Preservação do meio ambiente e comércio justo. Estes são alguns dos princípios que norteiam a Justa Trama, marca da cadeia ecológica do algodão solidário, que envolve trabalhadores organizados, em cooperativas e uma associação, em seis estados brasileiros.
Nesta entrevista, Nelsa Fabian Nespolo, presidente da Cooperativa Unidas Venceremos (Univens), sediada em Porto Alegre (RS), que foi criada com apoio do COEP, fala sobre os elos da cadeia produtiva da Justa Trama e mostra que, com o comércio justo, ganham todos: desde os produtores até os consumidores. Nelsa ainda ressalta que este tipo de comércio acaba por fortalecer as comunidades envolvidas na produção, contribuindo, inclusive, para a fixação do homem no campo.
Mobilizadores COEP – O que é a Justa Trama?
R.: Justa Trama é a marca da cadeia do algodão agroecológico, que envolve desde o plantio do algodão até a comercialização de peças de vestuário de modo solidário. Participam desta cadeia trabalhadores organizados de seis estados brasileiros ? Rondônia, Ceará, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – que integram empreendimentos da economia solidária. São homens e mulheres agricultores, fiadores, tecedores, coletores e beneficiadores de sementes e costureiras. Os participantes deste processo de produção são também proprietários da marca.
Mobilizadores COEP ? Como surgiu a Justa Trama?
R.: Embora já buscássemos nos organizar para produzir de forma solidária, podemos considerar que tudo começou com o Fórum Social Mundial de 2005. Na ocasião, procuramos os organizadores do evento e nos oferecemos para produzir as sacolas que seriam utilizadas. Produzimos 60 mil sacolas de algodão, que ainda não era o ecológico. O tecido foi adquirido de uma cooperativa de tecelagem, que, por sua vez, comprou o fio de outra cooperativa de fiação. Surgia, assim, uma outra economia: a da cadeia produtiva solidária do algodão. Os agricultores foram agregados um pouco depois, a partir de contatos em feiras de Economia Solidária.
A partir desta experiência, foi criada a marca Justa Trama ainda em 2005 e, em 2007, a Central Justa Trama, que funciona como uma ?cooperativa mãe?, agregando as cooperativas e a associação que trabalham com a marca. A Central conta com um representante de cada uma dessas organizações.
O início foi bem difícil. Lançamos oficialmente a marca em novembro de 2005, no Espaço Criança Esperança, no morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro. O lançamento não teve a repercussão que esperávamos. Praticamente só contou com as crianças do local. Para dar visibilidade à marca, começamos, então, a participar de todas as feiras de Economia Solidária que apareciam pela frente, nem que tivéssemos que arcar com os custos desta participação. Foi numa destas feiras, a da Teia, em São Paulo, em 2006, que vários empresários começaram a se interessar pelos nossos produtos. Mesmo assim foi complicado, pois eles só queriam os produtos, não queriam a nossa marca, e nós não abríamos mão dela, como não o fazemos até hoje. Eles acabaram comprando mesmo assim, o que nos impulsionou, mostrando que os nossos produtos podiam, sim, ter aceitação no mercado.
Mobilizadores COEP – Quais os princípios defendidos pela Cadeia Ecológica do Algodão Solidário?
R.: A Justa Trama busca dois princípios fundamentais: a preservação do meio ambiente e a distribuição justa de renda, com práticas de valorização de cada elo da cadeia produtiva e eliminação dos intermediários, o que possibilita aos integrantes da cadeia ganhos 50% a 100% acima do mercado.
Todos ganham o que é justo pelo seu trabalho. Por exemplo, o agricultor que plantou uma tonelada de algodão vai ganhar por ter plantado e colhido essa tonelada. Todos da cadeia sabem quanto cada um ganha por seu trabalho. Há uma total transparência neste sentido. E, mais do que isso, todos valorizam o trabalho um do outro, porque sabem a importância que cada elo tem para o resultado final.
Mobilizadores COEP – Quantas cooperativas e associações fazem parte desta cadeia? Quais as etapas de produção?
R.: A Justa Trama é integrada hoje por 700 trabalhadores, entre agricultores, tecelões, fiadores, costureiras, serigrafos e artesãos, de seis estados brasileiros, e tem capacidade para produzir até 40 mil peças por ano.
A cadeia produtiva começa no Ceará, com o cultivo consorciado do algodão agroecológico, sem nenhum agrotóxico, por cerca de 300 agricultores de nove municípios do estado, que pertencem à Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural de Tauá (Adec). Estes agricultores plantam, beneficiam e comercializam o algodão em pluma para o restante da cadeia.
A Cooperativa Industrial de Trabalhadores em Confecção Stilus (Stilus Coop), em Santa André (SP), transforma o fio em malha. A Stilus Coop é a mais nova integrante da Justa Trama. Formada, em 2006, por 23 cooperadas, é responsável pela produção de roupas infantis.
Já a Cooperativa de Produção Têxtil de Pará de Minas (Coopertextil) é formada por 289 trabalhadores cooperados, sendo 60% mulheres. Fundada em 1988, a cooperativa se formou a partir de um processo de concordata de uma antiga indústria têxtil da qual os sócios fundadores eram funcionários. A cooperativa é a responsável pela fiação e tecelagem da Justa Trama.
A Cooperativa Unidas Venceremos (Univens), em Porto Alegre (RS), por sua vez, foi fundada em 1996, por mulheres, que queriam uma alternativa de trabalho e renda de forma coletiva. A cooperativa se consolidou com o apoio de algumas entidades, entre elas a Oficina Social do COEP, que além de viabilizar a qualificação profissional e gerencial, possibilitou a aquisição de novas máquinas de costura e serigrafia. Desde o início, a cooperativa trabalhou para ter produtos próprios. Atualmente, está com 26 cooperados, sendo responsável pelos serviços de costura, serigrafia e bordado da Justa Trama. Personaliza qualquer tipo de produto têxtil. Os cooperados também produzem roupas em série, como camisetas, calças, bolsas.
A Cooperativa Fionobre dos Tecelões da Região do Município de Itajaí Fio Nobre, em Itajaí (SC), surgiu a partir da microempresa Fio Nobre, que já estava no mercado desde 1986, e, como cooperativa, desde 2007. Tem 20 cooperados e produz roupas em tricô, em tear manual, e também em tecidos.
Temos ainda a Cooperativa de Trabalho dos Artesãos do Estado de Rondônia (Cooperativa Açaí), que fica em Porto Velho (RO). Fundada em 2001, tem mais de 70 associados que produzem, com sementes da região, botões e vários tipos de acessórios (brincos, colares, pulseiras, cintos etc.). Também aplicam as sementes em peças de vestuário. Produzem ainda bonecas e bonés. Realizam um trabalho integrado com o presídio Feminino de Porto Velho.
Já a Em Nome da Arte, do Rio Grande do Sul, é um grupo informal com cinco associadas que produzem brinquedos e jogos pedagógicos com retalhos.
Mobilizadores COEP – Como foi a participação do COEP na criação da Univens?R.: O COEP foi muito importante para a Univens, pois nos ajudou num dos nossos momentos maiscruciais. Conseguimos equipar a cooperativa para dar um salto em qualidade e pela primeira veztivemos R$3.500,00 para giro de matéria prima. Até hoje, no balanço anual,isso é lembrado a todos os sócios. Além disso, o apoio do COEP ajudou a nos divulgar, possibilitando nosso crescimento e reconhecimento, e sustetabilidade.Mobilizadores COEP – Como os produtos são comercializados?
R.: Todos os produtos podem ser encontrados no nosso site: http://www.justatrama.com.br/. A comercialização também se dá em feiras, lojas alternativas, e por meio de vendas diretas na sede da Justa Trama ou de cada uma das cooperativas e associações filiadas.
Mobilizadores COEP – O comércio justo ainda está engatinhando no Brasil, no entanto, a Justa Trama já trabalha com este modelo. Quais os princípios do comércio justo e como e quando vocês chegaram até este modelo?
R.: Comércio justo sempre foi um princípio que buscamos, pois identifica para o consumidor a origem dos produtos, mostrando existir relações de justiça no processo produtivo. Onde há comércio justo não pode haver exploração de mão de obra infantil, por exemplo, e é preciso promover a defesa ao meio ambiente e oferecer um preço justo. Para nós, justo é o valor que permita a quem produz adquirir o produto.
Mobilizadores COEP – De que maneira o comércio justo ajuda no fortalecimento das comunidades?
R.: O que podemos notar é que com o comércio justo, a comunidade passa a valorizar mais o seu próprio produto. Como não há intermediários, os resultados da produção, os ganhos, ficam para a comunidade produtora, o que acaba fortalecendo o comércio local, gerando mais renda para a comunidade e contribuindo para a fixação do homem no campo. Além disso, a própria comunidade passa a ter outros valores, a viver de uma outra forma, mais sustentável, menos consumista e com mais qualidade de vida, respeitando o meio ambiente em que vive.
Mobilizadores COEP – De que forma o comércio justo ajuda a incrementar a renda dos produtores envolvidos? Como foi a experiência da Justa Trama nesse sentido?
R.: O comércio justo de modo geral tem muito o conceito de uma certificação, e, a partir dele, você consegue levar seus produtos para consumidores que se dispõem a pagar mais por causa dos conceitos sociais associados àquele produto. Portanto, ele ajuda a agregar mais valor ao produto.
Porém, o mais importante é a relação de comercio justo, onde todos ganham na transparência e na valorização de cada elo da cadeia de produção, na valorização do que se faz. Além disso, na ponta final, a renda do produtor permite que ele possa consumir o produto que produziu.
Mobilizadores COEP ? O que os consumidores ganham com o comércio justo?
R.: Transparência e informação sobre o produto que vão consumir. Por exemplo, um consumidor que compra o nosso produto recebe junto com ele, num folheto, ou na bolsa que o embala, todas as informações sobre o processo produtivo, sobre a nossa identidade. Portanto, o consumidor compra consciente de aquele produto foi produzido respeitando o meio ambiente e todos os trabalhadores envolvidos em sua cadeia produtiva.
É preciso que o consumidor adote uma postura de inquietude quanto ao que consome. Querer que seja diferente, olhar os rótulos dos produtos, saber de onde vêm, se têm exploração de mão de obra dos trabalhadores, se têm transgênicos, se têm agrotóxicos, e ter a coerência de não adquirir qualquer produto motivado apenas pelo custo.
Sempre haverá perto de nós agricultores familiares organizados em feiras alternativas, ou então criando grupos de compra. É preciso que o consumidor aposte que é possível sim interferir neste processo e que depende de cada um. Participar da construção destas experiências de economia solidária, onde se produz segundo os valores de justiça social em qualquer setor econômico, é contribuir para uma mudança profunda da sociedade, pois os grandes conglomerados econômicos só são grandes por causa dos consumidores. Cada um pode fazer sua parte, e quando pudermos fazer isso coletivamente, maior será o impacto.
Mobilizadores COEP – Que conselhos daria para agricultores que queiram se associar a outros para produzir adotando o modelo de comércio justo? Quais seriam os primeiros passos?
R.: Primeiro é preciso estar ciente de que não é fácil, porque estamos lutando contra uma sociedade capitalista que apela ao consumo desenfreado a qualquer custo. Portanto, exige de nós uma mudança e coerência com os princípios que regem o comércio justo. Depois entender que a agricultura é uma atividade primária, ou seja, que dá origem a outras, e valorizar isso. O agricultor deve, portanto, acreditar que se produzir sem agrotóxicos estará produzindo um produto de melhor qualidade e que isso vai impactar menos o meio que o cerca e trazer ganhos para sua própria saúde, a de sua comunidade e a dos demais consumidores.
Entrevista do Grupo Geração de Trabalho e RendaConcedida à: Renata OlivieriEditada por: Eliane Araujo