O presidente do Comitê Científico do International Geosphere-Biosphere Programme (IGB) e professor titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Carlos Nobre, é um dos 500 cientistas de diversos países que participam das reuniões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU que elabora e divulga os relatórios sobre este tema.
Nesta entrevista, ele fala sobre as causas naturais das mudanças climáticas e seus principais efeitos; a respeito das megacidades brasileiras e suas vulnerabilidades, sobre o aumento dos chamados fenômenos climáticos extremos, como tempestades e ciclones, e aponta quais as políticas de adaptação que devem ser implementadas para minimizar a ação do homem sobre o meio ambiente.
Mobilizadores COEP – Quais são as causas naturais das mudanças climáticas? De que forma essas causas são intensificadas pela ação do homem?
R.: O clima de nosso planeta é muito variável em todas as escalas de tempo, de meses a milhões de anos, por razões naturais. Fenômenos climáticos extremos fazem parte da natureza de nosso planeta e sempre aconteceram, com maior ou menor freqüência. Existe uma variação natural na própria energia solar recebida, que aquece o planeta, por exemplo. Nos últimos dois séculos, a partir da Revolução Industrial, a ação humana vem modificando a composição da atmosfera ao emitir gases que provocam o chamado efeito estufa e aquecem a superfície e a baixa atmosfera. Nos últimos 60 anos houve um aumento significativo da produção industrial, da agricultura e do uso de energia, resultando em grande emissão de gases de efeito estufa, com um aumento da quantidade de CO2 atmosférico e, portanto, um aumento do efeito estufa.
Mobilizadores COEP – Quais são os principais efeitos das mudanças do clima no Brasil e as possíveis soluções?
R.: No Brasil, as temperaturas continuarão a subir e podem estar 1 a 2 ºC mais quentes até 2050. Provavelmente teremos mais eventos climáticos extremos, como secas, inundações e tempestades severas. Como nosso litoral é extenso, também devemos nos preocupar com o aumento do nível do mar causado pelo derretimento de mantos de gelo em continentes e pela expansão térmica da água do mar mais aquecida. No Nordeste, a disponibilidade hídrica pode ficar ainda mais reduzida na região semiárida devido a secas mais intensas e maiores temperaturas do ar. A megadiversidade de espécies da flora e fauna brasileiras igualmente estará ameaçada porque plantas e animais podem não conseguir migrar em resposta às rápidas mudanças dos padrões climáticos. De modo geral, a maior parte das culturas agrícolas brasileiras será impactada negativamente, em função das maiores temperaturas e extremos climáticos.
Considerando que não há como reverter completamente as mudanças climáticas, pois numa medida de significativa magnitude estas já se tornaram inevitáveis, todos os países têm que buscar a melhor maneira de adaptarem suas sociedades, atividades econômicas e o ambiente a elas. Entretanto, tão importante quanto aumentarmos a capacidade de adaptação*1 é buscarmos reduzir o risco de mudanças climáticas descontroladas, isto é, há que reduzir as emissões a curto, médio e longo prazos. No Brasil, as principais fontes de emissões de gases de efeito estufa estão direta ou indiretamente relacionadas à agricultura: desmatamentos da floresta tropical Amazônica é a principal fonte de emissões, seguida pelas emissões da produção agropecuária.
Mobilizadores COEP – O que é e quais os objetivos do estudo ?Identificação das vulnerabilidades das megacidades brasileiras às mudanças climáticas?? Quais as megacidades brasileiras envolvidas e o que determinou esta escolha?
R.: O estudo analisa as maiores regiões metropolitanas do país: São Paulo e Rio de Janeiro – para esta devemos divulgar em breve os resultados. É um tema importante para todos porque no Brasil mais de 80% dos brasileiros vivem em áreas urbanas. Do ponto de vista das mudanças climáticas, a transição urbana em si mesma já é um fator que contribui para o aumento das emissões de gases do efeito estufa, porque os modos de vida associados à urbanização consomem inerentemente mais energia.
Considerando o acelerado processo de expansão urbana e o atraso na implantação de infraestrutura adequada ao ritmo de crescimento das cidades, estas não se encontram preparadas para os efeitos das mudanças climáticas. O estudo buscou identificar as principais vulnerabilidades das regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro tanto às mudanças climáticas globais como àquelas que têm origem no próprio processo de urbanização. Destacamos que, mesmo com uma hipotética ausência do aquecimento global, o clima de São Paulo hoje é muito diferente do que era antes da acelerada urbanização: temperaturas cerca de 2º C a 3º C mais altas e tempestades severas muito mais freqüentes, além de maior quantidade de descargas elétricas.
Mobilizadores COEP – Se não houver ações de adaptação às mudanças climáticas, o que se pode esperar nas regiões mais vulneráveis nas duas megacidades?
R.: Nosso estudo sobre a região metropolitana de São Paulo mostra que mais de 20% da área total da expansão urbana em 2030 estará vulnerável e poderá eventualmente ser afetada por acidentes naturais provocados pelas chuvas. Aproximadamente 11,17% dessas novas ocupações poderão ser áreas de risco de deslizamento. Aumentarão significativamente os riscos de enchentes, inundações e deslizamentos, atingindo principalmente os mais pobres, além de provocar maior ocorrência de leptospirose e doenças respiratórias.
Mobilizadores COEP – Já existem políticas de adaptação em curso nas megacidades estudadas? Em caso afirmativo, poderia citá-las? Há alguma ação prioritária que ainda não está em execução? Qual?
R.: Em São Paulo, a prefeitura tem implantado parques lineares que contribuem para melhorar a permeabilidade do solo, o que poderá ajudar na redução dos impactos das enchentes, além de proteger os cursos d?água ainda não canalizados. Este é um exemplo, mas o processo para adaptação às mudanças climáticas se inicia com a tomada de consciência do risco ambiental, tecnológico e social que se projeta no futuro. Somente com uma população consciente desses riscos será possível o debate transparente e participativo sobre as alternativas para mitigá-los*2.
Mobilizadores COEP – No que as políticas e estratégias, em médio e longo prazos, devem focar para minimizar os efeitos das chamadas vulnerabilidades?
R.: Principalmente deve haver maior controle sobre construções em áreas de risco, investimentos em transportes coletivos, sobretudo o ferroviário e metroviário, proteção aos recursos naturais e criação de áreas de proteção ambiental nas áreas de várzeas de rios (como os parques lineares*3 propostos pela prefeitura de São Paulo e governo do Estado). Também é importante haver uma redução da impermeabilização*4 da cidade com novas tecnologias de construção e investimentos em pesquisas voltadas para a modelagem do clima, modelagem hidrológica dos rios da região metropolitana, desenvolvimento de sistemas de alerta e prevenção de desastres naturais e quantificação de benefícios decorrentes de medidas de adaptação às mudanças climáticas, entre outras.
Mobilizadores COEP – Que princípios devem orientar a discussão da política de uso do solo, de reocupação do espaço e da mobilidade? É preciso pensar em outro tipo de modelo urbano?
R.: Uma das medidas importantes é que os planos urbanísticos deixem de ser regidos exclusivamente por decisões do setor imobiliário. Certamente, os ganhos desse setor podem ser aumentados com aumento do conforto urbano. Os condomínios e edifícios próximos de áreas verdes não seriam os mais procurados e valorizados se o conforto ambiental não fosse reconhecido. Reiteramos que o fundamental é impedir a ocupação de novas áreas de risco, por um lado, e re-alocação de substanciais contingentes populacionais que vivem hoje em áreas de risco. Deve-se considerar também a adaptação dos sistemas de transporte. As ferrovias constituem uma alternativa de significativa importância para redução do número de veículos do sistema viário (incluindo o transporte de cargas que atravessa São Paulo), reduzindo a queima de combustíveis e a emissão de poluentes.
Nesse sentido, investimentos constantes para a ampliação das linhas de metrô e trens interurbanos deveriam ser mantidos, uma vez que transportam grandes quantidades de passageiros e reduzem o número de veículos nas ruas e avenidas.
Mobilizadores COEP – De que forma o Projeto Megacidades pode contribuir para as atividades do Grupo de Trabalho Mudanças Climáticas, Pobreza e Desigualdades que o COEP coordena dentro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC)?
R.: Com informação técnico-científica qualificada, que deveria sempre ser a base para a formulação de qualquer ação ou política pública. O FBMC tem mantido estreita colaboração com a comunidade científica brasileira, em particular aquela organizada sobre o abrigo da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas (Rede CLIMA). Pesquisa sobre redução de vulnerabilidades sócio-ambientais deve envolver grupos interdisciplinares e transdisciplinares engajando cientistas sociais e cientistas naturais. Por terem metodologias de trabalho distintas, tem sido difícil estabelecer tais grupos de pesquisadores, mas vencer estas barreiras culturais de diferentes disciplinas é fundamental para o Brasil desenvolver uma verdadeira ciência da sustentabilidade.
Mobilizadores COEP – Quais as principais ações de adaptação que devem ser empreendidas para proteger as populações vulneráveis brasileiras?
R.: O relatório que preparamos sobre a Região Metropolitana de São Paulo sugere diretrizes e relacionamos algumas a seguir:
? O poder público deverá tornar obrigatória a avaliação da dimensão climática nos processos decisórios referentes às políticas públicas; implantação de uma rede de monitoramento climático cobrindo a Região Metropolitana; avaliação dos impactos das mudanças climáticas sobre a saúde humana, promovendo medidas para redução ou prevenção dos impactos; atração de investimentos para a implantação de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e de outros mecanismos internacionais do mercado de carbono; aplicação de recursos vinculados destinados à pesquisa científica voltados à adaptação da sociedade às mudanças do clima.
? O Poder Executivo local deverá publicar um Plano de Ação Integrado para implementação de objetivos comuns (órgãos e setores da sociedade) visando minimizar os impactos das mudanças climáticas, a ser elaborado pelas instituições técnicas responsáveis com a participação da sociedade civil através de discussões em fóruns e plenárias.
? Através de uma ação conjunta, órgãos públicos como Defesa Civil e Prefeituras da região deverão criar instrumentos de restrição à impermeabilização das áreas urbanas, tais como: coibir a construção de novos edifícios em áreas com declividade acentuada e de preservação permanente através do controle de alvarás e licenças; implantar um Sistema de Alerta a Enchentes, Inundações e Deslizamentos na Bacia do Alto Tietê, envolvendo a população, a defesa civil e órgãos competentes.
? As Secretarias da Fazenda e Planejamento deverão quantificar os benefícios decorrentes das medidas de adaptação às mudanças climáticas, uma vez que esta constitui uma alternativa extremamente necessária para a viabilização de ações. Uma das abordagens que deverá ser adotada refere-se à quantificação dos danos evitados quanto aos aspectos de bens, propriedades, equipamentos, produção, paralisação do processo produtivo, atrasos nos deslocamentos, sobrecargas dos serviços públicos de saúde e salvamento (hospitais, emergências etc.).
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*1 Adaptação – Ajuste dos sistemas humanos e naturais para que respondam, de forma eficaz e eqüitativa, aos impactos esperados pelas mudanças climáticas e pela variabilidade do sistema climático.
*2 Mitigação – Intervenção humana com o intuito de reduzir ou remedir um impacto ambiental negativo.
*3 Parques lineares ? A proposta da Prefeitura de São Paulo é não só expandir a área verde, mas também contribuir para melhorar a permeabilidade do solo ? o que reduz a formação de ilhas de calor e os estragos potenciais de enchentes ? e proteger os cursos d’água ainda não canalizados. A expectativa é que esses espaços evitem ainda a construção de habitações irregulares nas áreas de várzea dos córregos, e melhorem a qualidade de vida das populações de seu entorno, na medida em que os parques disponibilizem equipamentos de lazer.
*4 Impermeabilização do solo – Ocorre quando o solo perde a capacidade de absorção da água. Este processo acontece principalmente nas cidades devido ao asfaltamento, calçamento de ruas, construção de edificações, que formam uma espécie de capa sobre o solo, impedindo que a água possa ser absorvida.
Entrevista para o Grupo, Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Pobreza
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araújo