Ciro Torres, pesquisador do Ibase e coordenador no Brasil da Red Puentes, criada em 2002, durante o Fórum Social Mundial, fala nessa entrevista ao Mobilizadores COEP sobre os objetivos dessa Rede e analisa os avanços e desafios da responsabilidade social empresarial no Brasil. Ele aponta a necessidade de que esse conceito seja cada vez mais dominado pelas organizações da sociedade civil para que exerçam seu poder de pressão e um controle público sobre as ações das empresas.
Integrada por ONGs e sindicatos do Brasil, Argentina, Chile, Holanda, México e Uruguai, a Red Puentes tem como objetivo promover práticas e ferramentas de responsabilidade social nas empresas que atuam nos países da América Latina a partir da perspectiva, visões e direitos conquistados pela sociedade. No Brasil, a Rede é integrada pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais), Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e Observatório Social.
Mobilizadores COEP – O que é a Red Puentes? Quando ela foi criada e qual seu objetivo?
R. A Red Puentes é fruto do Fórum Social Mundial. O Ibase promoveu uma oficina durante o Fórum, em 2001, para falar sobre o balanço social e tivemos a participação de pessoas de vários países, como Chile, Argentina, México e Holanda. Pudemos trocar idéias e houve um interesse grande da Novib da Holanda em apoiar a criação dessa Rede. Um ano depois, durante o Fórum Social Mundial de 2002, a Red Puentes foi criada efetivamente. Nosso objetivo é construir uma visão do que é responsabilidade social empresarial e quais as ferramentas para colocá-la em prática, diferenciando o que uma empresa entende por responsabilidade social empresarial e o que organizações da sociedade civil entendem. São olhares diferentes sobre o mesmo tema. O grande mote da responsabilidade social empresarial é ser uma discussão de stakeholders, ou seja, é pensar a gestão da empresa a partir de todas as partes interessadas e dos impactos que tem na sociedade. Nós somos as partes interessadas do ponto de vista da sociedade. E como Rede queremos colocar pessoas e organizações em contato e possibilitar que os atores sociais possam conhecer as realidades de diferentes países e trocar ferramentas e experiências, identificando o que pode ser replicado, o que tem de ser adaptado e o que não pode de forma nenhuma ser reproduzido. Num primeiro momento, os integrantes da Rede foram convidados a conhecer um pouco a realidade européia e depois realizamos encontros no Chile, no México, na Argentina e no Brasil. Como organização da sociedade civil, em rede nós nos fortalecemos. As Diretrizes da OCDE que tratam da responsabilidade social de empresas multinacionais não são um instrumento legal muito forte para pressionar uma empresa, mas quando fazemos isso em rede obtemos resultados. Se tivermos, por exemplo, uma multinacional que não está tendo uma atitude muito correta aqui no Brasil, podemos acionar nossa rede no país de origem dessa empresa. Conversamos com os dirigentes da empresa aqui e eles acionam a matriz lá fora. Isso tem resultados muito concretos no que se refere à mudança de práticas e ao diálogo com a sociedade, com os sindicatos.
Mobilizadores COEP – Hoje, o maior hiato entre o discurso das empresas e sua prática estaria no contexto interno, as empresas não estariam fazendo o dever de casa?
R. Essa idéia do dever de casa é importante. A responsabilidade social começa em casa. Mas há uma confusão grande de conceitos. A ação social privada é confundida com responsabilidade social empresarial, quando, na verdade, a ação social privada está contida na responsabilidade social empresarial. E o que a gente vê com um pouco mais de ênfase é a ação social privada, é a filantropia denominada como responsabilidade social empresarial. É uma confusão que se faz com muita freqüência. Não há nenhum problema em a empresa ter ação social privada, ao contrário, ela tem um impacto muito representativo na sociedade. O que não dá é a empresa só ter ação social privada, filantropia, e ao mesmo tempo ter problemas de degradação do meio ambiente, problemas internos com seus funcionários e funcionárias e aí se auto-denominar socialmente responsável apenas porque faz uma ação social privada.
Mobilizadores COEP – Muitas empresas estão aderindo às práticas de responsabilidade social por uma imposição do mercado, por acharem que se não aderirem, não serão competitivas. E a ação na comunidade aparece mais para a sociedade, para a mídia, do que a ação voltada para dentro dos seus muros. Isso poderia ser uma das razões para que as empresas ainda não estejam adotando muitas políticas internas socialmente responsáveis?
R. Pode ser, mas não avaliamos como negativo que a empresa comece a atuar na área social por pressão mercadológica ou por moda. O que ela não pode é continuar a só fazer isso. Há um problema ético quando a empresa faz pouco e informa fazer muito, principalmente, quando se sabe que ela tem problemas sérios internamente, até na sua forma de produzir e operar. Nós no Ibase queremos que as empresas pratiquem, num primeiro momento, o discurso empresarial da responsabilidade social que está contido nos manuais de gestão de responsabilidade social empresarial, o que implica operar, produzir e atuar na sociedade de forma ética, responsável e transparente. Isso tem a ver com sua própria gestão, é ter responsabilidade com seus produtos, bens e serviços;tratar bem os seres humanos que estão dentro da empresa; escutar os stakeholders; sindicatos, consumidores e organizações do meio ambiente. Não tem nada de revolucionário nisso, mas já é um grande avanço. Porém, não é o que está ocorrendo de fato, até porque envolve transformações de práticas, o que demanda tempo. Nossa maior preocupação é que a empresa comece por onde quiser, mas que não esqueça os outros aspectos da responsabilidade social, se não, o tempo vai passando e você continua só fazendo doação, ação caritativa e não muda suas práticas internas e externas, e aí começamos a entrar num outro patamar que é o da questão ética.
Mobilizadores COEP – A Responsabilidade Social Empresarial começou a se fortalecer no Brasil e na América Latina no final da década de 1990. Na sua avaliação, em que pontos houve avanços nesse período?
R. O principal avanço foi as empresas estarem abertas ao diálogo. Ano passado, participei da mesa de um evento numa entidade empresarial onde estavam sentados representantes da indústria, de uma ONG e de uma entidade sindical. Isso já é um avanço. Em seminários eminentemente empresariais se discutir diversidade de gênero, diversidade racial é fundamentalmente um avanço. Empresas dizerem que seus padrões de atuação são as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também, pois até 15 anos atrás esse era um discurso eminentemente sindical. Isso coloca num novo patamar a discussão sobre o que é empresa e como ela deve se relacionar com a sociedade. Outro avanço foi a questão da imagem. As empresas estão mais preocupadas com sua imagem pública. Começamos a ver preocupação efetiva com diversidade de gênero, formas não pejorativas de pensar a imagem da mulher, diversidade étnicas e raciais, e essa diversidade interna já começa a aparecer nos relatórios das empresas. Um terceiro ponto importante é que as ferramentas para gestão do social e do humano já fazem parte da rotina das empresas, e elas entregam relatórios anuais econômico-financeiro e social-ambiental, com dados internos e externos. O número de empresas que fazem o balanço social segundo o modelo Ibase passou de 4, em 1997, para cerca de 300 atualmente. No início, as empresas faziam seus relatórios sociais só mostrando o bonitinho, agora já há uma tendência de assumirem que fazem pouco ou que não realizam determinadas ações. Até porque o balanço é um instrumento de gestão da empresa e se não aponta o que é pouco ou o que é ruim não serve para orientar a gestão. Se a empresa tem problemas e faz um relatório mostrando só o lado positivo, ela acaba caindo em descrédito. Estamos na era da informação. Não dá para achar que se pode esconder um acidente, uma ação errada. No dia seguinte haverá um dossiê na imprensa ou uma ONG denunciando.
Mobilizadores COEP – E quais seriam aos principais desafios?
R. Para nós da Red Puentes, incluindo as integrantes da Rede do Brasil (Ibase, Ceris, Idec e Observatório Social), o desafio é colocar esse tema da responsabilidade social nas mãos de mais organizações da sociedade civil, para que elas conheçam melhor o tema, saibam utilizar as ferramentas, conheçam o balanço social e as Diretrizes da OCDE. Para nós não serve nem a visão perfeccionista, que às vezes as empresas querem passar, de que são maravilhosas, que estão transformando o mundo, nem a posição inversa de que devem morrer, de que são o diabo. Essas duas posições não mudam nada, não ajudam a transformar as coisas. Temos de pensar nas alternativas sustentáveis. Temos de mudar a matriz do desenvolvimento. Os grandes problemas que temos na sociedade estão embasados numa matriz economicista, financeira, que pensa no desenvolvimento econômico como o motor. Como se depois que o econômico estivesse resolvido ele transbordasse para toda a sociedade. A questão é mudar para a matriz do desenvolvimento sustentável, onde existe o verdadeiro equilíbrio entre o econômico-financeiro, o humano-social, e o ambiental-ecológico. A base da discussão da responsabilidade social, pensando a empresa como um ator fundamental nesse mundo contemporâneo, é discutir o desenvolvimento sustentável. Como fazer com que o negócio deixe de estar fincado num único pé, o econômico-financeiro, e passe a ser sustentado por um tripé: o econômico-financeiro continua, mas temos também o humano-social e o ambiental-ecológico. Não é que um seja melhor do que o outro. Precisamos dos três, pois se qualquer um deles for mais forte do que o outro, o tripé cai.
Mobilizadores COEP – Documento da Red Puentes fala de procedimentos de fiscalização e monitoramento independente das empresas. Como isso se efetivaria na prática?
R. Uma coisa que nos preocupa é que as empresas têm o discurso da verificação. Acham que fazendo uma auditoria está tudo certo. Mas na verdade, sabemos que a empresa que auditora também está no mercado. É importante ter um processo de verificação pública não-estatal, levar a empresa a abrir as portas para uma fiscalização realizada por uma ONG ou um sindicato. Algumas empresas na Europa já começam timidamente a convidar ou a fazer parcerias com ONGs e sindicatos para que promovam verificações externas independentes. Não é uma relação de consultoria ou de auditoria profissionalizada. É profissional, mas não envolve uma relação comercial. A empresa não contrata a ONG ou o sindicato para fazer a auditoria, ela abre as portas. Essa é uma discussão complexa. Como garantir a sustentabilidade desse processo? Se você me paga para eu te verificar, já começamos a gerar uma relação de poder e dependência, mas, por outro lado, um processo desse tem um custo. O dilema é saber quem cobre esses custos. Em alguns lugares o Estado garante, em outros, agências internacionais apóiam. É muito importante chegarmos a um nível de amadurecimento, de diálogo e confiança entre empresa e sociedade. Se houver uma denúncia sobre problemas trabalhistas, por exemplo, que a empresa convide o sindicato para uma verificação, para uma conversa com seus funcionários. As empresas que tiverem coragem de fazer isso darão um salto de credibilidade. Isso quebra a desconfiança.
Mobilizadores COEP – De que meios a sociedade civil dispõe paraexercer um controle público sobre as empresas?
R. Hoje um pouco desse controle público é feito por meio de duas ferramentas, o balanço social e as Diretrizes da OCDE. Temos um padrão brasileiro que é o balanço social, com várias informações. Daí a importância de capacitar e envolver outras organizações da sociedade civil para conhecer essas ferramentas. Se uma empresa publica seu balanço em vários jornais do Brasil, mas a comunidade, o movimento ambiental, os sindicatos não estiverem cientes do poder daquela ferramenta os dados vão ficar lá. O Ibase não tem como saber qual o impacto que uma empresa está causando numa localidade, só a ONG, o sindicato local tem essa possibilidade. As empresas estão fazendo o balanço social e agora está faltando o outro lado: a sociedade estar empoderada, capacitada nessas ferramentas, nesses temas para usar os dados disponíveis. Isso no caso das empresas brasileiras. Em relação às multinacionais, acreditamos muito nas Diretrizes da OCDE, que é um padrão mínimo, comum, de responsabilidade social empresarial, que vale aqui, na Espanha, na Argentina ou na França. É um padrão internacional mínimo, que independe das leis locais e que pode ser cobrado.
O Balanço Social não deve ser entendido, apenas, como relatório anual econômico-financeiro e social-ambiental de uma organização, conforme esclarecido pelo Ciro Torres, mas um forte instrumento de gestão, que remete para uma reflexão sobre o antes (a realidade anterior) e o depois (o novo cenário instituído). Portanto, o ciclo de relatórios do Balanço Social, são marcos, pontos de controle na trajetória econômico-social-ambiental das empresas.
Parabéns aos Mobilizadores COEP pela iniciativa ao Ciro Torres, pela entrevista.