De eletromecânico a educador ambiental: o inventor catarinense José Alcino Alano realizou uma mudança na sua vida – e na de muitas outras pessoas – ao criar, em 2002, um aquecedor solar de água com garrafas PET e caixas Tetra Pak. O invento é fruto do “incômodo com o excesso de descartáveis que nós produzimos hoje”, segundo ele explica. A idéia, que inicialmente tinha apenas a intenção de dar uma destinação ecologicamente nobre e prática a materiais diariamente descartados em todas as casas brasileiras, caiu no gosto das pessoas e, hoje, é aplicada em políticas públicas em Santa Catarina e no Paraná. Mais que uma alternativa sustentável para resíduos comuns, o aquecedor vem representando uma alternativa de geração de trabalho, renda e cidadania para populações de baixa renda e cooperativas no Sul.
Mobilizadores COEP ? Quando você criou o aquecedor e como teve a idéia?
R.: No final de 2002, mas a idéia só veio a público de uma maneira mais abrangente em 2004, quando um filho meu submeteu o invento ao prêmio Super Ecologia, da revista Superinteressante. Assim, pela tiragem da revista, a divulgação foi muito ampla e mais gente passou a conhecer.
Tenho quase 60 anos e, até a década de 70, eu pude presenciar que se via muito poucas embalagens descartáveis. Grande parte era embalagem retornável, em vidro. O que era descartável era em papel. Isso mostra o impacto para nossa geração. Olha a atualidade como está. Vemos tanta coisa descartada hoje. Toma-se um copo d’água e produzimos um lixo danoso, porque a degradação dele é complicada.
Por ter um conhecimento básico do que isso poderia causar ao meio ambiente, sempre guardei resíduos aproveitáveis em casa. Volume é inevitável. O que você faz disso? Então, como sempre tive a intenção de colocar ou fazer um coletor solar, neste meio tempo surgiu a idéia. Era uma coisa simples, como projeto em si. Felizmente teve uma aceitação boa e, de lá pra cá, vem evoluindo, sendo redimensionado etc. Ele surgiu, então, pelo incômodo com o excesso de descartáveis que nós produzimos hoje.
Mobilizadores COEP ? Qual seria, atualmente, o objetivo principal do estímulo ao uso do aquecedor?
R.: Ele tem alguns objetivos básicos: primeiro, a questão ambiental, logicamente, para chamar atenção sobre as embalagens. Segundo, permitir que as pessoas de baixo poder aquisitivo tenham um conforto a mais, ou seja, a água aquecida, sem gerar gastos. E o incentivo à utilização do sol como fonte de energia, que usamos pouquíssimo. É um absurdo, num país ensolarado como o nosso, ter essa energia desperdiçada. Raramente se vê um programa de governo sobre isso, ou mesmo as pessoas terem esta cultura.
Mobilizadores COEP ? E como foi o salto para que o aquecedor se tornasse política pública?
R.: O projeto teve a sorte – e nós também, já que tínhamos a intenção de viabilizar para famílias de baixa renda – de despertar o interesse das pessoas. Primeiro foi da empresa distribuidora de energia elétrica de Santa Catarina, a Celesc [Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A.]. Em 2005, eles se interessaram pelo projeto, para beneficiar famílias de baixa renda, e somos parceiros até hoje. Depois veio o governo do Paraná: em 2006 participamos do programa Globo Ecologia [veiculado semanalmente pela TV Globo], que também teve muita repercussão. A partir disso, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Paraná nos procurou no mesmo dia. Isso tornou viável não só a divulgação, mas a aplicação prática desse projeto às pessoas de baixa renda. E, com isso, há a questão ambiental que se pode trabalhar muito bem.
Hoje, tem mais de 7 mil pessoas que já se beneficiaram aqui em Santa Catarina, a partir da parceria com a Celesc. Em agosto do ano passado, já tinha mais de 6 mil aquecedores instalados no estado do paraná. Com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de Santa Catarina está sendo feito um projeto para atuar dentro das penitenciárias. Se não fosse este problema das cheias em Santa Catarina, já teria sido feita a parceria da SSP com a própria Celesc. Vou dar aulas para montagem dos aquecedores, que serão produzidos dentro da penitenciária pelos presos e a renda será revertida para suas famílias. Vai servir para geração de renda e como terapia ocupacional. Costumo visitar várias instituições que trabalham com dependentes químicos com objetivo de usar a montagem como terapia ocupacional.
A Secretaria de Meio Ambiente de Santa Catarina também tem a intenção de incorporar o aquecedor em seus projetos, mas alegam que atualmente não têm verbas. Ela seria a parceira, e a Celesc entraria com os recursos para ele ser viabilizado.
Mobilizadores COEP ? De que forma a Secretaria de Meio Ambiente do Paraná aplica o projeto como política pública?
R.: Fizemos oficina e eles trouxeram representantes de vários órgãos e regiões do Paraná (Polícia, Instituto Ambiental do Paraná, cooperativas etc.) para aprenderem e serem multiplicadores. Não saberia precisar quantas oficinas fizeram até hoje. É uma enormidade. E cada participante se torna um multiplicador. Foi assim que disseminaram rapidamente o aquecedor no estado.
Mobilizadores COEP ? Recentemente, um projeto que usa seu aquecedor ganhou também a chancela da Caixa Econômica Federal, tenho recebido prêmio e financiamento, certo?
R.: Foi assinado, em 16 de março, um convênio entre a Caixa, a Celesc e uma cooperativa chamada Coopersolar para um projeto-piloto, em Florianópolis. Neste projeto, 12 famílias trabalham e a Celesc vai destinar a elas, ao longo de dois anos, R$ 346 mil, para salário. Com isso, vão garantir um ordenado, quer eles vendam ou não. A empresa vai comprar este material com valor acima do de mercado, para gerar renda e manter essas pessoas ocupadas. [Os aparelhos serão instalados em 478 casas localizadas na comunidade da região do Maciço do Morro da Cruz. Desse total, 40 unidades serão destinadas para as moradias do Programa Habitar Brasil, voltado para a população de baixa renda, na comunidade do Morro do Mocotó].
Os integrantes da Coopersolar já tinha recebido em 2007, através da Prefeitura de Florianópolis, o prêmio Melhores Práticas da Caixa, apresentando um projeto baseado no aqueecedor. Ganharam R$ 25 mil e com isso formaram a cooperativa. É num bairro muito complicado, com muita violência. Anos atrás, eu já tinha instalado o aquecedor em cinco casas, nessa mesma região, através da própria Celesc. Isso despertou o interesse das comunidades. A empresa percebeu que daria para fazer um projeto de geração de renda, iniciou esta idéia com a Prefeitura e isso resultou na premiação.
É uma comunidade de baixa renda, com muitos jovens ociosos durante o dia. E conseguimos envolver as pessoas em coleta seletiva. Ainda não há resultados práticos, pois está iniciando de forma estruturada agora. Vai ser feito acompanhamento da evolução e dos resultados práticos. Um projeto desses, com esse tipo de público, pode ser complicado. A gestão não é fácil. São pessoas que já perderam muito na vida, outras já foram muito iludidas por promessas e outras mais. Procuramos tratar a iniciativa com muita seriedade.
Mobilizadores COEP ? Qualquer pessoa consegue montar seguindo o manual?
R.: Sim, consegue. É lógico que é preciso ter uma habilidade mínima com ferramentas, dessas comuns que se tem em casa. Para evitar despesas de transporte para palestras, esse novo manual funciona bem. Enviamos o material e as próprias pessoas constroem. Tendo dificuldade, entram em contato com a gente. E assim não tem deslocamento.
Mobilizadores COEP ? Pode ser considerado uma opção definitiva aos aquecedores tradicionais?
R.: Como é uma alternativa, não veio para substituir os aquecedores tradicionais. Tem limitações. É feito em PVC, tem que ser construído com qualidade e cuidado, para não superaquecer, senão se perde todo o trabalho. Tem todo um procedimento. Em setembro, lançamos um novo manual de construção do produto. Tem a avaliação técnica de laboratórios universitários; os resultados sobre materiais e sua eficiência energética.
Mobilizadores COEP ? Na casa de uma família com quatro pessoas, é possível usar o aquecedor para quais atividades?
R.: São 200 garrafas e 200 caixinhas de leite para fazer um aquecedor que dê conta de uma casa com 4 pessoas. É suficiente para dar conta da casa. É lógico que com banhos rápidos, em chuveiro simples (ou seja, sem considerar aquelas super duchas). O aquecedor surgiu para ser aplicado em projetos pequenos, mesmo. Quanto maior o projeto, mais planejamento é necessário para ter a qualidade desejada. Essas 200 garrafas são suficientes para um banho diário das quatro pessoas, com duração média de oito minutos, e sobra água quente para ser usada na cozinha também. Isso com o chuveiro simples, desses que se encontra no mercado por cerca de R$ 20.
Nos projetos que fazemos também doamos aquecedores a instituições sociais, creches etc. Só aqui em Tubarão (SC), são nove instituições -todas estas patrocinadas pela Tractebel Energia S.A. [associada ao COEP]. Vamos doar agora para a APAE um aquecedor com 2 mil garrafas para aquecer a piscina e mais um com mil garrafas para aquecer a água da cozinha. Talvez seja o maior aquecedor que a gente já tenha construído. Mas são bem elaborados para ter pelo menos cinco anos de durabilidade.
Mobilizadores COEP ? E uma iniciativa como essa consegue mobilizar as pessoas?
R.: Sim. No processo de montagem do aquecedor a ser doado para a Apae, por exemplo, fizemos a campanha para coletar as garrafas, em Tubarão e Capivari de Baixo, nas escolas, nas igrejas, nas entidades. Em alguns casos, envolvemos os catadores, comprando deles e valorizando a atividade. Fazemos campanhas nos clubes, envolvemos o Rotary. É muito bacana e se consegue mobilizar muita gente. Tem intensa mobilização social associada.
Mobilizadores COEP ? Suas oficinas são feitas para que público?
R.: É só para comunidades de baixa renda ou instituições. Também vamos a escolas fazer conscientização ambiental, mas nelas não tem efeito multiplicador muito viável. Para multiplicar, é melhor nas comunidades e nas instituições.
Mobilizadores COEP ? Ou seja, você acabou se tornando educador ambiental, certo?
R.: Não sou palestrante, não sou professor. Trabalhei praticamente 30 anos como eletromecânico na linha automotiva. Tenho segundo grau [atual Ensino Médio] e cursos técnicos direcionados a meu trabalho. Repasso um pouco do que a gente aprende da vida. Sou um aluno da vida também, porque a gente continua aprendendo em toda a vida. Em cada oficina que se faz, sempre tem sugestões. Se teve melhorias no projeto é graças ao envolvimento das pessoas; me considero um eterno aluno.
Mobilizadores COEP ? Quando você criou o aquecedor, pensou mais na parte ambiental, correto? O senhor imaginava que haveria essa parte de fortalecimento comunitário e de geração de renda?
R.: Não, jamais. Quando vimos que tinha a outra parte, social, e que começamos a visitar comunidades, percebemos que era possível fazer muita coisa, não só com esse projeto. Hoje, as empresas que citei são parceiras não só desse projeto. Toda e qualquer dificuldade que temos – e procuramos ter sempre essa credibilidade com as empresas e com as secretarias e tal – conseguimos que patrocinem outras atividades. Não podemos brincar com quem já tem tão pouco.
Mobilizadores COEP ? O que uma rede como o Coep poderia aproveitar essa sua experiência ou fazer atividades semelhantes a ela?
R.: Não existe receita. A situação varia muito de região para região. Por exemplo, em Florianópolis, grande parte das pessoas que moram em favelas vieram do interior, eram agricultores. Num outro lugar, onde a agricultura é mais forte, há muitos sem-terra. Então, diversifica muito. Acredito que um projeto, para ter sucesso, tem que ter uma troca de idéias por regiões. Isso afinaria muito o norte a ser tomado.
Ou seja, uma rede como o Coep deve agir estimulando abordagens regionais e locais para problemas. Conhecer a realidade de cada região e fazer o entrosamento das experiências. Acho que essa seria uma receita. A dificuldade é que o Brasil é muito diversificado em etnias, em clima, em condições geográficas.
Veja aqui o manual de montagem do aquecedor (em PDF)
Entrevista condedida a: Maria Eduarda Mattar
Edição: Eliane Araújo