Na entrevista, Cecília Teixeira Soares, superintendente dos Direitos da Mulher no estado do Rio de Janeiro e presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do RJ, fala de sua experiência relacionada à aplicação dos direitos da mulher e comenta os avanços e as resistências trazidas pela Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Lei Maria da Penha). Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei foi criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher: alterou o Código Penal, (permitindo que agressores sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada); acabou com as penas em que o réu é condenado a pagar cestas básicas ou multas e aumentou a pena máxima de um para três anos de detenção.Mobilizadores COEP – Qual é o quadro atual da violência doméstica e sexual contra a mulher no Brasil e como esses crimes eram tratados antes da vigência da Lei Maria da Penha? Quais eram as principais limitações?
R. A violência doméstica no Brasil é um grave problema de segurança pública que, lamentavelmente, ainda tende a ser tratado com um problema privado. Por falta de uniformização nos registros das delegacias nos estados, não temos um número oficial da violência doméstica no país. Além disso, embora exista uma lei federal e algumas leis estaduais de notificação compulsória dos casos de violência doméstica que chegam aos serviços de saúde, essa notificação ainda não é realizada, dificultando ainda mais que se tenha um perfil das mulheres vítimas de violência.
Antes da vigência da Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica contra as mulheres eram tratados, pela Lei 9099/95, como crimes de ?menor potencial ofensivo?. A principal limitação era a banalização da violência doméstica, uma vez que a mulher sofria uma pressão por parte do conciliador para não representar (transformar a denúncia ? que já foi feita na delegacia ? num processo criminal) contra o agressor. Na maioria dos casos, o agressor pagava uma cesta básica a alguma instituição beneficente, o que gerava a sensação de impunidade e de ?licença? para continuar agredindo. A lei 9099 não previa nem a prisão em flagrante, nem a prisão preventiva. Algumas mulheres acabaram assassinadas depois de inúmeros registros de ameaça.
Mobilizadores COEP – O que mudou, em termos de resultados efetivos, com a criação da Lei Maria da Penha? Como ela tem beneficiado as vítimas de violência doméstica e sexual?
R. A Lei Maria da Penha trouxe algumas inovações importantes. A inovação que tem sido mais divulgada é a possibilidade de prisão do agressor (em flagrante ou preventiva). Mas igualmente importantes são as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor a se afastar do lar, proíbem que ele se aproxime da ofendida, dos seus familiares ou das testemunhas e impõem a restrição ou suspensão das visitas aos filhos, entre outras.
Mobilizadores COEP – Que dificuldades vêm sendo enfrentadas no processo de aplicação da lei? Quais são as principais causas dessas dificuldades?
R. As principais dificuldades se devem à resistência dos operadores da lei. Muitos policiais, defensores, promotores e juízes alegam que a lei é desnecessária ? que só veio a ?complicar? o que já era tratado pela lei 9099 e que o número de casos de violência doméstica contra mulheres não justifica a criação de uma lei específica; que ela é inconstitucional ? por tratar de maneira diferente homens e mulheres. Em suma, há uma grande resistência em reconhecer a gravidade dos crimes domésticos contra as mulheres.
Mobilizadores COEP – Como os movimentos sociais têm atuado para reverter essa resistência? A algum indicativo de êxito nesse sentido? O quê?
R. Os grupos organizados de mulheres têm tido mais atuação na disseminação das informações para as mulheres sobre os seus direitos. Para a reversão da resistência dos operadores do direito, o que se tem tentado é a promoção de palestras e seminários de sensibilização, promovidas pelos órgãos governamentais de políticas para as mulheres ? coordenadorias municipais, Cedim e a própria Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM).
Mobilizadores COEP – A Lei Maria da Penha vem suscitando controvérsias e gerando, inclusive, um efeito contrário ao esperado, que é a redução do número de denúncias de violência contra a mulher. A que se atribui este efeito? Pode-se caracterizá-lo mesmo como inesperado? R. Não tenho conhecimento de estatísticas oficiais que demonstrem essa redução no número de denúncias. Sabemos que em muitas delegacias as mulheres estão sendo desestimuladas a efetuar os registros de ocorrência com essa ?ameaça? de que o agressor vai ser preso e ela não vai poder voltar atrás. Mas não é em qualquer caso que o agressor pode ser preso ? ele só pode ser preso em flagrante e nos casos em que o juiz considerar que essa é uma medida necessária para a segurança da vítima -e a obrigação da autoridade policial é esclarecer sobre a lei e sobre as medidas protetivas às quais a mulher tem direito. O agressor pode ser preso.
Mobilizadores COEP – Tem sido feito algum trabalho com as delegacias para esclarecer a importância da lei e mostrar qual é o procedimento correto no atendimento às mulheres? O ideal é recorrer às delegacias de mulheres?
R. O trabalho de esclarecimento e informação aos policiais das Delegacias de Mulheres (DEAMs) tem sido feito pela Coordenação das Delegacias Especializadas. O Cedim e a Superintendência de Direitos da Mulher (Sudim) têm um projeto que será realizado em parceria com a Secretaria de Segurança Pública do RJ, para a distribuição de folhetos com as medidas protetivas aos policiais e às mulheres em todas as delegacias.
Mobilizadores COEP – Você acredita que os Centros Integrados de Atendimento à Mulher (CIAMs) que oferecem serviços de atendimento e orientação sobre os direitos da mulher, especialmente nos casos de violência doméstica e sexual, podem atuar no sentido de reduzir este efeito contrário da Lei Maria da Penha? Como?
R. Sim, os Centros de Atendimento têm um papel importantíssimo no esclarecimento das mulheres sobre os seus direitos, para que elas conheçam a lei e as conseqüências do registro de ocorrência. Elas precisam estar informadas e empoderadas para enfrentar o processo que se segue ao registro, o que pode significar ? entre outras medidas ? a prisão do agressor.
Mobilizadores COEP – Esse processo que se segue ao registro, em geral envolve que etapas? As mulheres tendem a se culpar por denunciar o agressor? Têm medo de vingança? São pressionadas pelos familiares para voltar atrás?
R. Após o registro, vai haver a abertura de inquérito policial. Paralelamente, vão ser solicitadas as medidas protetivas de urgência, e vai ser marcada a audiência no Juizado de Violência Doméstica e Intrafamiliar contra a Mulher. É importante que a mulher seja imediatamente encaminhada a algum centro de atendimento, para o apoio psicossocial e jurídico. As mulheres que resolvem denunciar seus companheiros encontram-se, geralmente, muito fragilizadas, com medo, e sentem-se pressionadas a desistir. É comum que elas se sintam culpadas, pois, culturalmente, o papel da mulher é sofrer calada e se sacrificar pela unidade da família.
Mobilizadores COEP – Que ações se vislumbram ou já estão sendo implementadas para conscientização da população, em relação aos benefícios da lei?
R. O texto da lei tem sido largamente divulgado e têm sido promovidos debates com policiais, juízes, promotores, defensores. Nos centros de atendimento, as (os) profissionais estão sendo instrumentalizados para esclarecerem às mulheres as principais dúvidas em relação à lei. No estado do Rio de Janeiro teve início, no dia 26 de novembro, uma campanha de esclarecimento e sensibilização da população e das (os) profissionais que atendem mulheres. No estado do Rio, a campanha envolverá o Cedim, a Sudim, as Secretarias de Segurança e de Saúde e o Tribunal de Justiça. Teremos spots em rádio, folders, cartazes e banners com as medidas protetivas e com frases pelo fim da violência contra as mulheres.Mobilizadores COEP – Quais são os objetivos principais do Cedim (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher) e da Superintendência Estadual dos Direitos da Mulher, ambas do Rio de Janeiro ? e como elas atuam especificamente na promoção dos direitos da mulher e na prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher?
R. O Cedim foi criado em 1987 ? estamos comemorando 20 anos ininterruptos de trabalho. Na década de 80, ocorreram em todo o Brasil as primeiras conquistas dos movimentos feministas, que pressionavam para que o Estado assumisse a responsabilidade pela promoção dos direitos das mulheres. Foram criadas desde 1985, as primeiras Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Os Conselhos têm atribuição de elaborar, propor e monitorar as políticas públicas para mulheres. No caso do Cedim, o trabalho foi além dessas atribuições e o órgão passou também a ter uma função executora: criou, em 2001, o Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM), que presta atendimento psicossocial e jurídico a mulheres vítimas de violência. Passou também a promover cursos de qualificação profissional para mulheres e para jovens filhos de mulheres chefes de família. Como Conselho não deve ter função executora (não pode receber verba para projetos, não pode realizar atendimento direto à população, etc.), foi criada, agora em 2007, a Superintendência de Direitos da Mulher (Sudim) para executar as políticas elaboradas pelo Cedim. No Estado do Rio de Janeiro, atualmente, a presidenta do Cedim é também a Superintendente de Direitos da Mulher. Em outros estados e municípios, os Conselhos são separados dos órgãos executores (Coordenadorias, Superintendências ou Secretarias de Políticas para Mulheres).
Resumindo: cabe ao Cedim a promoção das campanhas, o contato com as outras Secretarias (Saúde, Educação, Segurança), para a elaboração de políticas transversais de promoção das mulheres; e cabe à Sudim o atendimento direto às vítimas da violência, a execução dos projetos, a realização de cursos de capacitação para profissionais que atendem mulheres etc.
Mobilizadores COEP – O que já foi implantado pelo estado do Rio de Janeiro em termos de políticas públicas nessa área e que resultados vem obtendo?
R. Em 2000, foi implantada uma grande campanha com outdoors e spots de rádio com o tema ?Quem cala consente?, estimulando as mulheres a denunciarem a violência sofrida e divulgando o número do Disque Mulher (um serviço criado na mesma época para orientação a mulheres e a profissionais que atendem mulheres). Embora a campanha tenha durado somente alguns meses, ainda vemos os banners e cartazes em muitos serviços para mulheres, e o atendimento do Disque Mulher tem se mantido durante esses anos como uma referência importante para orientação às mulheres. O CIAM, criado oficialmente em 2001, já realizou mais de 50 mil atendimentos a cerca de 13 mil mulheres. A Sudim acompanha também o atendimento prestado pelos municípios – Núcleos de Atendimento à Mulher e Centros de Referência – e promove a articulação de uma Rede de Serviços de Atendimento a Mulheres.
Mobilizadores COEP – É de sua autoria a dissertação ?Ruim com ele, pior sem ele ? limites e possibilidades encontradas por mulheres em processos de ruptura da violência conjugal?. A seu ver, há questões de âmbito conjugal que precisam ser melhor analisadas e tratadas visando à prevenção da violência contra a mulher? Quais seriam essas questões?
R. O que concluo na dissertação é que há uma valorização cultural do sofrimento feminino e do sacrifício das mulheres pelo ?bem da família?. Essa seria uma das dificuldades das mulheres de romperem com a situação de violência conjugal. Não se trata, portanto, apenas de uma questão de conscientização das mulheres de que elas são sujeitos de direitos, mas sim de se criar possibilidades de construção de lugares femininos que não sejam o lugar de vítima. Num jogo de palavras, sugiro que no ditado ?Ruim com ele, pior sem ele?, a mulher só pode optar entre o ?ruim? e o ?pior?. Seria, então, um importante trabalho psicossocial a reflexão com essas mulheres sobre a construção cultural da violência doméstica e a possibilidade de vivenciar o ?bom?.
Entrevista concedida à: Larissa DolabellaEdição: Eliane Araújo e Danielle Bittencourt
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
Desde os tempos mais primórdios, a mulher sofre agressão física, psicológica e moral. Infelizmente ainda temos que conviver com pensamentos ou idéias “pré historicas” , pois a resistência desses que se intitulam operadores da lei, para mim é primitiva. Acho muito valido todo empenho e luta dos grupos envolvidos a fim de fortalecer o cumprimento da Lei.
É um absurdo que a mulher ainda sofra violência por parte daqueles que considera seus companheiros. Não são companheiros…são inimigos. Esta Lei é o mínimo que deve existir em prol da segurança e da proteção a estas mulheres que jamais deveriam sofrer nas mãos destes homens que não deveriam ter nascido.
POr mais constrangedor que possa parecer encontra-se muito latente entre as mulheres vitimizadas o ditado” ruim com ele pior sem ele” no meu estado Ceará, tornou-se banal manchete nos jornais de mulheres espancadas, violentadas,e assassinadas. Considero um grande avanço a Lei Maria da Penha, aja vista que muitos homens se encontram na condição de preso, por ter sido autores de mal tratos.