A população afrodescendente obteve importantes conquistas nos últimos anos, como a edição do Estatuto da Igualdade Racial, que visa acelerar o processo de implantação de uma política afirmativa para acabar com a desigualdade socioeconômica entre negros e não negros; a implantação das cotas nas universidades públicas, e, mais recentemente, o envio ao Congresso Nacional do projeto que prevê a adoção das cotas nos concursos públicos federais.
No entanto, no dia a dia, os negros continuam enfrentando muitos problemas, discriminações e tratamento desigual, demandando ações afirmativas nas escolas, no serviço público, no trabalho, na cultura, no território, e em todos os demais espaços sociais. A violência contra este grupo populacional é também um grande desafio, especialmente em relação os jovens. Em 2012, o total de jovens negros mortos foi 71,7% maior que o de brancos. Da mesma forma, é recorrente a intolerância em relação às religiões de matriz africana.
Nesta entrevista, Edgard Aparecido de Moura, membro da Pastoral Negros do Brasil, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e da Frente Pró Cotas do Estado de São Paulo, fala sobre o aumento da violência contra os negros; da necessidade de desmilitarização da polícia; da importância das ações afirmativas como as cotas raciais; das conquistas e dos desafios que ainda se apresentam para que a igualdade racial seja, de fato, uma realidade no Brasil.
Rede Mobilizadores – Mesmo com as ações e políticas afirmativas das últimas décadas, e com a mobilização de movimentos sociais, a discriminação aos negros, e outras minorias, persiste no país. Em sua opinião, onde estão as maiores disparidades raciais?
R.: Eu tenho 49 anos e 35 anos de militância no movimento social e no movimento social negro. Tenho três filhos –Winne Dandara da Silva Moura, 12 anos (em homenagem à grande ativista da Luta racial e mulher de Mandela), Sawandi Oba de Moura, 20 anos (em homenagem ao Rei Fundador), e Aderemi Oba de Moura, de 22 anos (em homenagem ao Rei espiritual) –, e toda consciência de que ser negro, indígena ou remanescente de comunidade tradicional e ser de religião de matriz africana já nos torna parte de um grupo discriminado que inventaram ser minoria, mesmo sabendo que a população negra, segundo o IBGE, corresponda 47% da população do Brasil, e esta dita minoria corresponda a mais de 52% da população.
Na verdade, somos a maioria e, por ironia, é esta maioria que sofre com a falta de uma política afirmativa que a equipare à população branca em termos de qualidade de vida, a qual envolve saúde, educação, trabalho, uma melhor alimentação – adequada e saudável -, e a questão socioeconômica.
O Estatuto da Igualdade Racial é o instrumento que faltava para acelerar o processo de implantação de uma política afirmativa que vise acabar com a desigualdade social e econômica. Temos o racismo institucional, ambiental. Todo negro ou afrodescendente tem de provar, a todo instante, que é capaz de assumir cargos estratégicos e de qualificação técnica na empresa privada ou pública. Por que nós negros temos de receber os menores salários? Por que sempre há desconfiança em relação a nossa capacidade?
A Polícia Militar está matando nossos jovens. Minha maior preocupação são meus filhos, sobrinhos e tantos outros jovens que vivem em uma segregação imposta pelo sistema, onde a cor da pele determina ser alvo de ladrão, grupo de extermínio e do policial despreparado. Não tenho dúvida que precisamos de uma política de ação afirmativa, nas escolas, no serviço público, no trabalho.
Apesar de tudo, já avançamos muito. Hoje, já estamos em alguns espaços políticos, judiciários. Há advogados, defensores negros, mas os avanços ainda são muito tímidos para um grupo populacional que corresponde a mais da metade da população brasileira.
Rede Mobilizadores – Em relação à violência, cruzando as informações do Ministério Público com dados do censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vemos que, em 2011, a taxa de homicídios da população negra foi de 35,2 por 100 mil habitantes, taxa 9% acima da observada cinco anos antes. Em sua opinião, a que se deve este incremento?
R.: Além da alta no número de mortos, o Mapa da Violência mostra que há uma tendência crescente de vitimização dos negros no Brasil. Em 2002, morriam proporcionalmente 65,4% mais negros que brancos, enquanto, em 2010, essa taxa saltou para 132,2%. Entre os brasileiros com idade de 15 a 29 anos, a situação piora. Naquele ano, 19.840 jovens afrodescendentes foram mortos, ante 6.503 brancos. Em 2012, o total de jovens negros mortos foi 71,7% maior que o de brancos. Proporcionalmente, são mortas duas vezes e meia mais jovens negros que brancos.
Nós do Comitê de Luta Contra o Genocídio da Juventude Negra e Periferia de São Paulo defendemos a desmilitarização da polícia. Com relação às políticas de segurança pública, o debate sobre a desmilitarização é prioritário e urgente. A lógica militar impõe a perspectiva da guerra e do confronto bélico, onde o alvo são regiões periféricas, bairros pobres onde há pouca presença do Estado brasileiro, por meio de políticas públicas, como moradia, saúde, educação, e o inimigo alvo é a classe mais popular, integrada por pobres, pretos e na maioria jovens.
Em algumas ações da Polícia Militar se percebe uma ação de guerra, tornada visível em históricas operações e invasões policiais justificadas pela “guerra às drogas”, com rangers e pick-ups comprados com o dinheiro do Programa Nacional de Segurança, além de outros aparatos de guerra. Percebemos o mesmo nas diversas chacinas e execuções que deixam para trás centenas de mortos, sem contar a presença de grupos de extermínio. E o Estado continua ausente no que diz respeito a políticas públicas de saúde, educação, e a serviços como, coleta de lixo, cultura e lazer, sempre prometidos pelas autoridades.
Rede Mobilizadores – Nos últimos anos, enquanto o Sul e o Sudeste têm vivenciado redução das taxas de homicídios, o Norte e Nordeste têm visto um aumento da violência. Existe uma relação desta mudança geográfica com o aumento de homicídios de negros? Comente.
R.: A violência está ligada à questão socioeconômica, à desigualdade social e à falta de acesso a políticas publicas; e no Norte e Nordeste você tem ainda um conflito muito forte decorrente da questão agrária, além da violência rural e urbana. Mesmo o Sudeste e o Sul sendo regiões muito ricas, a concentração de renda e riqueza está na mão dos não negros. Eu digo que é a mesma proporção em qualquer outro estado onde a forma de atuação da polícia e o acesso a política pública também é diferenciado entre os pobres e os ricos.
Rede Mobilizadores – Que políticas públicas voltadas à inclusão social dos negros podem ser implementadas para reverter o quadro?
R.: Em minha opinião, precisamos de uma política pública com orçamento para ações afirmativas, em todos os espaços. O Estatuto da Igualdade Racial tem a proposta de criação de um Plano de Ações Afirmativas em áreas como educação, saúde, trabalho, terra e território. Mas sabemos que existe uma ineficiência do Estado brasileiro.
Rede Mobilizadores – Quais as principais metas do Plano Plurianual (PPA 2012-2015), primeiro a ser elaborado com base no Estatuto da Igualdade Racial?
R.: Não sei quais são, mais coloco abaixo os seis pontos principais em minha opinião que estão no PPA:
• Formar 7.500 jovens locais em políticas públicas de juventude;
• Implantar 150 unidades do programa Estação Juventude*1;
• Implantar, em todas as 27 unidades da federação do país, a Política de Atenção às Pessoas com Doença Falciforme e outras hemoglobinopatias;
• Vistoriar e avaliar 520 mil hectares de terras inseridos nos territórios quilombolas, indenizando 250 mil hectares;
• Publicar 190 Relatórios Técnicos de Identificação e Demarcação (RTIDs), identificando 660 mil hectares, beneficiando 13 mil famílias quilombolas;
• Construir cadastro de programas de ações afirmativas no âmbito das três esferas de governo e da iniciativa privada.
Rede Mobilizadores – Como a sociedade civil deve exercer o controle social destas políticas para que sejam de fato efetivas?
R.: O movimento social negro deve criar espaços mistos de sociedade civil e governo, como fóruns, comitê, conselhos, para debates e discussão visando a politização de problemáticas que afetam a vida coletiva, onde o foco seja o Estatuto da Igualdade Racial e toda esta falta de ações afirmativas. Na pauta devem estar temas como a violência, a discriminação e o orçamento público
Por exemplo: constituição de um grupo de trabalho com efetiva participação social na instituição de Programas de Proteção às Vítimas e Testemunhas, bem como, Programa de Defensores de Direitos Humanos, com autonomia e pautado nos direitos da pessoa humana.
Representantes de movimentos e lideranças políticas deram um passo importante na luta pela aprovação do Projeto de Lei 4.471/12, que propõe a apuração do uso do “auto de resistência” nos registros de mortes causadas por policiais em serviço [A proposta altera o Código de Processo Penal e prevê a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho. Atualmente, estes casos são registrados pela polícia como autos de resistência ou resistência seguida de morte e não são investigados]. Queremos o compromisso do presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves, de colocar a matéria em votação.
Rede Mobilizadores – Quais os principais pontos discutidos na III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial?
R.: Temas como Democracia e Desenvolvimento sem Racismo, Participação Social, Violência contra Juventude Negra e a criação do Sistema de Promoção de Igualdade Racial. Debatemos a importância de pressionar a Câmara dos Deputados para votar o projeto relativo aos registros de mortes causadas por policiais em serviço.
Rede Mobilizadores – Qual o balanço que faz das cotas raciais nas universidades?
R.: Hoje, podemos fazer um balanço positivo. Eu faço parte de uma organização do movimento social negro que, em 2013, completa 30 anos, a Pastoral Negros do Brasil, organizada em 15 estados do país. Ela e tantas outras organizações do movimento social negro têm a mesma avaliação. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, reconheceu a constitucionalidade do critério étnico-racial para o acesso à universidade, com objetivo de, por meio de uma política pública afirmativa, diminuir as desigualdades na estrutura social do Brasil. Segundo o STF, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal), demanda uma postura ativa do Estado brasileiro, que, por isso, tem o dever de realizar ações para promover a igualdade.
Na área de Ciências, o balanço das comparações entre cotistas e não-cotistas difere bastante do efetuado para a área de Humanidades. Em todas as três turmas da Universidade de Brasília (UnB), consideradas em um estudo feito pela universidade, na ampla maioria das carreiras de maior prestígio, os alunos não cotistas obtiveram médias superiores às dos cotistas. Mas, o cenário da área se mostrou distinto quando levados em conta também os cursos menos valorizados. Considerem-se os dados para o conjunto da área. Na turma mais antiga, os cotistas lograram melhor rendimento em 11% dos cursos da área, todos nas carreiras menos valorizadas, e, em 21% dos cursos, as diferenças foram desprezíveis.
Na turma de 2005, invertendo-se o padrão anterior, os cotistas obtiveram melhores notas em quase 1/3 dos cursos da área, e, em mais da metade deles, as diferenças entre os dois segmentos foram nulas ou diminutas. Na turma mais recente, os resultados favoráveis aos cotistas abrangeram 26% das carreiras, e, em 47%, não houve distâncias notáveis entre o rendimento dos dois segmentos.
Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 11 dos 18 cursos de maior concorrência, ou seja, 61% deles, os cotistas obtiveram coeficientes de rendimento iguais ou melhores que os não-cotistas. Da mesma forma, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que o sistema de cotas não desqualifica a universidade e aumenta o número de alunos oriundos da escola pública. A qualidade também foi mantida, mesmo com a dificuldade econômica dos alunos cotistas para permanecerem na universidade. Sabendo que a universidade também é um espaço seletivo e excludente, a ação afirmativa de cotas vem dar oportunidade de acesso aos cursos. A pesquisa reforça que o vestibular é excludente e falta, na verdade, igualdade de oportunidades.
Como destacou o ministro Enrique Ricardo Lewandowski, em seu vitorioso voto: “Ora, tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos”.
Rede Mobilizadores – O que mudou desde que foram implantadas?
R.: Observam-se mudanças nas universidades, nas sociedades acadêmicas, que passam a ser vistas como um local para um melhor convívio com o outro. Evidencia-se uma quebra de paradigmas e preconceitos, em prol de um convívio plural e culturalmente heterogêneo.
Observam-se também mudanças na própria sociedade – no meio social onde o cotista vive, com aumento de sua participação social, bem como no número de militantes no movimento social, no movimento social negro, dentro das ONGs, nos cursos pré-vestibulares – tanto como alunos, quanto como coordenadores de núcleos. Constata-se ainda melhoria no nível socioeconômico e cultural dos cotistas, com crescimento da renda familiar e de sua segurança alimentar e nutricional, dentre outros pontos.
Se afirmamos que o racismo é uma ideologia que hierarquiza os grupos humanos, afirma a superioridade de uns sobre os outros, organiza desigualmente a sociedade em grupos étnico-raciais que são considerados superiores ou inferiores, as Políticas Públicas de Ações Afirmativas são importantes.
Dados de pesquisas do IBGE e do Ipea mostram que a população negra constitui 47% da população do Brasil, e, hoje, ainda possuem taxas mais baixas de participação que o outro grupo, declarado branco, no Trabalho, na Educação, na Política, nos Meios de Comunicação etc. Esta política afirmativa deve, portanto, ser monitorada por 20 anos até deixar o pais mais igual, tendo o apoio da população brasileira: mais de 50% dos brasileiros são favoráveis às cotas, embora haja alguma resistência propagada por alguns intelectuais contrários a ela, provavelmente por motivos de manutenção de privilégios de exercício do poder.
Estamos afirmando que as mudanças foram muitas na autoestima de um grupo que passa a usar seus direitos como cidadão, que percebe uma reparação por um momento da historia que lhe foi negado, bem como o direito a oportunidades. É exatamente este direito que o movimento social negro vem cobrar dos estados, por meio da adesão às cotas. Temos, como exemplo, o estado de São Paulo, que fez um processo de cotas nas universidades públicas, iniciando coletas de 200 mil assinaturas de um Projeto de Iniciativa popular,que contempla indígenas, deficientes etc. (Saiba mais, clique aqui.)
Rede Mobilizadores – Há intenção de ampliar essas cotas?
R.: Esta Politica de Ação Afirmativa tem de ser monitorada por um período. Hoje, discutimos cotas no serviço Público Federal, em vários seguimentos, como foi anunciado na Conferência de Igualdade Racial, pela presidente Dilma Rousseff: cotas nas agências de publicidade e propaganda, cotas nos desfiles de moda, nas empresas contratadas para prestar serviço a órgãos públicos etc.
Rede Mobilizadores – Como fazer isso?
R.: Através de muita pressão do movimento social, muito trabalho de formação nas escolas. Já temos a lei que obriga as escolas a ensinarem a História da África e a recontarem a contribuição do negro no Brasil. Já é um caminho de formação nas escolas, tanto para alunos quanto para professores. Outro passo é fazer mobilização nos Legislativos e Executivos para que seja feito por decreto a proposta de Lei de Cotas.
Cabe mencionar também a campanha da qual faço parte: a Frente Pró-Cotas Raciais de SP, uma campanha estadual de coleta de assinaturas do Projeto de Lei de Iniciativa Popular de Cotas Raciais e Sociais para as Universidades Públicas de São Paulo. Nossa meta é alcançar 200 mil assinaturas e apresentá-la com Protocolo na Assembleia Legislativa até abril 2014.
*1 – Programa Estação Juventude – O programa visa promover inclusão e emancipação dos jovens, com a ampliação do acesso às políticas públicas, por meio de espaços públicos de atendimento à juventude. O objetivo é ampliar o acesso de jovens de 15 a 29 anos – sobretudo aqueles que vivem em áreas vulnerabilizadas – a políticas, programas e ações que assegurem seus direitos de cidadania e ampliem a sua capacidade de inclusão e participação social. O Estação Juventude oferecerá informações sobre programas e ações para os jovens, além de orientação, encaminhamento e apoio para que eles próprios tenham condição de construir as suas trajetórias e buscar as melhores formas para sua formação
Entrevista para o Eixo de Participação, Direitos e Cidadania
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo