Amyra El Khalili é profissional de danças étnicas, diretora da Cia El Khalili Arabian Dances, com mais de duas décadas de pesquisas sobre ritmos árabe-brasileiros, trabalho pelo qual foi premiada no Brasil e no exterior. É idealizadora da oficina “Dança pela Água em Missão de Paz!”, realizada com mulheres de diversas comunidades brasileiras. Fundadora do Movimento Mulheres pela P@z! e indicada para os prêmios ?1000 mulheres para o prêmio Nobel da Paz? e ?Prêmio Betha Lutz 2007?, Amyra nos fala sobre o papel das mulheres na mobilização pela paz e de como elas ?têm se movimentado mais rápido que os homens nas questões sócio-humanitárias e nas mobilizações ambientais?.
Mobilizadores COEP – Amyra, você é considerada uma profissional eclética, pois, além de dançarina, é também economista e ambientalista. Qual é a relação entre essas diferentes formações em sua história de vida?
R. Tornei-me economista porque como artista não conseguia sobreviver dignamente. Na minha cabeça de menina, pensava que se conseguisse convencer que a arte é atitude, muito se poderia ganhar socialmente e economicamente com atividades culturais e artísticas. No meu entendimento, conseguiria financiar as atividades de dança, cinema, teatro, literatura entre outras. Sempre fui artista, não somente como dançarina étnica, mas fiz cinema, teatro, cenografia, artes plásticas. Sou também poeta e escritora. Fui, desde jovem, muito respeitada por exercer entre os grupos heterogêneos uma liderança de bom senso, profissional e de justiça. Mas, sobretudo, pelo compromisso com o trabalho voluntário.
Dona Elisa, minha mãe, é enfermeira-sanitarista e meu pai era palestino refugiado, mascate, como todo beduíno. Minha mãe, filha de pequenos produtores rurais, criada em orfanato, ensinou-me a trabalhar desde os 9 anos de idade. Quando pequenina fui para uma oficina de costura de fundo de quintal. Com apenas 12 anos já era secretária num consultório médico. Com 16 anos comecei minha carreira como operadora de commodities numa corretora de mercadorias, vendendo arroz e feijão, para depois tornar-me secretária temporária-substituta de várias secretárias da Bolsa de Mercadorias & de Futuros, até chegar ao estatus de broker (corretora) nos mercados financeiros e, finalmente, ser professora desta coisa complexa que são os mercados futuros e de commodities.
O trabalho não me matou, nem fez de mim uma criança deseducada ou complexada. Sempre exerci a atividade artística e cultural paralelamente às profissionais básicas de sobrevivência. Aliás, como faz a maioria dos artistas pobres para se sustentarem neste país. Trabalhei e estudei a vida inteira, cuidei de meus irmãos, ajudei Dona Elisa a criá-los e educá-los com a mesma responsabilidade materna.
Desde que fiz uma carreira meteórica nos mercados financeiros, entendi que não poderia jamais esquecer que tenho útero. Não deveria abandonar a minha feminilidade, pois estava no meio de um mercado patriarcalista, onde predomina voz de comando eminentemente masculina. O respeito do mundo financeiro me custou alto e muito caro. Paguei com a vida pessoal, tendo que manter um comportamento severo e uma disciplina militar, até que conseguisse me libertar das pressões e assumir uma posição pró-ativa, defendendo a importância do reconhecimento e espaço de poder das mulheres num ambiente machista.
A dança é esse resgate. Um eixo de equilíbrio. A certeza desta identidade nos faz compreender melhor e com mais sabedoria quem somos e a que viemos. Trata-se de um pacto tribal de mulheres entre mulheres e para mulheres.
Mobilizadores COEP – O que é o Movimento Mulheres pela P@z!? Quando foi criado, com que proposta e quais resultados foram obtidos até o momento?
R. É exatamente isto: um movimento feminístico, da mística feminina ? essência que o homem também tem ?, que nasceu em 8 de março de 2002. Com a participação de homens e mulheres pela paz, formamos uma frente representativa de ação pró-ativa com o Move On na América Latina e a coalizão liderada pelo Bispo Desmond Tutu, da África do Sul. Uma mobilização com a participação de ativistas de 142 países em vigília contra a invasão do Iraque pelos EUA. Um dia antes da invasão, estávamos “conectados” com velas acesas e orações, pedindo paz no mundo. E, depois, via internet, nos juntamos ao Codepink, Movimento Mulheres pela Paz dos EUA, apoiando a petição on line para a retirada das tropas estadunidenses e de seus aliados do Iraque. O Codepink contabilizou 100 mil assinaturas. Junto com uma carta-protesto, elas foram entregues na ONU, em Nova Iorque, em março de 2006. É, sem dúvida, um movimento feminístico!
Este Movimento de Mulheres e Homens nasceu de uma atitude de mulheres palestinas, judias e brasileiras, depois de várias cisões em nossos grupos pacifistas israelo-palestino. Nasceu no momento em que os homens tensionavam as discussões e não saíam da mesma retórica discursiva. Foi nesse contexto que pensamos o Movimento Mulheres pela P@Z! A cada guerra ou conflito, quando as pessoas surtarem, perderem a razão na cegueira odiosa, mandaremos e-mails com receitas de doces árabes, comida judaica, baiana, goiana. Convidaremos para uma dança coletiva, um poema, um cinema, uma troca de carinhos e boas palavras. Um gesto suficiente para serenar a mente. O corpo acompanhará.
Mas nenhum movimento se consolida apenas com motes. Essa consolidação só se dá quando os seus líderes e membros assumem efetivamente a causa, carregam as suas bandeiras, assumem a exposição pública com todos seus riscos. O nosso “A” da palavra P@Z! é um @ de arroba, código internauta. Precisávamos agir o mais rápido possível, com mensagens positivas, desmontando fluxos de informações com mensagens, por exemplo, racistas, preconceituosas, negativas, sites de pedofilia, além de centenas de cyberações em defesa da preservação e conservação ambiental.
O Movimento Mulheres pela P@Z foi crescendo informalmente pela internet, sem constituição jurídica e organização engessada, mas transversal como a palavra movimento. Nas regiões onde atuamos, trabalhamos também, fora da internet, o movimento corporal: a dança pela água em missão de paz. Mesmo antes da fundação do movimento, já praticávamos a dança pela água em missão de paz, pois se previa a segunda Intifada Palestina.
Mobilizadores COEP – Qual o papel das mulheres na luta pela paz?
R. Pensamos sempre na mulher como um ser que dá a vida a outros seres, e responsável por carregar no ventre essas vidas, bem como educar, lavar, passar e cozinhar, além, é claro, de trabalhar fora de casa. Há as que trabalham dentro de casa também, nesta dupla jornada, e ainda convivem com os conflitos de identidade do parceiro, que muitas vezes não consegue acompanhar a evolução das mulheres empoderadas, seja como profissional remunerada alcançando cargos e salários, seja como uma mulher independente financeiramente, e que pode a qualquer momento livrar-se do paradigma de casamentos por dependências ou imposições sociais.
As mulheres também têm tido um papel relevante nas questões ambientais, quando defendem o direito de água para todos. Que é na verdade a defesa do direito à vida. As mulheres têm se movimentado mais rápido que os homens nas questões sócio-humanitárias e nas mobilizações ambientais.
Tem sido muito mais fácil sensibilizar as mulheres para a preservação e conservação ambiental devido à sua própria condição biológica, como gestora da vida, portadora de útero. Entendemos, porém, que a mulher precisa também caminhar ao lado do homem, formando a família. As mulheres devem assumir sua condição de guardiãs das florestas, dos rios, da natureza, de nosso meio ambiente, uma vez que, no dia-a-dia com as tarefas domésticas, são também quem sofre com a falta de água, de energia, de alimentos.
As mulheres estão revolucionando o mundo como educadoras ambientais, naturalmente que são, por sua formação biológica e sua capacidade de sentir. Porém é importante identificar que estes sentimentos não são exclusivos das mulheres, mas também e principalmente dos homens. Homens paridos, criados e educados por mulheres, que têm em suas essências a ?feminística?. Talvez seja este o nosso maior desafio. Despertar essa mística dos homens, e permitir que eles a sintam, com tanta ou mais intensidade com que a sentimos.
Mobilizadores COEP – Na sua avaliação quais são os maiores obstáculos à disseminação de uma cultura da paz no Brasil?
R. Nossa realidade é a seguinte: são poucas as pessoas realmente comprometidas com as causas socioambientais, assim como com as questões de direitos humanos, direitos políticos, liberdade de expressão e democratização da informação. Cada qual carrega sua bandeira. E assumir uma causa, ou uma missão é algo muito pessoal, íntimo. O que podemos fazer é, quando identificamos esses formadores de opinião, apoiá-los, dar-lhes estímulo e força, para que persistam no seu trabalho e se estabeleçam. Não estamos falando de dinheiro, mas de ação, apoio moral e psicológico. Um apoio que se dá sem interesses, maniqueísmos ou segundas intenções. É aquele apoio que fortalece o ser humano para que consiga encontrar soluções, sem destruir-se, degradar-se moralmente. É importante apoiar essas pessoas, pois são elas que carregam, puxam, impulsionam outras. Se elas fraquejam, enfraquecem alguns milhões dependentes de suas ações, que também precisam de apoios.
Mobilizadores COEP ? Como é a atuação do movimento?
R. Muitas vezes, mulheres ou homens que lideram comunidades são pressionados, intimidados e ameaçados por corruptos, questões partidárias, políticas, religiosas. Procuramos de alguma forma apoiar essas pessoas para que tenham condições de continuar sua missão. Quando é possível, viajamos até a região. Aí, ministramos palestras e cursos, formamos multiplicadores, conversamos com a comunidade, organizamos uma estratégia. Sabemos que essa pessoa permanecerá ali, quando formos embora. Dá uma sensação estranha. De um lado, satisfação enorme pela chance de poder dizer algo. De outro, a impotência, de querer fazer mais, sem saber exatamente o quê e como.
O que fazer então? Tentamos “empoderar” essa pessoa para que possa seguir em frente. Essa é uma das premissas do movimento de mulheres e de homens pela paz. Principalmente se essa pessoa for uma mulher. São elas as mais discriminadas e excluídas no processo de empoderamento socioeconômico. Conquistaram o mercado de trabalho, são a maioria consumidora, mas não foram empoderadas, ou mesmo preparadas para ter poder.
Mobilizadores COEP – Você foi uma das indicadas aos prêmios ?1000 mulheres para o prêmio Nobel da Paz? e ?Prêmio Bertha Lutz 2007?. Que iniciativas na sua trajetória mais contribuíram para estas indicações?
R. Fui indicada por dezenas de comunidades, lideranças e formadores de opinião, com depoimentos registrados em vários emails e cartas. Com esse material futuramente escreveremos um livro. A legitimidade destas indicações está nos trabalhos efetivados e nos resultados que constatam a importância de posturas e atitudes que venho assumindo com todos os ônus e alegrias. Considero estas indicações verdadeiros prêmios. Muito me honra citá-as em meu currículo como troféus de grandes vitórias por conquistar respeito diante de frentes polêmicas, diversidade étnica, religiosa, política e combates contra a corrupção, além das conhecidas trincheiras de guerra árabe-israelenses.
Não persigo prêmios. Faço meu trabalho por missão espiritual, por convicção. Mas temos que considerar a importância de reconhecimentos que são estas indicações. Mais que um prêmio, uma indicação é um aval, tão ou mais poderoso que uma fiança bancária. Uma indicação, por mais humilde que seja, vale OURO!
Desde 1990, eu estudo o binômio Água e Energia. Em 1993, tive a oportunidade de contribuir com o Projeto Solidarie, do então Premier Hafic Hariri, assassinado no Líbano numa emboscada em 2004. O Projeto Solidarie financiou a reconstrução do Líbano. Isso, no entanto, somente foi possível em virtude dos Acordos de Oslo (1993) em apoio ao Estado Palestino. Condicionado à estabilidade político-econômica, os investidores e bancos multilaterais creditaram ao Projeto Solidarie alguns milhares de dólares para reconstruir Beirute, completamente dilacerada pela guerra civil e pelos bombarbeios de Israel.
Ao compreender melhor as dinâmicas financeiras que engendram as guerras e seus acordos, ficou claro que o binômio ?Água e Energia? era o eixo das convergências ou discórdias, significando o empoderamento geopolítico nesta região e o real motivo das guerras no Oriente Médio. A Palestina sempre foi a rota dos beduínos e dos povos que passaram pelo Oriente Médio. Estar naquele lugar significa ter uma base militar geopolítica estratégica. Não há produção sem água! Não há vida sem água! Não há dignidade sem água!
Onde não existe água não haverá agricultura, não haverá indústria. Restará apenas o comércio de importação, ainda com a ressalva de vender para quem? Tem mais. Sem produtividade, não se gerará emprego e renda, portanto não haverá compradores/consumidores. Ao contrário. Haverá uma população faminta, desesperada, desempregada, desesperançosa. Sem dúvida, hoje, um argumento suficientemente convincente para os mártires.
Neste arquétipo, a água está associada à mulher e o homem, à energia. Um binômio econômico e de gênero. Isso é super importante, porque é um signo de 2000 a.C. Temos um estudo sobre as sete matrizes que chamamos de Mães Ambientais: Água, Energia, Biodiversidade, Madeira, Minério, Reciclagem e Controle de Emissão de Poluentes (água, solo e ar). Essas matrizes são a base da economia capitalista. Sem elas todo complexo da modernidade e a própria sobrevivência dos seres vivos estará comprometida. Através do Projeto BECE (sigla em inglês para Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais), realizamos um trabalho com as comunidades onde o papel da mulher no núcleo familiar é fundamental para a estruturar uma sociedade igualitária.
Mobilizadores COEP – Como se insere a criação da oficina “Dança pela Água em Missão de Paz!” nesta trajetória?
R. Aqui, no Brasil, estamos conectados com comunidades de todos continentes. Falamos com os países de língua portuguesa da África, como Cabo Verde, Moçambique, Angola, Timor Leste. Falamos com países de língua espanhola, como Canárias, Bolívia, Uruguai e a própria Espanha. Falamos com países de língua francesa e árabe… Assim, com o nosso jeito brasileiro, vamos falando aqui e acolá. Ou apenas dançando, afinal, o corpo também fala. Aliás, grita. Aí, graças à internet, ouve-se do Oiapoque ao Chuí.
É nossa prioridade trabalhar a auto-estima feminina. Tanto a exterior quanto a interior, para que as mulheres possam ser “empoderadas”. Para nós, este trabalho é um ritual traduzido em dança. Seja para o mercado de trabalho, o empreendedorismo, a economia, o amor, a família, o empoderamento de mulheres é a meta. E, assim, não permitir que sejam tratadas com mais uma consumidora ou uma mulher-commodity (mercadoria).
Mobilizadores COEP – Que tipos de dança são trabalhados na oficina? Quais as motivações dessa escolha e como tem sido a resposta das participantes a sua proposta?
R. São danças étnicas árabes e o encontro com as danças regionais brasileiras. Essa fusão é que chamamos de samba do ventre, daí nasceu a Rede para Difusão da Cultura Árabe-Brasileira Samba do Ventre. Desta brincadeira de criança criei a técnica ?Samba do Ventre?, cujos direitos autorais foram doados com o objetivo de viabilizar parcerias e investimentos sócio-educacionais, a fim de formar crianças e adolescentes vítimas das guerras e da violência urbana e/ou rural para dança, teatro, música, cinema, literatura e artes plásticas, além de laboratórios de comunicação corporal aplicada a treinamentos em Recursos Humanos.
Incentivar e promover pesquisas da agregação de valor da cultura árabe à cultura brasileira e proporcionar a integração com diversas comunidades na busca “Pela Paz no Oriente Médio e pela valorização da auto-estima do povo árabe e seus descendentes através da música, da dança oriental e todas as manifestações sócio-culturais que derivaram deste caldeirão étnico chamado BRASIL.”
As danças beduínas aplicadas na oficina “Dança pela Água em Missão de Paz” objetivam resgatar a memória ancestral que todas as mulheres possuem das suas relações com o ciclo hidrológico, através dos movimentos executados pelas beduínas quando agradeciam aos Deuses pelo presente que lhes traziam de bons ventos, boas águas e boas colheitas.
Estas mulheres construíram mundos riquíssimos como o dos faraós, a matemática, agricultura, a astrologia, a medicina, o turismo, enfim os valores culturais que são os pilares do ocidente e o fizeram ao lado dos seus companheiros, peregrinando pelo mundo árabe, na África, no leste europeu e na Ásia.
Mobilizadores COEP – Como os interessados em participar de suas oficinas ou em conhecer seu trabalho podem contatá-la?
R. Acompanhar nossa agenda pela internet através do site http://br.groups.yahoo.com/group/becerebia/
Estamos em caravana andando pelo Brasil e no exterior com a oficina. As oficinas são gratuitas, abertas ao público e sempre convidamos a comunidade local para participar ou mesmo organizar uma oficina em sua região. Para organizar uma oficina, envie um email com uma proposta, tema, evento para mulherespelapaz@terra.com.br .
É importante ressaltar que a oficina é exclusivamente para mulheres, sem a presença de homens no recinto de atividades. Somente permitimos a participação de homens quando existe um preparo para cultura de paz e um engajamento do grupo masculino nas questões de gênero. Não estamos excluindo os homens, mas preparando as mulheres para acolher os homens em suas feminísticas. Sabemos que esse acolhimento não se dá da noite para o dia. É uma longa trajetória até que homens e mulheres possam estar um ao lado do outro no mesmo ritmo, na mesma roda com um pacto de igual para igual com compromissos e missões.
Entrevista concedida à: Larissa DolabellaEdição: Eliane Araújo e Danielle Bittencourt
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
Prezada Amyra,
Parabéns pelo trabalho.Há anos venho trabalho solitariamente, junto à filha,sobrinhas,amigas, sobre a importância da nossa presença no planeta Terra.
Sobre a importância e urgência de resgatar o nosso Sagrado Feminino.
Lendo sua matéria fiquei feliz!
Desejo muita sorte e principalmente muita LUZ!
ja faz muito bem esta pessoa esta formando cada dia mas força.
Ola esta é uma linda iniciativa, incetivemos a PAZ… Faço parte de uma instituição que desenvolve atividades com adolescentes, gostaria de saber quando vcs virao a Brasilia, gostariamos de fazer este encontro com as adolescentes, jovens e mulheres… meu email é: zorayona@ig.com.br.
Zora Costa