se manifesta?
R.: Há uma quantidade grande de possibilidades de definição desta intolerância. Na verdade, podemos pensar que somos educados a considerar natural que pessoas homossexuais, transexuais e travestis (por exemplo) possuem características que as tornam menos humanas que as outras, consideradas normais.
No entanto, mesmo a heterossexualidade se refere a uma política de formação de sujeitos e não à expressão de uma natureza. Logo, a intolerância se caracteriza por atos reiterados de desqualificação e violência contra minorias sexuais e expressões de gênero que não coincidem com normas sociais hegemônicas.
Se expressa por violência simbólica e física, por desrespeito na escola a expressões pessoais de interesse e curiosidade por pessoas do mesmo sexo, por rebaixamento de homens, homossexuais ou não, devido a sua não adequação a modelos instituídos de masculinidade, por repetidas incitações a que pessoas busquem consertar seus desejos e seus modos de ser para se tornarem heterossexuais.
Em suma, a intolerância aparece de muitas formas e mata. Mesmo quando não se corta a carne de quem não se adequa às normativas de gênero e sexualidade em sociedades como a nossa, se condena afetos minoritários ao ostracismo, a abjeção. Isso pode gerar sentimentos de menos valia e de indignação em relação ao que se deseja e ao que se sente.
Rede Mobilizadores – Como a família e escola lidam com a intolerância e qual deveria ser seu papel no combate ao preconceito?
R.: Pais e mães podem desejar que seus filhos sejam exatamente como se alardeia que homens e mulheres devam ser. No entanto, os modelos são expressões de idealidades históricas e institucionais. Homens e mulheres são virtualidades lançadas ao tempo. Não somos constrangidos a sermos a expressão pálida deste binarismo intrínseco à nossa sociedade.
Os pais não precisam se preocupar com os prazeres e os desejos dos seus filhos: isso se delineará com o tempo e eles não são melhores ou piores se, por ventura, seus filhos se relacionarem com pessoas do mesmo sexo ou desejarem mudar sua própria designação de gênero.
Homossexualidade não é um efeito da falta de amor ou de cuidado dos pais. Somos tocados, em nossas vidas, por encontros formidáveis com as pessoas. Não seremos condenados se optarmos por experiências eróticas e sexuais dissidentes em relação à norma sexual.
A escola vem sendo alvo permanente de movimentos conservadores que afirmam que não se deve ensinar a crianças temas originados em estudos sobre gênero. Evocam a natureza e Deus para condenarem a diversidade sexual, produzem pânico moral ao afirmarem que a família corre o risco de ser extinta. Pura ficção de má qualidade.
Os juízes morais são cruéis e obtusos. Crianças, jovens e professores precisam discutir seriamente direitos sexuais e reprodutivos, diversidade sexual, história de lutas por uma sociedade pautada na liberdade e na garantia de direitos. Isso não incita crianças a se tornarem homossexuais.
Crianças são ótimos interlocutores para um debate consistente sobre a sociedade que queremos. Enquanto moralistas supõem que estão protegendo as crianças por impedirem a inclusão de discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas, na verdade marcam negativamente as futuras gerações por seu apelo a um modelo excludente e violento em relação às mulheres e as minorias sexuais. Independente de qualquer sistema de moralidade, a educação deve manter-se na luta impaciente pela liberdade e pela diversidade.
Rede Mobilizadores – O Brasil avançou no combate à discriminação em relação aos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros? Por quê?
R.: Costumava acreditar mais nisso. Vivemos em um país diferente daquele que se construiu até os anos 1990. Há uma implosão de identidades e o surgimento de novas lutas sociais em que sexo e gênero ocupam posição importante. Acho que o combate à discriminação deve estar sempre no nosso horizonte, nunca chegaremos a um estágio final desta luta.
Não basta que as minorias citadas sejam toleradas, precisamos diluir tentativas antidemocráticas de criminalização da diversidade. Que as pessoas vivam suas políticas de prazer sem serem encaminhadas a projetos de reorientação sexual. Que novas famílias sejam cotejadas como formas legítimas de convívio humano e de invenção de afetos. Que novos limiares de humanidade se tornem possíveis.
Imagino um mundo onde não nos preocupemos tanto com a sexualidade. Enquanto ele não se torna possível, devemos estar vigilantes e fortes. Só a diversidade nos salva da ignorância e do horror, seja ela no campo das moralidades, das religiões e dos modos de existência.
Rede Mobilizadores – Qual o papel da mídia na reprodução do preconceito em relação à população LGBT? Tem havido mudanças?
R.: Mídias reproduzem modelos, favorecem visibilidades, institucionalizam invisibilidades. As mídias oficiais não são plataformas neutras que podem nos servir de forma objetiva. Precisamos lutar pela invenção de novas visibilidades sociais, que não sejamos pautados pelas novelas ou jornais de grande circulação. Eventualmente, surgem pautas progressistas, mas a tarefa está do lado dos movimentos e dos próprios indivíduos, na luta impaciente pela cidadania de afetos considerados malditos.
Rede Mobilizadores – A criminalização da homofobia é uma forma eficiente de combatê-la? Por quê? Há outras maneiras eficazes?
R.: Já pensei que sim. Mas o mesmo Estado que garante a criminalização da homofobia, se torna conivente do assassinato de jovens negros e pobres ao não formular políticas públicas efetivas que permitam a invenção de novos horizontes de existência para os pobres, condenado-os aos presídios e aos postes, por condenações sumárias de seus contemporâneos.
A arena de luta pela criminalização mostra o quanto nos tornamos conservadores. Mas não basta a invenção de leis, precisamos de escolas mais democráticas, precisamos de respeito e liberdade. Nem tudo pode ser institucionalizado.
Fico menos afoito pela criminalização da homofobia e mais interessado na invenção de uma escola mais viva, em que aprendamos a viver sem nos tornamos algozes daqueles que diferem de nós.
Uma sociedade onde líderes religiosos compram horários na televisão para condenarem gays e outras minorias sexuais ao limbo social não é o melhor modelo de uma sociedade democrática. Este mundo cruel onde pastores falam sobre gays e lésbicas, mas em que gays e lésbicas não gozam da mesma oportunidade, não pode durar muito. A palavra não circula do mesmo jeito. Isso favorece a criminalização dos movimentos sociais e das minorias.
Precisamos inventar novas arenas e inventar novas políticas de circulação do pensamento. Precisamos de mídias mais democráticas, precisamos de mais música e história, mais curiosidade sobre nosso passado, mais contadores de história e menos líderes violentos que insistem em dizer por onde devemos ir. Isso é o que penso.
Rede Mobilizadores – O que é fundamental para promover a cidadania homossexual e transgênero? Que políticas públicas deveriam ser adotadas?
R.: Não sei bem que políticas poderiam ser adotadas. A cidadania será conquistada com luta e impaciência. O horizonte se modifica e os perigos são vários, hoje em dia. Aposto na força dos movimentos, dos debates, das festas, da insubordinação aos violentos discursos de ódio travestidos de amor universal, da indignação e da perplexidade.
Precisamos inventar novas pautas, mas ainda é urgente se indignar com assassinato de travestis e homossexuais, com discursos e práticas de ódio. Sempre na luta, sem perder o charme e a força da amizade, da festa, da rua e do prazer. Que a política não se restrinja à conquista de direitos, mas a atravesse.
Entrevista concedida a: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa