Nessa entrevista, Cristiane Rose Duarte e Regina Cohen, coordenadoras do Núcleo Pró-Acesso da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, falam sobre a questão da acessibilidade no país. As coordenadoras salientam que poucos são os espaços totalmente acessíveis e abordam as principais barreiras a serem vencidas neste sentido.
Rede Mobilizadores: O acesso ao espaço público é um direito de todos os cidadãos, mas o que se vê na prática é que as pessoas com deficiência muitas vezes não têm acesso a vários locais. Quais as principais barreiras ambientais encontradas por pessoas com deficiência nos espaços públicos? O que pode ser feito para modificar esta realidade no Brasil?
R.: De fato, nossos levantamentos nas cidades brasileiras mostram que poucas são as ruas e praças totalmente acessíveis. O ideal seria eliminar as barreiras permitindo que todos os cidadãos pudessem se encontrar, compartilhar os ambientes urbanos, interagir, enriquecer a cidade com seus contatos múltiplos… Algumas medidas iniciais como a construção de rampas, a colocação de pisos táteis nas calçadas, a desobstrução das calçadas, a oferta de vagas para estacionamento de carros adaptados, a instalação de sinaleiros sonoros e avisos visuais (entre outras medidas) já trariam um grande impacto nas vias públicas, mas não devemos lutar só por isso. Na verdade, além das adaptações físicas existe também a questão da conscientização da população e também a formação de um quadro de funcionários públicos para atender a pessoas com alguma deficiência sensorial ou com dificuldade na mobilidade. Por exemplo, os estabelecimentos públicos deveriam sempre dispor de algum funcionário treinado na Linguagem Brasileira de Sinais para atender os cidadãos com deficiência auditiva; nos cinemas, museus e teatros, deveriam ser previstos pistas táteis para a orientação de cegos e informações auditivas sobre exposições. As principais barreiras residem na falta de consciência da população sobre a questão da diferença física e sensorial.
Rede Mobilizadores: O que torna um espaço acessível? Que tipo de barreiras devem ser rompidas? Um espaço adaptado a apenas um tipo de deficiência pode ser considerado acessível ou a acessibilidade deve sempre contemplar todos os tipos de deficiência?
R.: Muitos gestores urbanos acham que prover suas ruas de rampas seria a mesma coisa que promover a acessibilidade. Ledo engano. Muitas vezes, uma pessoa cega que precisa se deslocar guiando sua bengala pelo meio-fio da calçada pode ter um problemão se ela se deparar com uma rampa não-sinalizada! Talvez este não seja o melhor exemplo, mas o que queremos dizer é que a acessibilidade deve ser pensada de forma mais global. Se pensarmos em resolver pequenos problemas para um só tipo de dificuldade, estaremos certamente criando mais problemas em outros campos. Mas, se seguirmos o pensamento do Design Universal, aí sim, seremos capazes de pensar numa acessibilidade ampla, sem restrições nem especificidades.
Rede Mobilizadores – O que é o design universal? Suas regras costumam ser contempladas no planejamento, construção e equipamento do espaço público?
R.: Design Universal é um preceito de projetos concebidos de forma universal, pensando no maior número possível de usuários, tentando não excluir ninguém. Por exemplo: em vez de construir um edifício com uma rampa na lateral do prédio, o ideal seria fazer um edifício com uma ampla entrada num pavimento térreo, para que todos possam entrar pela mesma porta, evitando a discriminação de quem só poderia subir pela tal rampa lateral. Este é só um exemplo, mas mostra a maneira de pensar mais universalmente, mais globalmente. O termo “universal design” foi usado pela primeira vez por Ron Mace, em 1985, que estabeleceu sete princípios básicos para nortear os projetos inclusivos. Em nossa opinião, este conceito representa uma visão positiva uma vez que não se restringe ao objeto arquitetônico, transcendendo largamente suas fronteiras, seja fisicamente, culturalmente ou socialmente falando. Infelizmente, ainda é raro encontrar, na prática, projetos de arquitetura, urbanismo e desenho industrial que contemplem esse conceito.
Rede Mobilizadores – Quais os sete princípios básicos nos quais devem se basear os projetos inclusivos?
R.: São eles:
1- Equiparação nas possibilidades de uso – o design universal é útil e comercializável às pessoas com habilidades diferenciadas. Por exemplo: arquiteturas que se abrem a todos os visitantes sem ter aquelas rampinhas laterais que segregam os usuários cadeirantes;
2- Flexibilidade no uso – o design universal atende a uma ampla gama de indivíduos, preferências e habilidades. Por exemplo: objetos que podem ser usados por destros e canhotos, por pessoas com maior ou menor mobilidade manual etc;
3- Uso Simples e intuitivo – o uso do design universal é de fácil compreensão, independentemente de experiência, nível de formação, conhecimento do idioma ou da capacidade de concentração do usuário. Por exemplo: a legibilidade com que nos deslocamos num edifício, a facilidade de obter informações num prédio público (conseguida, por exemplo, por meio de placas informativas com ilustrações e avisos sonoros ou mapas táteis) independente da língua que se fala no país;
4- Captação da informação – o design universal comunica eficazmente ao usuário as informações necessárias, independentemente de sua capacidade sensorial ou de condições ambientais. Por exemplo: objetos com manuseio simples e funcionamento fácil de ser compreendido, como máquinas e equipamentos domésticos.
5- Tolerância ao erro – o design universal minimiza o risco e as conseqüências adversas de ações involuntárias ou imprevistas. Por exemplo: rampas com patamares intermediários que não obrigam o cadeirante a descê-la até o final se decidir retornar, ou elevadores que se abrem ao toque na porta;
6- Mínimo esforço físico – o design universal pode ser utilizado com um mínimo de esforço, de forma eficiente e confortável. Por exemplo: portas com abertura automática ou sensores de presença para iluminação;
7- Dimensão e espaço para uso e interação ?o design universal oferece espaços e dimensões apropriados para interação, alcance, manipulação e uso, independentemente de tamanho, postura ou mobilidade do usuário. Por exemplo: banheiros adaptados a todos e não com apenas uma cabine segregando o uso para pessoas com deficiência .
Rede Mobilizadores – Quais são as normas legais que tratam da aces
sibilidade no Brasil? Essa legislação e aplicável a quem? Que tipo de penalidades atribui? Além dessas normas, existem fontes que podem ser consultadas por empresas e profissionais interessados em tornar suas instalações acessíveis? Quais?
R.: O Brasil tem muitas normas e leis que garantem os direitos das pessoas com deficiência. Pena que nem todas são colocadas em prática ou divulgadas suficientemente. Como exemplo, citamos a Lei 7853/89 que apresenta garantias na área da educação, da saúde, da formação profissional e do trabalho, na área de recursos humanos, das edificações e criminalização do preconceito sofrido por pessoas com deficiência. Além das normas brasileiras (como a ABNT 9050), alguns decretos lei também buscaram agilizar a implantação de medidas de acessibilidade, como o 5296/2004, que estabelece critérios básicos para a promoção da acessibilidade. Uma lista completa das leis e normas que garantem os direitos das pessoas com deficiência está disponível no site do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE : www.mj.gov.br/sedh/ct/CONADE /index.asp
Rede Mobilizadores – Como uma pessoa com deficiência pode exigir seus direitos quando não consegue ter acesso a um lugar público, devido a barreiras arquitetônicas ou de comunicação? A quem ela pode recorrer?
R.: Existem comissões de defesa dos direitos da pessoa com deficiência nas câmaras dos vereadores e nas assembléias legislativas da maioria das grandes cidades brasileiras. No entanto, sempre se pode recorrer ao Ministério Público para ações contra a falta de acesso, uma vez que este direito é constitucional.
Rede Mobilizadores – Que papel a universidade, considerada um espaço democrático, deve desempenhar para romper as barreiras físicas e sociais ao acesso de pessoas com deficiência? Como a UFRJ se comporta neste sentido?
R.: A Universidade, além de formar os profissionais, tem também a missão de formar cidadãos. Assim, não apenas a universidade deve ter papel fundamental na conscientização de seus alunos, mas deve também ser a produtora de ciência e tecnologia para a diminuição da exclusão social de pessoas com deficiência. Na UFRJ, alguns grupos já vinham trabalhando individualmente com as questões ligadas ao assunto (inclusive o nosso grupo, que trabalha com a acessibilidade física), mas só recentemente houve um esforço no sentido de reunir esses grupos e criar um núcleo interdisciplinar de acessibilidade mais atuante. Este grupo tem se reunido para estabelecer as diretrizes para tornar a UFRJ mais acessível para todos, não apenas aos que nela ingressam desde o vestibular, mas, também, abrindo suas portas a toda a sociedade.
Rede Mobilizadores – A partir dos anos 80 aumentou o número de pessoas com deficiência matriculadas em universidades. A que se deve isso? Que medidas as universidades vêm tomando desde então para facilitar não só o ingresso deste público nas universidades, mas a permanência dele no local de ensino?
R.: A universidade vem, aos poucos, buscando a melhoria do acesso físico, do acesso às bibliotecas, do acesso ao ensino. Por outro lado, a população está cada vez mais consciente de seus direitos e sabe exigir, lutar, conquistar seu espaço. De fato, é um processo muito lento, mas irreversível.
Rede Mobilizadores – O que é e como atua o Núcleo Pró-Acesso?
R.: O Núcleo Pró-acesso, da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, é um grupo de pesquisa, ensino e projeto em acessibilidade e desenho universal, que existe desde 1998, e é apoiado por órgãos de fomento à pesquisa como CNPq e Faperj. No Núcleo, temos desenvolvido trabalhos de pesquisa e extensão, dentre os quais estão metodologias de avaliação da acessibilidade de espaços, metodologia para laudos técnicos de acessibilidade, projeto de brinquedos acessíveis para praças públicas e uma metodologia para guias turísticos de acessibilidade Na área de ensino, fomos os primeiros a introduzir o tema no currículo de nossa faculdade, e os recursos metodológicos que utilizamos na disciplina foram agraciados em 2002 com um Prêmio da Associação Européia de Ensino de Arquitetura.
Rede Mobilizadores – O Núcleo Pró-Acesso baseia seu trabalho em conceitos como “Acessibilidade”, “Desenho Universal”, “Rota Acessível”, “Exclusão Espacial” e “Desvantagem”. Você poderia falar um pouco destes conceitos, explicando a inter-relação entre eles?
R.: “Rota Acessível” consiste no percurso livre de qualquer obstáculo de um ponto a outro (origem e destino) e compreende uma continuidade e abrangência de medidas de acessibilidade. Ou seja: para que consideremos uma escola acessível, de nada adianta, por exemplo, assinalar a existência de uma “rampa” e uma “biblioteca onde as prateleiras têm altura adequada” se entre um e outro existir um acesso com roleta ou uma porta giratória. A “acessibilidade” ao espaço construído não deve ser compreendida como um conjunto de medidas que favoreceriam apenas às pessoas com deficiência – o que poderia até aumentar a exclusão espacial e a segregação destes grupos, mas sim medidas técnico-sociais destinadas a acolher todos os usuários em potencial. Projetar um espaço acessível significa fazer um ambiente livre de barreiras, integrador, que permita a participação. A “Exclusão Espacial” foi um conceito que desenvolvemos para assinalar que os espaços se transformam na materialização das práticas segregatórias e da visão de mundo de sociedade que dá menor valor às diferenças (sociais ou físicas). Quando não são acessíveis, os espaços agem como atores de um apartheid silencioso que acaba por gerar, nas pessoas com restrições físicas, a consciência de pertencer a uma minoria excluída da sociedade. A “Desvantagem” é resultante dos desajustes entre as características físicas das pessoas e as condições do ambiente em que elas estão. A deficiência pode ser vista, assim, como uma situação contextual e não como um problema irremediável (Por exemplo: uma pessoa que mora no alto de uma escadaria está em desvantagem em relação a quem mora mais perto da rua). Este conceito de desvantagem nos leva a compreender que é o espaço que é deficiente: Muitas das limitações das Pessoas com Deficiência não se devem a uma falta de habilidade, mas a uma deficiência do ESPAÇO construído para acolher diversidades.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Edição: Eliane Araujo
Tema de importante reflexão, pois nos mostra como a todo momento as pessoas com deficiência física esbarram em situações que as constragem ou reforçam a diversidade. Gostei muito do assunto.