Naidison de Quintella Baptista, coordenador executivo da Articulação no Semi-Árido (ASA) no estado da Bahia e membro do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), explica, nessa entrevista, por que a água é um elemento fundamental de segurança alimentar.
Naidison também ressalta que várias das tecnologias játestadas e usadas pela população do Semiárido poderiam virar políticas públicas, garantindo água para o consumo humano, para a produção e para dessedentação de animais. O especialista alerta, no entanto, que, com as mudanças climáticas, até mesmo a implantação de cisternas pode ser prejudicada, pois não adianta ter cisternas se não há água da chuva para ser armazenada.
Mobilizadores COEP – Quantas pessoas no Brasil não têm acesso à água hoje? Onde estão mais concentradas?
R.:Posso falar em termos do Semiárido. Até 2010, estima-se que cerca de 990 mil famílias não tenham acesso à água potável de qualidade, o que deve abranger pelo menos 4 milhões de pessoas só na região.
Mobilizadores COEP – Com as mudanças climáticas, o acesso à água tende sofrer alterações. De que tipo?
R.: Sim, muitas alterações. Vou falar na ótica do Semiárido, que é onde a ASA trabalha. Lá, há muitos rios temporários, e a tendência é termos mais ainda porque as nascentes vão sendo cada vez mais prejudicadas e vão desaparecendo. As chuvas também passam a ter uma característica totalmente diferente. Havia áreas no Semiárido onde chovia com mais frequência, e essa frequência vem diminuindo cada vez mais. Dessa forma, até o processo de implantação de cisternas pode sofrer interrupções. Não adianta ter cisternas, se não temos chuva para abastecer a cisterna. As mudanças climáticas tendem a causar desertificações, e estas desertificações vão provocar cada vez menos acesso à água para consumo e produção.
Mobilizadores COEP – Por que o acesso à água é considerado fundamental para garantir a segurança alimentar da população?
R.: Bom, somos compostos basicamente de água. Precisamos, portanto, manter essa composição para vivermos. Sendo assim, a base para garantir a nossa segurança alimentar é a água. A água fundamenta todo o processo de segurança alimentar que precisamos implementar para viver bem. Usamos água para beber, para higienizar os alimentos, para produzi-los, cozinhá-los e prepará-los. A falta de água de qualidade tem várias implicações: sede [quantas pessoas morrem de sede hoje no Brasil!!], doenças produzidas por vetores hídricos, não-produção de alimentos e outras. A água é um elemento de segurança alimentar. No entanto, é muito vista como um bem de produção e comercialização, o que impede uma leitura mais profunda da água como elemento de segurança alimentar.
Mobilizadores COEP – De que forma a escassez da água interfere na segurança alimentar da população?
R.: No Semiárido, quando as pessoas não têm água potável de qualidade, bebem da água que abastece também os animais. Isso implica contaminação e doenças transmissíveis pela água. As pessoas também não consomem a quantidade de água necessária para viverem bem. As famílias ficam sem produzir alimentos, ou não produzem alimentos saudáveis para consumo e comercialização. Quantas hortas são feitas com inúmeras quantidades de agrotóxicos? Depois, estes produtos vão para a mesa do consumidor contaminados por agrotóxicos. Agrotóxicos estes que estão tanto nas águas dos rios, em virtude de grandes plantios do agronegócio e dos dejetos das grandes empresas, quanto nos próprios plantios. Portanto, se não há água de qualidade suficiente, aumenta ainda mais a ameaça de contrair doenças, muitas vezes graves. A água inicia e fecha o ciclo da pessoa, interferindo na mais simples condição de higiene até o processo de produção dos alimentos.
Mobilizadores COEP – Que atividades econômicas desperdiçam mais água? Por que há tanto desperdício?
R.: Irrigação e agricultura. Na agricultura irrigada, há desperdícios por vários fatores. Um deles é porque esta agricultura se volta muito para exportação e muito pouco para o consumo interno da população. Utiliza-se a irrigação para a produção em grande escala de soja e outros produtos que não são essenciais à sobrevivência das pessoas. A irrigação ainda usa metodologias e tecnologias que já estão de certo modo superadas. Uma irrigação com estilo pivô central* no Semiárido é quase uma afronta, porque desperdiça água onde ela já é escassa; existem outras tecnologias que poderiam desperdiçar menos água. A grande questão é que não há um planejamento efetivo do uso da água de modo racional e para que seja vista como um bem destinado a todas as pessoas. Hoje, há muita concentração da água e quem tem água concentrada em seu poder acha que pode usá-la da forma que quiser.
Mobilizadores COEP – De que forma os projetos de geração de energia elétrica podem agravar as condições de segurança alimentar da população?
R.: Temos que ressaltar que são projetos necessários, e que seriam viáveis dentro de um planejamento racional, que levasse em conta todos os componentes necessários para a preservação da natureza e a produção de alimentos para assegurar a segurança alimentar da população. Porém, os projetos atuais, em geral, não levam em consideração o conjunto dos fatores. Focam somente a produção de energia propriamente dita e o retorno de recursos financeiros. Não consideram os fatores ambientais e sociais. Muitos expulsam indígenas, quilombolas de suas terras e, ao fazerem isso, ao incidirem sempre negativamente sobre as populações que sempre pagaram a conta no Brasil, que são as mais pobres, ameaçam sua subsistência e, portanto, sua segurança alimentar. Acredito que existam estudos que sejam menos grandiosos e que levem em consideração aspectos sociais e ambientais em sua implantação.
Mobilizadores COEP – Que condições socioespaciais devem ser consideradas na elaboração de políticas públicas de segurança alimentar, tendo como foco o acesso à água?
R.: É um pouco do que falamos anteriormente. O desenvolvimento não pode ser olhado como acumulação e geração de riquezas simplesmente. Para ter a perspectiva de sustentabilidade, deve observar todos os aspectos que compõem a realidade humana: aspectos sociais, econômicos, ambientais, políticos etc. Hoje, muitas vezes os aspectos social e ambiental são colocados em segundo plano, porque é considerado mais importante gerar divisas, exportar, ter uma balança comercial favorável. No meu ponto de vista, o fundamental é que, ao considerar um projeto de país, ao se elaborarem políticas públicas, se levem em conta todos os aspectos sociais, econômicos, ambientais etc relacionados.
Por exemplo, o álcool é tido como um combustível mais limpo, pois polui menos etc. Porém, sabemos que no processo de produção do álcool, temos vários fatores que não o tornam tão limpo assim. Produz uma escravidão em quem planta e colhe a cana. Os bóias-frias são praticamente escravizados no processo de produção do álcool. Se levarmos isto em consideração, o álcool não é tão limpo assim. Quando o plantio de cana invade espaços como mananciais e nascentes dos rios, a produção do álcool se torna predatória; prejudica todo um ecossistema, repercutindo na segurança alimentar das pessoas. Quando a produção de cana substitui o plantio de alimentos se torna mais predatória ainda. Penso que é possível reverter este cenário, alterando etapas do processo, mas é preciso ter vontade política.
Mobilizadores COEP – Quais as principais recomendações do Grupo de Trabalho do Consea para mudar o cenário atual brasileiro e democratizar o acesso à água no país?
R.: O Consea teve uma plenária sobre a água, em julho de 2009, em Recife. Na ocasião, foram tratados alguns aspectos, porém não foram pontuados todos os elementos, o que vai acontecer ainda em 2010. Posso citar algumas recomendações. A primeira delas se refere à água e agricultura. O Consea aconselha que se criem condições para se ter uma regulamentação que incida sobre as irrigações, para que sejam menos predatórias, se tenha um processo mais adequado no uso da água.
O Consea fez recomendações sobre a água nas escolas no Semiárido. Muitas escolas da região deixam de funcionar porque não há água para consumo humano no momento das aulas. O Conselho recomenda aos órgãos estaduais e federais estudos e o incremento de políticas que sanem esta situação, seja com cisternas ou outras metodologias e tecnologias.
Uma terceira recomendação é ampliar a implementação de cisternas para armazenar água para consumo humano, bem como outros tipos de tecnologias de captação de água da chuva para produção. Tecnologias estas que são de domínio da população e que já são usadas. O Consea aconselha que se parta das experiências da população e se façam políticas públicas neste sentido.
A Agência Nacional de Água (ANA) realizou um estudo que mapeia os mananciais ea possibilidade de abastecimento de cidades com mais de 5 mil habitantes no Semiárido. O estudo indica a implementação de políticas a partir destes mananciais e políticas de abastecimento de água para todo o Semiárido. O Consea aconselha que se ampliem estudos como este para outras regiões do país e para aglomerados menores do que 5 mil pessoas. Ou seja, se a cisterna não for a tecnologia mais adequada para estes aglomerados, quais seriam as tecnologias ideais para prover o abastecimento destas comunidades?
Mobilizadores COEP – Que práticas existentes hoje no Semiárido deveriam passar para o campo das políticas públicas?
R.: Uma das práticas já está, de certo modo, assumida como política pelo governo federal, que são as cisternas. Não só na construção das cisternas, mas na qualificação das pessoas para o acompanhamento da construção e utilização adequada da água. Temos outras práticas que estão começando a ser assumidas, como a barragem subterrânea – espécie de parede feita dentro da terra, que barra águas de chuvas que escorrem no interior do solo, formando, com isso, um vazante artificial. Dependendo da quantidade armazenada, a água pode durar de um a dois anos. Ela não pode ser usada em todos os espaços, mas se ajusta a muitos. Trata-se de um ótimo instrumento de armazenamento de água para produção e também para dessedentação de animais. Já existe um uso bastante generalizado desta tecnologia, inclusive funcionando em parte com recursos do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS).
Hátambém a cisterna calçadão, uma alternativa simples e barata, que permite armazenamento de água de forma semelhante ao armazenamento da água potável. Só que a cisterna calçadão armazena água que escorre do terreiro [a água é captada num terreiro cimentado com inclinação para o reservatório], e a cisterna para consumo humano armazena água que escorre do telhado. A cisterna calçadão tem capacidade de armazenar cerca de 52 mil litros de água. É suficiente para dessedentação de animais, regar pequenas hortas e para outros usos domésticos, como lavar louça e tomar banho.
Existe também a bomba popular, que se coloca em poços jáescavados que foram abandonados porque não se mostravam viáveis para armazenar água em grandes quantidades e porque a água era um pouco insalubre. Mas para alguns usos domésticos (lavar roupa, tomar banho etc) e para a dessedentação de animais, ela é boa. Ela vem sendo cada vez mais instalada em pequenas comunidades. É de fácil manuseio e suficiente para abastecer de 20 a 30 famílias. Estes são apenas alguns exemplos. Existem mais de 30 tecnologias testadas pela população, e que são viáveis e sustentáveis. Estas tecnologias garantem água e permitem uma melhor convivência com o Semiárido, assegurando a segurança hídrica e nutricional da população.
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*Pivôcentral de irrigação éum sistema de agricultura irrigada por meio de um pivô. Nesse sistema, uma área circular é projetada para receber uma estrutura suspensa que em seu centro recebe uma tubulação e por meio de um raio que gira em toda a área circular, a água é aspergida por cima da plantação.
O ponto central de conexão tubular do é o pivô central. A tubulação que recebe a água de um dispositivo central sob pressão, chamado de ponto do pivô, se apóia em torres metálicas triangulares, montadas sobre rodas, geralmente com pneu. As torres movem-se continuamente acionadas por dispositivos elétricos ou hidráulicos, descrevendo movimentos concêntricos ao redor do ponto do pivô.
Entrevista do Grupo Combate à Fome e Segurança Alimentar
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
Muito bem colocada a entrevista do nosso companheiro Naidson. Se as pessoas tivessem acesso a uma entrevista dessas, tenho certeza que haveria mais consciencia. Pois estamos falando de um especialista em ONG’s. Seria fundamental essa divulgação em outras esferas para que todos tivessem conhecimento desta entrevista. PArabens a vcs do COEP e parabens a NAydson pela experiencia de vida.
Porreta a entrevista! Sou do Estado da Bahia e conheço bem o semiarido nordestino. Atualmente moro no Estado do Pará, e como relação a água, existe algumas semelhanças. Apesar de termos bastante água aqui na Amazônia, grande parte dela precisa de tratamento para o consumo humano! e isso quase não acontece ainda. Portanto, em torno de 70 % da população termina consumindo água de má qualidade.