De acordo com a socióloga Cláudia Sciré, o estímulo ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) por meio do consumo é parte de um processo maior que engloba não apenas políticas sociais de renda, como também aumento do salário mínimo, estímulo à concessão de crédito etc.
Cláudia ressalta que, embora haja ampliação dos níveis de consumo de bens duráveis, em especial dentre as camadas mais populares, estudos revelam que o endividamento das famílias cresceu muito. Desta forma, a ampliação do acesso ao consumo tem gerado um forte comprometimento da renda das famílias.
Para a socióloga, ainda que as pessoas possam estar vivendo melhor e com mais conforto, isto não significa necessariamente que tenha havido migração de classe e ascensão social, como vem sendo pontuado por alguns especialistas. O acesso a bens culturais e à educação de qualidade, por exemplo, continua bem precário entre os mais pauperizados.
Rede Mobilizadores – Que consequências a alternativa escolhida pelo governo de estimular o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) por meio do consumo pode trazer?
R.: Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o estímulo ao crescimento do PIB via consumo é parte de um processo maior que engloba não apenas políticas sociais de renda (programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família, por exemplo), mas aumento do salário mínimo, além do estímulo à concessão de crédito, através de parcelamentos (com e sem juros) em diversas prestações, empréstimos e outras opções de crediário. Sem estas condições, dificilmente haveria como estimular o consumo.
Quando se pensa nas consequências deste cenário, é possível observar uma ampliação nos níveis de consumo de bens duráveis, principalmente dentre aquelas parcelas mais pauperizadas da população. Levantamentos como a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam claramente como houve um aumento no consumo de eletrodomésticos, eletroeletrônicos, gastos com alimentação (principalmente bens supérfluos), além de um incremento na renda mensal das famílias.
De fato, está se consumindo mais, e isto faz crescer e impulsionar a economia. Porém, se o acesso aos bens é fato observável, por outro lado, índices revelam que o endividamento das famílias cresceu muito. Sendo assim, a ampliação do acesso ao consumo trouxe consigo, neste caso, esta consequência que tem gerado um forte comprometimento da renda das famílias.
Rede Mobilizadores – Quais os perigos associados ao crédito fácil, especialmente no caso das camadas populares?
R.: Os perigos associados ao crédito fácil são os mesmos para todos, independentemente da classe. São eles: perigo de comprometer o orçamento de tal forma que a renda seja praticamente convertida para pagar as prestações do cartão de crédito e as parcelas dos crediários e empréstimos firmados e o consequente endividamento que pode chegar à negativação do nome (o famoso “sujar o nome”) em lojas, bancos e demais estabelecimentos. O que acontece, quando se fala nas camadas populares, é que como os recursos mensais já são poucos, sendo rara a prática de poupança, caso haja uma intempérie da vida que gere uma interrupção no recebimento de renda (doença, perda de emprego etc.) é muito mais fácil que o endividamento ocorra. Uma dívida de R$ 1.000,00 para alguém que ganha mais de R$ 8.000,00 não é a mesma coisa e nem pode ser solucionada com a mesma facilidade por alguém que ganha R$ 1.000,00.
Sendo assim, é mais provável que as camadas populares, até por estarem ingressando no mercado de crédito agora (e, por isso, estão menos cientes de sua lógica de funcionamento e de seus riscos), tendam a assumir compromissos no mercado que nem sempre podem ser pagos.
Rede Mobilizadores – Em seu livro Consumo Popular, Fluxos Globais, você usa a expressão “financeirização da pobreza”? O que significa?
R.: “Financeirização da pobreza” é um termo que utilizo para problematizar a questão do acesso aos bens dentre as camadas populares. Por um lado, as pessoas podem estar vivendo melhor e com mais conforto a partir do acesso a estes bens. Por outro, isto não significa necessariamente – como muitos pontuam por aí – que houve de fato uma migração de classe e ascensão social. A meu ver, ainda há, nos bairros periféricos das grandes cidades (embora muitas mudanças e investimentos públicos estejam sendo feitos), dificuldades no acesso a serviços básicos de saneamento básico, coleta de lixo.
Embora o ensino público (médio e fundamental) tenha se universalizado, sabe-se de sua baixa qualidade. Da mesma forma, programas como o Pro Uni facilitaram o ingresso de milhares de jovens mais pobres ao ensino superior, mas ainda não sabemos como e de que forma este acesso irá se refletir em uma mudança nos patamares educacionais brasileiros.
O mesmo ocorre com o acesso a bens culturais. Os bairros periféricos ainda carecem muito de equipamentos públicos de cultura e lazer. Se o mercado chegou a estes espaços (com seus shoppings, hipermercados, redes varejistas etc.), ainda é grande o contingente de pessoas residentes nas periferias que nunca foram ao teatro ou ao cinema. Quando estes espaços e atrações existem, atraem seus moradores. Porém, ainda há muito a se fazer.
A saúde enfrenta o mesmo problema. Isto quer dizer que a pobreza e a vulnerabilidade social não podem ser medidas apenas pelo incremento da renda e pelo consumo de bens. Os espaços onde vive grande parte da população hoje considerada “de classe média” ainda são precários e têm pouco a oferecer aos seus habitantes. Sendo assim, “financeirização da pobreza” ajuda a entender o acesso daqueles antes considerados pobres e hoje de “classe média” aos mecanismos de crédito, sem que abandonem as condições de caracterização de sua condição enquanto pobres, bem como suas práticas cotidianas, que também se encontram cada vez mais financeirizadas.
Rede Mobilizadores – O aumento do consumo entre as camadas mais populares vem reconfigurando as relações intrafamiliares? De que forma?
R.: Sim. Na medida em que confere aos membros das famílias (sejam pais ou filhos, homens ou mulheres chefes da família) maior liberdade na forma de gerir seus rendimentos mensais, observa-se que os filhos não ficam mais totalmente dependentes dos pais para realizarem seus desejos de consumo. Assim que começam a trabalhar, passam, além de ajudar a família com os gastos mensais, a ingressar no tido como “maravilhoso mundo” do consumo de bens, adquirindo para uso próprio desde roupas, tênis de marca, eletrônicos etc.
Por outro lado, observa-se que se um filho tem acesso a cartões de crédito, e os pais não (ou por estarem com o “nome sujo” ou por não terem condições), ele ganha maior autonomia e prestígio dentro de casa. Também é preciso citar as mulheres – se antes elas já tinham grande autonomia para gerir a renda familiar, hoje, esta autonomia é ainda maior. Mulheres ficam menos desempregadas que os seus maridos e seguram mais “as pontas” da casa.
Rede Mobilizadores – A educação financeira pode ser uma saída para que as famílias saibam planejar melhor o seu orçamento? Em que medida?
R.: Sim, na medida em que pode auxiliar as pessoas que estão agora ingressando no mundo das facilidades do crédito manterem sob controle seus gastos. É preciso, porém, atuar de forma a conscientizar os consumidores sem doutriná-los. Não se trata de criticar o amplo acesso ao consumo, mas de mostrar como é possível que ele ocorra sem que prejudique totalmente a vida.
Rede Mobilizadores – Como e onde essa educação financeira deve ser ministrada? Quais as formas mais eficientes de se atingir as camadas populares?
R.: Desde escolas (no ensino básico e médio), até em associações de moradores, centros de convivência, passando por ações específicas nos bairros, que poderiam abranger até mesmo o espaço de um equipamento de consumo e suas lojas, que poderiam estabelecer uma parceria e promover estas ações.
Rede Mobilizadores – Conte um pouco sobre a pesquisa que fez e que deu origem ao livro “Consumo Popular, Fluxos Globais. Onde foi realizado o estudo, quais as principais conclusões e que políticas públicas considera urgentes para o enfrentamento dos principais problemas detectados na pesquisa?
R.: A pesquisa foi fruto de uma investigação que começou em 2007, com o início do meu mestrado em Sociologia. Meu interesse era entender as mudanças das populações mais pauperizadas frente à expansão dos equipamentos de consumo nas periferias e os impactos em seus modos de vida.
Conversei com famílias residentes no distrito do Campo Limpo (zona sul de SP) por dois anos, e os principais achados da pesquisa são que estamos diante de um processo de expansão do consumo que torna as práticas cotidianas imersas nos esquemas do mercado. Gastos e orçamento doméstico são geridos com base nas prestações a serem pagas e nos compromissos assumidos no mercado. Em alguns casos, isso gera um “malabarismo” para que se possa dar conta de pagar todas as contas, uma vez que os cartões permitem que se gaste muito a mais do que realmente se ganha.
As consequências que este processo pode levar vão desde um comprometimento da renda das famílias a ponto de se trabalhar para pagar a fatura do cartão de crédito até o endividamento e a negativação do nome. Porém, muito diferente do que ocorria antes, ter o nome sujo já não constitui um problema para muitos, pois é possível negociar a dívida a qualquer momento (e o próprio mercado tem interesse e oferece condições especiais para que isto ocorra o mais rapidamente possível). Ou então, continua-se com o nome sujo, fazendo uso das vantagens do crédito através de terceiros – empréstimo do “nome” – através do empréstimo do cartão de crédito no interior das redes de sociabilidade. Sendo assim, a chegada da financeirização ao mundo popular não deixa intactas as redes de relações sociais (familiares, de amizade, amorosas).
Porém, se o acesso a bens proliferou e se os fluxos da riqueza chegaram aos bairros periféricos, faltam investimentos públicos em termos de equipamentos culturais e de lazer e também no conjunto, de forma a transformar as periferias em algo longe daquele bairro contendo as piores escolas, os piores hospitais e os mais altos índices de criminalidade e de vulnerabildiade social. Isto, o aumento do consumo não ajuda a reduzir.
Entrevista do Eixo Erradicação da Miséria
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
É uma constatação clara e inequívoca do que realmente está ocorrendo, vemos isso em quase toda cadeia de bens disponíveis para consumo e isso reflete um maior consumo mas não necessariamente uma mudança qualitativa do comportamento consumista desta massa de pessoas que se endividam quase que indiscriminadadmente. A “financeirização da pobreza”, como bem usa esta expressão a autora, define e coloca para a sociedade esta questão de forma muito inteligente.
Parabéns a Socióloga Claudia Sciré, trabalho maravilhoso e esclarecedor.
Gostaria de cumprimentar a Socióloga Claudia Sciré, pelo resultado do trabalho desenvolvido que ela compartilhou conosco atraves desta Rede, e assim nos possibilita refletir com mais subsidios.
Parabéns!