Renato Maluf é o curador do tema ?Combate à Fome e Segurança Alimentar? do Mobilizadores COEP. Professor e cientista social, desde 2007, está à frente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), órgão que busca articular iniciativas de diversos segmentos em prol de políticas de qualidade alimentar e nutricional. Coordena ainda o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde é professor do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, e integra o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN).
Graduado em Economia, tem doutorado em Economia Agrária e dos Recursos Naturais e pós-doutorado em Segurança Alimentar. Em 1991, foi um dos principais articuladores do grupo de trabalho do chamado Governo Paralelo para a elaboração da primeira proposta de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para o país. O projeto resultou na criação, em 1993, do Consea, órgão que ficou alguns anos desativado e foi recriado em 2003.
Nesta entrevista, ele comenta as conquistas obtidas até hoje na área da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e analisa os desafios mais imediatos para consolidar a SAN nas políticas públicas não só federais, mas também estaduais e municipais. Explica também como a mobilização social e a participação cidadã influenciaram na consagração das vitórias já obtidas neste campo.
MobilizadoresCOEP ? Como definir o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional e quais são os principais fatores associados a ele?
R. Temos trabalhado com um enfoque que coloca a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) como um objetivo de políticas públicas orientado pelos princípios da soberania alimentar e do direito humano à alimentação. A definição é a que consta da Lei Orgânica da SAN (Lei 11.346/2006): ?A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis?.
Nesses termos, a SAN se mostra um objetivo permanente e estratégico, no sentido de que deveria orientar as escolhas e rumos do desenvolvimento de um país. O enfoque brasileiro da SAN se destaca pela busca da intersetorialidade das ações e programas, ou seja, pela construção de ações integradas entre diversos setores de governo e sociedade civil.
Isto se deve à compreensão de que são vários os fatores e dimensões que determinam a condição alimentar e nutricional de indivíduos, famílias, grupos sociais e países. Deste modo, as ações englobam desde as questões de acesso aos alimentos, como os modelos de produção e distribuição desses alimentos, os hábitos de consumo, a diversidade cultural, entre outros.
MobilizadoresCOEP – O que é o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan)? Quais seus objetivos e ações?
R. O Sisan, cuja criação está prevista na Lei Orgânica citada acima, consiste em uma proposta de organização das ações governamentais nas três esferas de governo, bem como de envolvimento das organizações da sociedade civil e da iniciativa privada, na perspectiva de promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável por meio de políticas que busquem a soberania e a segurança alimentar e nutricional.
O Sisan é um sistema aberto (intersetorial) que busca inserir o enfoque da SAN nos programas de diversas áreas de governo, como, por exemplo, o Bolsa-Família, Alimentação Escolar, Alimentação e Nutrição, Apoio à Agricultura Familiar, Conservação da Sociobiodiversidade, entre outros.
Ele se encontra ainda nas etapas iniciais de constituição. Já está consagrada a realização de conferências (nacionais, estaduais e regionais ou municipais) a cada quatro anos para o estabelecimento de suas grandes diretrizes, como ocorre em outras áreas (Educação, Saúde, Comunicação etc.). Pode-se afirmar que está também consolidada a ideia de o Consea Nacional ser a principal instância de coordenação da relação entre Estado e sociedade, condição ainda por se estabelecer nas esferas estadual e municipal. Em estágio ainda bastante preliminar se encontra a Câmara Interministerial de SAN (Caisan), instância de governo que reúne os ministérios envolvidos com as ações previstas no sistema e na política nacional de SAN.
MobilizadoresCOEP ? Quais foram os principais avanços que o país obteve no combate à fome e na promoção da Segurança Alimentar e Nutricional?
R. O país tem assistido à redução significativa nos indicadores que avaliam a fome aguda (carência absoluta em crianças e adultos) e também a fome crônica (como a desnutrição infantil). Essa melhoria se deu, inclusive, nas regiões de maior pobreza, como o Nordeste. Se tomarmos a recém-criada Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, que mede a percepção das famílias sobre sua condição alimentar, veremos que cerca de 30% dos domicílios no Brasil ainda se encontram em insegurança alimentar, porém, com redução na insegurança grave (episódios de fome) e prevalência da insegurança moderada (comprometimento da quantidade da alimentação) e leve (comprometimento da qualidade).
MobilizadoresCOEP – O que foi determinante para essas conquistas?
R. Primeiro, ter colocado o enfrentamento da fome, da pobreza e da desigualdade social como temas prioritários da agenda nacional. Como consequência, assistimos à implementação ou expansão de programas (como os de transferência de renda e de apoio à agricultura familiar) e de medidas decisivas (por exemplo, recuperação do salário-mínimo). Segundo, ter sido enfrentado e vencido o debate sobre o papel e a necessidade de políticas sociais universais que assegurem direitos a todos os indivíduos. Esse debate tem forte conteúdo ideológico na sociedade brasileira, que ainda preserva traços conservadores e mesmo autoritários.
MobilizadoresCOEP – De que forma a mobilização e a participação social contribuíram para esse processo?
R. Foram decisivas, inclusive, para o debate político-ideológico que acabo de mencionar. Lembro que a participação social dá suporte à implementação das políticas públicas e contribui para o controle social. Há inúmeros exemplos que comprovam esses papéis, como nos casos do programa de cisternas [desenvolvido no Semiárido pelo Programa 1 Milhão de Cisternas], na aquisição de alimentos da agricultura familiar, no próprio Bolsa-Família, etc. Além disso, há uma ampla mobilização em vários campos, como na economia solidária, com repercussão na condição social, especialmente da população mais pobre.
MobilizadoresCOEP – Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas?
R. No âmbito da sociedade, a resistência dos setores conservadores em admitir que políticas sociais ativas se constituem em instrumento de materialização de direitos humanos. No âmbito governamental, tivemos que enfrentar a conhecida dificuldade de conseguir maior grau de articulação entre os setores de governo (o que, inclusive, também ocorre entre as organizações da sociedade civil), bem como o desafio da abertura para a participação social nas políticas públicas. Destaco, também, as dificuldades em obter o envolvimento dos governos estaduais e municipais, com algumas poucas exceções.
Mobilizadores COEP – O que ainda é preciso para consolidarmos a Segurança Alimentar e Nutricional como um direito, no Brasil?
R. Primeiro, incluir a alimentação entre os direitos previstos no artigo 6º da Constituição Federal, ao lado da Educação, da Saúde e da Habitação. Estamos realizando uma ampla campanha pela aprovação na Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constitucional 047/2003, e conseguimos a aprovação em primeiro turno na Câmara dos Deputados, no dia 3 de novembro, com ampla votação. Agora, será votada em segundo turno, e tendência é que a aprovação seja confirmada, possibilitando que a PEC seja promulgada pelo Congresso Nacional. A promulgação ajudará na formatação do Sistema Nacional de SAN, bem como no desenvolvimento de instrumentos de exigibilidade desse direito dos quais ainda carecemos. Temos que induzir, no Brasil, uma cultura de direitos nessa e em outras áreas, sensibilizando gestores públicos e, sobretudo, a sociedade em geral.
Mobilizadores COEP? A criação e o desempenho do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) são fundamentais na luta pela erradicação da fome e pela promoção de Segurança Alimentar e Nutricional. Quais são, na sua opinião, os maiores desafios do Conselho? Como fortalecer a participação social nos conselhos estaduais e municipais e estimular a formação de conselheiros?
R. O Consea avançou bastante desde sua recriação, em 2003, e adquiriu visibilidade e algum reconhecimento público. Isto não quer dizer que está equacionado nosso principal desafio, que é obter a consolidação da Segurança Alimentar e Nutricional e do direito humano à alimentação na condição de referências obrigatórias na formulação e implementação de políticas públicas no Brasil. Isto já ocorre na esfera federal, onde, no entanto, ainda não conseguimos que tenha existência real a Câmara Interministerial de SAN prevista na Lei Orgânica. Nas esferas estadual e municipal, porém, o quadro é bastante mais sério, pois neles os Conselhos locais ou regionais encontram muitas dificuldades para funcionar e, inclusive, resistências quanto à própria necessidade de existirem.
Ligado ao anterior, temos que avançar na própria capacitação da sociedade civil para esse tipo de participação, que envolve disponibilidade de tempo e também preparo para enfrentar temas de políticas públicas nem sempre simples. A experiência mostra que, onde há organização autônoma da sociedade civil na forma dos fóruns de SAN, os Conselhos tendem a ter vida mais ativa.
Mobilizadores COEP ? Tendo em vista que o COEP é uma Rede Nacional de Mobilização Social que realiza atividades de articulação, capacitação, mobilização e construção de acervos, quais questões, no campo do Combate à Fome e Segurança Alimentar e Nutricional, o senhor considera mais relevantes para abordarmos no ano de 2010?
R. É importante destacar a contribuição que o COEP tem dado nessa área, que se iniciou na primeira experiência de Consea, em 1994, e continua forte desde a recriação do Conselho, em 2003. Destacaria duas contribuições, entre várias outras. No campo da mobilização, reafirmo que não teremos um Sistema Nacional de SAN sem o envolvimento de estados e municípios, o que nos tem exigido um significativo esforço para o qual muito contribuiria o apoio de uma rede nacional como a do COEP. Refiro-me à participação nos Fóruns e nos Conselhos estaduais e municipais de SAN e no apoio a projetos e programas que deem substância à construção dos sistemas estaduais e municipais. No campo da capacitação, o COEP pode apoiar atividades de formação de representantes da sociedade civil nos espaços de participação, como conselhos ou outros relacionados com a SAN.
Mobilizadores COEP ? Além do ?Combate à Fome e Segurança Alimentar e Nutricional?, o COEP atua ainda em temas como: ?Mobilização Social: Direitos, Participação e Promoção da Cidadania?; ?Promoção da Saúde?; ?Educação?; ?Gênero, Combate à Discriminação e Grupos Populacio35nais?; ?Desenvolvimento Comunitário? e ?Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Pobreza?. Considerando a relação desses temas com o do Combate à Fome e Segurança Alimentar e Nutricional, em torno de quais questões fundamentais deveríamos mobilizar nossa rede?
R. Todos eles são temas importantes e de priorização difícil. Estou participando de um grande projeto impulsionado pelo COEP relacionando a questão das mudanças climáticas com vulnerabilidade social que certamente trará importantes contribuições sobre um tema que entrou definitivamente na agenda. Como os temas mencionados são, de algum modo, transversais, pode-se também pensar em iniciativas que reúnam mais de um desses temas ao redor de uma determinada questão. Esse será o caso do projeto sobre mudanças climáticas. Outros exemplos seriam a questão da Amazônia (grande desafio nacional), acesso à água, acesso à terra e aos recursos naturais, entre outros.
MobilizadoresCOEP ? Considerando que a Rede COEP é integrada por pessoas, organizações, escolas, universidades e comunidades de baixa renda de todo o Brasil e que cada uma delas desenvolve iniciativas de mobilização e participação social, gostaríamos de contar com sua reflexão sobre que iniciativas esses diferentes atores podem desenvolver para a mobilização no Combate à Fome e promoção da Segurança Alimentar e Nutricional.
R. Pessoas ? Inserir-se em fóruns e conselhos.
Organizações ? Ultrapassar os limites dos projetos para envolver-se na proposição de políticas e programas.
Escolas ? Incorporar a questão alimentar e nutricional nos parâmetros curriculares com um enfoque de soberania e segurança alimentar e de direito à alimentação.
Universidades ? Estimular o desenvolvimento de pesquisas sobre soberania e segurança alimentar e nutricional e sobre o direito à alimentação, com um enfoque interdisciplinar consistente com a intersetorialidade que buscamos para as políticas públicas.
Comunidades de baixa renda ? Organizarem-se visando ao acesso universal e equitativo às políticas públicas e para a implementação de estratégias que lhes confiram maior grau de autonomia.
Entrevista concedida a: Maria Eduarda Mattar
Edição: Eliane Araujo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
Parabeniso o Renato pelo grande trabalho que vem desenvolvendo no CONSEA Nacional.
Mas precisamos de encontrar um meio de fazer a sociedade e as entidades trabalharem para a promoção de politicas públicas no nosso pais.
Parabéns professor pela visão que possui e pelo esforço destinado a causa tão nobre.