Nos últimos 20 anos, o Brasil melhorou significativamente a renda dos mais pobres e obteve avanços em alguns indicadores sociais, como o da redução da mortalidade infantil e da desnutrição, mas ainda tem como desafio implantar políticas públicas que assegurem serviços sociais de qualidade, acesso à Justiça, e maior participação da sociedade civil na definição das políticas e na busca de soluções para as questões sociais. Essa é a avaliação da socióloga Anna Maria Peliano.
Especialista no tema combate à pobreza, Anna Peliano foi assessora do Ministério da Agricultura para implantação de Programas de Alimentação Popular, em1985; coordenadora do Núcleo de Estudos da Fome da Universidade de Brasília; diretora de Política Social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nos períodos 1992-1994; e 2003-2007; coordenadora do Mapa da Fome que subsidiou o trabalho de Herbert de Souza, o Betinho, na Campanha Nacional contra a Fome, em1993; membro da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), no período 1993-1994; e secretária-executiva da Comunidade Solidária, entre 1995-1998. Atualmente, é membro do Grupo de Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e atua como consultora independente.
Nesta entrevista, ela fala sobre as principais conquistas do Brasil no combate à pobreza nos últimos 20 anos e sobre os desafios para os próximos cinco anos.
Rede Mobilizadores – Em que áreas o país mais avançou no combate à pobreza, nos últimos 20 anos?
R.: O aumento do poder aquisitivo dos mais pobres foi, sem dúvida, o que mais se destacou. Para isso, contribuíram as melhorias no mercado de trabalho como o crescimento do valor real do salário mínimo; a ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) [1], que aumentou a renda dos idosos; e o Bolsa Família, que é um programa de distribuição de renda de grande cobertura. Todos esses fatores possibilitaram um impacto bastante significativo na renda das famílias e, consequentemente, maior acesso ao consumo.
Outros indicadores sociais ilustram também melhorias na qualidade de vida da população nesses últimos 20 anos. A taxa da mortalidade infantil é um bom exemplo: ela passou de 48 por mil, no início da década de 90, para 15,7 em 2012.
Rede Mobilizadores – Uma das críticas frequentes é que o país tem conseguido melhorar a renda dos mais pobres, mas no que diz respeito ao acesso aos direitos de cidadania, os ganhos ainda são muito modestos. O que pensa a respeito?
R.: Conforme mencionei, o maior avanço foi realmente no acesso ao consumo, o que se refletiu em outros ganhos na área social, como melhorias na alimentação e diminuição da desnutrição, mas não podemos dizer que todos os direitos estão assegurados. Ainda temos grandes desafios para garantir a universalização da saúde, educação, segurança pública, transporte e saneamento adequados, dentre outros. O acesso à Justiça, por exemplo, que é fundamental para garantir os direitos humanos, está longe de ser assegurado a todos os segmentos da população. É preciso ter claro que a garantia de renda é apenas um dos aspectos a ser enfrentado na redução das iniquidades sociais.
Medições mais abrangentes realizadas no país denunciam um quadro de carências bem mais grave do que o exibido apenas pelo nível de renda. Uma análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE, que considera além do nível de renda, as condições educacionais, a qualidade dos domicílios, o acesso à seguridade social e aos serviços básicos, indica que, em 2011, mais da metade da população brasileira (58,4%) apresentava ao menos um tipo de carência em relação a esses itens tão essenciais para o seu bem estar. Por exemplo, 20,4% dos brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos funcionais e 21,9 milhões de crianças (48,5%) residiam em domicílios nos quais pelo menos um serviço (água, esgoto ou lixo) não era adequado. Tais indicadores não se alteram rapidamente e indicam a gravidade dos desafios que o país tem pela frente.
A noção de que a pobreza está erradicada desmobiliza a sociedade e, sem a conscientização e a indignação frente aos problemas existentes, dificilmente se conseguirá o necessário engajamento de todos na luta para eliminar as privações vividas pelas populações mais pobres.
Rede Mobilizadores – Na sua avaliação, as políticas e ações formuladas e implantadas pelo governo federal contemplam os múltiplos condicionantes da pobreza?
R.: O governo federal avançou bem mais na distribuição de renda do que no enfrentamento de outras dimensões da pobreza. Mas é preciso ressaltar que em muitos setores o avanço não depende apenas do governo federal. Por exemplo, a qualidade da educação, da saúde, da segurança pública, depende muito da atuação dos governos estaduais e, sobretudo, dos municipais. A gestão da maior parte das políticas sociais é descentralizada e, portanto, é preciso que as três instâncias de governo atuem de forma articulada e com o mesmo objetivo para que se obtenham ganhos mais efetivos na qualidade dos serviços públicos.
É preciso destacar, também, que a responsabilidade pela solução dos problemas nacionais não deve ser percebida como atribuição exclusiva do Estado. Ainda que ele seja o principal responsável, é importante o engajamento de todos os setores da sociedade pelo menos na cobrança e controle das políticas públicas.
Rede Mobilizadores – Quais os principais desafios para os próximos cinco anos?
R.: Um grande desafio é garantir acesso aos direitos de cidadania, investindo em políticas públicas que cuidem da melhoria da qualidade dos serviços prestados. Precisamos pensar em uma atuação integrada e em diferentes frentes. Não há soluções únicas para o enfrentamento dos problemas sociais. Na educação é preciso reduzir a evasão e melhorar o nível de aprendizagem; na alimentação, cuidar da qualidade dos alimentos consumidos – a população hoje tem mais acesso aos alimentos, mas enfrentamos o problema da obesidade especialmente entre aqueles de mais baixa renda. A questão do saneamento básico é outro desafio para as políticas públicas. Enfim, os problemas ainda são grandes, multifacetados e precisam ser tratados sobre diferentes dimensões.
Adicionalmente, não se pode perder de vista que para tirar as famílias do círculo vicioso da pobreza é preciso ampliar o acesso às redes de proteção locais compostas por organizações da sociedade presentes nas comunidades. O fortalecimento das associações comunitárias, de moradores, e das organizações da sociedade civil é fundamental para reforçar nos indivíduos o sentimento de pertencimento à sociedade como sujeito de direitos e ampliar sua capacidade de superar as condições adversas.
Um caminho para enfrentar os desafios futuros é o do estimulo ao diálogo, à construção e reconstrução permanente de novas ideias e maneiras de agir. É preciso valorizar o potencial local, compartilhar com as comunidades a busca de soluções, fortalecer as organizações sociais e construir parcerias. E nesse sentido, se as políticas públicas não forem suficientemente flexíveis tendem a se tornarem autoritárias, tutelares e, consequentemente, assistencialistas e ineficazes.
Portanto, não basta garantir o acesso aos serviços públicos, é essencial cuidar da qualidade e, sobretudo, da adequação das práticas adotadas aos anseios e à cultura dos atores locais.
Rede Mobilizadores – Na sua avaliação, nesses últimos 20 anos houve mudanças na participação social em áreas relacionadas ao combate à pobreza? O que mudou?
R.: O tema do combate à pobreza e à fome entrou no debate nacional no início da década de 90, com a contribuição valiosa do Betinho, e de lá para cá, os avanços do Brasil nessa área são internacionalmente reconhecidos. A mobilização da sociedade teve um papel fundamental nessas mudanças.
No geral, as políticas públicas conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988, foram marcadas nas últimas décadas pela disseminação de diferentes estratégias voltadas para possibilitar a participação da sociedade na sua formulação, implementação e monitoramento. A multiplicação de conselhos, comitês setoriais e, as conferências nacionais, estaduais e municipais ilustram essas mudanças. Atualmente, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), quase 90% dos programas federais possuem algum mecanismo de interação com a sociedade. No entanto, se esses espaços abrem novas possibilidades de participação e permitem uma maior transparência e controle na atuação do Estado, esse processo é recente e, no caso dos Conselhos, por exemplo, eles ainda se defrontam com dificuldades de diversas ordens, tais como: frágil poder de deliberação, representatividade limitada dos participantes, falta de transparências das informações públicas, baixa mobilização das instituições presentes, predominância da defesa de interesses corporativos em detrimento da coletividade, e assimetria de saberes entre os diversos representantes da sociedade e do governo.
Ou seja, o país ainda enfrenta grandes desafios para garantir a representatividade dos diversos segmentos da população nos processos de decisão e controle sobre o Estado. As manifestações de junho de 2013 sinalizaram que vivemos uma crise de representatividade política e institucional.
[1] Benefício de Prestação Continuada (BPC) – Instituído pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o BPC é um benefício da Política de Assistência Social e para acessá-lo não é necessário ter contribuído para a Previdência Social. É um benefício individual, não vitalício e intransferível, que assegura um salário mínimo mensal ao idoso, com 65 anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade. Para receber o benefício, a pessoa deve comprovar não possuir meios de garantir o próprio sustento, e a renda mensal familiar per capita deve ser inferior a um quarto do salário mínimo vigente.
Entrevista do Eixo Erradicação da Miséria
Concedida à: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa