Capacidade de exercer a cidadania, de participar da vida associativa da comunidade, de pensar coletivamente. Sentir-se capaz de modificar. Todas estas idéias estão na base da definição de capital social, conceito discutido nesta entrevista por Caroline Santos, mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Para Caroline, pensar capital social entre as pessoas envolvidas com a Economia Solidária pode contribuir para a sustentabilidade desta modalidade econômica, ao discutir o fortalecimento dos laços de reciprocidade, de cooperação e de confiança.
Mobilizadores COEP – Quais as definições de capital social e capital humano?
R. A definição de capital humano que hoje predomina na literatura encontra-se focada nos anos de escolaridade que um indivíduo possui. Capital social encontra várias definições que acabam formando, decerto que nem todas, o que chamei em minha dissertação de construção coletiva do termo. É um termo relativamente pouco estudado e que passou por transformações, não só em seu conceito, mas em seu alcance, como uma forma de amenizar a pobreza e as desigualdades socioeconômicas. Trata-se de um ?ativo? (no ?economês?, tudo que um indivíduo pode auferir ao longo de sua vida e que pode se transformar em renda), para alguns autores, ou uma ?capacidade?, para outros, que o indivíduo possui para formar redes de relacionamentos para alcançar determinados objetivos, seja para fins econômicos, como cooperativas, seja para fins políticos ou cívicos, como associações de classe, ações populares, movimentos sociais, etc. Essas redes pautam-se em laços de confiança e reciprocidade, que, conseqüentemente, as realimentam e fortalecem. Capital social está relacionado à sua capacidade de exercer sua cidadania, de participar da vida associativa de sua comunidade, de pensar coletivamente. Entende-se capacidade aqui não no sentido hayekeano, de habilidade, mas sim como oportunidade.
Mobilizadores COEP – Como e por que surgiu seu interesse pelo tema?
R. Meu interesse sobre capital social surgiu quando comecei a estudar desigualdade e pobreza, em 1999. Nesta época, estavam em alta os estudos sobre capital humano, traduzido em anos de escolaridade, como o principal determinante da desigualdade de renda. Constatou-se que o capital humano era o ativo que, acumulado, trazia mais retornos ? tanto em termos de quantidade quanto em termos de rapidez ? de aumento de renda, via colocação profissional dos indivíduos. A maioria dos estudos sobre desigualdade e pobreza começou a convergir para este tema, deixando de lado os demais ?ativos?: capital social e capital físico, que são os bens materiais, móveis e imóveis, acumulados pelos indivíduos. Este fato me incomodava porque a tese do capital humano acredita que todos os problemas da pobreza, e principalmente da desigualdade socioeconômica, seriam resolvidos pelo aumento dos anos de escolaridade. E o que é pior: não se levava para as políticas públicas de educação uma forma efetiva de aumentar a escolaridade, mas sim de diminuir a evasão escolar, com a adoção de medidas de aprovação automática etc, o que, a meu ver, não resolve o problema, mas apenas o distorce. Aliado a essa discordância, veio o campo, a vivência da questão da desigualdade e pobreza.
Mobilizadores COEP – No que sua experiência no campo contribuiu para o entendimento sobre a desigualdade e a pobreza?
R. Em minha experiência no campo, o que pude observar é que, além da educação, outro ponto que contava muito para o aprendizado de um indivíduo, principalmente de crianças, era o seu ambiente familiar, o meio em que conviviam, as pessoas com as quais se relacionavam. Dentro deste contexto, comecei a perceber que a educação formal não bastava. Faltava uma educação mais abrangente, a prática cívica, aquela que faz com que você se sinta realmente inserido na sociedade, acredite que possa modificar algo, mesmo que seja sua família, seu meio, seu ambiente de convívio. Comecei então a ler o livro de Amartya Sen, ?Desenvolvimento como Liberdade?, no qual ele afirma que não importa só a liberdade de consumo, de mercado – pregada pela cultura do capitalismo -, mas todos os tipos de liberdade que envolvem o indivíduo: desde a liberdade de não sofrer privações como fome e doenças, passando pela liberdade política (voto e democracia) até a liberdade de escolha. Esta última diz respeito a dois valores da liberdade: um mais intrínseco, que encerra sua importância em si mesma e diz respeito a aspectos substantivos que pode trazer para o indivíduo (moral, social, intelectual); e outro em que encerra os fins e os proveitos que o indivíduo pode tirar de tal liberdade, sendo um aspecto mais instrumental (renda, consumo, decisões políticas e econômicas etc.). Acredito que quando se estuda capital social está se olhando para os dois lados da liberdade.
Mobilizadores COEP – Por que se usa um termo econômico (capital) para falar de algo que está relacionado a valores humanos e sociais. Isso não torna a expressão inadequada?
R. Não acredito que esta seja a questão fundamental no que diz respeito ao capital social. Na literatura sobre o tema existem várias vertentes que classificam capital social como um ativo, mas que dão uma importância muito maior ao tema, como é o caso do economista Peter Evans, que coloca o capital social como a base para a construção de estratégias sinérgicas entre Estado e sociedade civil na promoção de desenvolvimento socioeconômico. Ao mesmo tempo, encontram-se vertentes que, apesar de não considerá-lo um ativo, mas relacioná-lo a valores sociais, deixam-no em um plano muito mais inacessível. Acho que foram definidas diferentes terminologias, decorrentes do fato de ser este um tema que abrange tanto a ciência econômica (que o classifica como um ativo na maioria das vezes) como a ciência social e política (que o classifica como valores sociais, morais etc.), mas que diferem realmente no grau de importância que dedicam ao tema e no seu alcance em termos de capacidade de transformação de uma sociedade. A análise da evolução do trabalho de Robert Putnam é um bom exemplo da complexidade que envolve o tema capital social. Fica muito claro que Putnam, no início de seu estudo e tendo como base o trabalho de James Coleman, tinha uma concepção de capital social muito mais reducionista. Hoje, depois de acumular uma enorme bagagem em tempo de estudo e trabalhos de campo em diferentes sociedades, nota-se uma visão de capital social muito diferente, mais ampla, mais voltada para as características de cada sociedade. Acho que esta deve ser a preocupação ao se estudar capital social: como podemos traduzi-lo, como trabalhar com este tema na nossa sociedade.
Mobilizadores COEP – Existem muitas críticas ao conceito de capital social e uma delas está relacionada ao entendimento de que as comunidades que não possuem capital social não conseguem se desenvolver de forma sustentável. Acreditar nisso não é uma forma de condenar alguns grupos sociais à eterna dependência e subdesenvolvimento? Você acha que uma comunidade que supostamente não tem capital social pode adquiri-lo?
R. Como disse anteriormente, há várias formas de entendimento sobre quais as bases, quais os determinantes do capital social. Algumas vertentes defendem essa tese de que é um atributo estático nas sociedades contemporâneas: ou ele existe e gera um círculo virtuoso, ou não existe e ponto final. Hoje, é possível encontrar na literatura, principalmente em estudos cada vez mais recentes, vertentes que defendem exatamente o oposto: não só de que é possível criá-lo como também defendem a importância do papel do Estado no seu desenvolvimento. Autores como Peter Evans, Robert Putnam e Richard Locke compartilham desta última corrente de pensamento. Seus trabalhos baseiam-se em estudos de caso, inclusive no Brasil, que comprovam o êxito da ação do Estado, por meio de políticas públicas de criação e fomento de capital social, e da sociedade em mudar a dinâmica de regiões marcadas por um histórico de corrupção e desconfiança, indicadores que mostravam a inexistência de capital social nessas localidades. O capital social possui um caráter multidimensional que atua de forma diferente sobre as transformações sociais e, por isso, não pode ser tratado de forma mecânica e estática como afirmam algumas linhas de pensamento.
Mobilizadores COEP – De que forma esses conceitos de capital social e capital humano se relacionam com a economia solidária? Por que o associativismo é considerado uma dimensão central do capital social?
R. A economia solidária encontra sua base na questão levantada na primeira pergunta de pensar coletivamente, de capacidade de cooperação. Da mesma forma desenvolve-se o capital social. Acredito que a economia solidária só terá sustentabilidade se começarmos a pensar formas de disseminar o capital social na sociedade. Paralelo a isto, mas muito distinto, encontra-se o capital humano. Não há como imaginar uma sociedade desenvolvida sem educação. Não há como pensar em alternativas de geração de emprego e renda sem que haja políticas educacionais, que aumentem a escolaridade dos indivíduos, pois isso agrega valor a trabalhos cooperativados. Mas quando falamos de economia solidária, de formação de cooperativas de trabalho, em trocas solidárias, seja qual for o escopo da economia solidária, estamos falando de adultos com diferentes valores éticos, morais, sociais já embutidos desde a sua formação pessoal. A importância do capital social nesta faixa etária [adultos] é fundamental para que se entenda a base da economia solidária, a necessidade da cooperação, a importância da associação em grupos para defesa de seus interesses, sejam eles materiais, políticos ou ideológicos. E, principalmente, a força que esta capacidade de se associar, de se unir em torno de um mesmo objetivo, tem dentro de uma sociedade. Voltando um pouco à leitura de Amartya Sen, estou falando do efeito, antes de tudo intrínseco da liberdade. Sentir-se capaz de modificar, mesmo que sejam pequenas coisas, é fundamental ao moral do indivíduo, à sua auto-estima. Trabalhado isto, o fortalecimento desses laços de reciprocidade, de cooperação, de confiança fica muito mais sólido, porque as pessoas envolvidas acreditam no que estão fazendo.
Mobilizadores COEP – Como você traz o conceito de capital social para a realidade brasileira?
R. Considero central a dimensão associativa do capital social no caso do Brasil. No nosso caso específico, capital social e capital humano não estão subordinados, muito menos relacionados, porque, infelizmente, não temos uma escola preparada para isto. A escola proporciona educação formal. Não estou aqui entrando no mérito do papel da escola, nem sei se é ela que deve preencher o papel de ?ensinar? capital social aos indivíduos. Teoricamente, dentro da dimensão da cidadania sim, mas a escola brasileira, principalmente a pública, hoje sofre de tantos problemas que não cabe aqui entrar no mérito da questão. O capital humano é muito importante para amenizar a pobreza, quando o mercado de trabalho é capaz de absorver essa mão-de-obra capacitada. Depende, portanto, de crescimento econômico. Mas vivemos em uma sociedade marcada pela desigualdade sob vários aspectos que não só a renda. E uma destas desigualdades é a de nos associarmos, de impormos nossa representação nos diferentes segmentos da sociedade, de exercermos nossa cidadania, de entendermos o ?espírito? da cooperação. Quando pensei no associativismo, estava buscando indicadores que fossem capazes de melhor mensurar capital social. Não há como adotar, como ocorre nos Estados Unidos, indicadores que mensurem o capital social por meio do número de votantes, pois diferentemente de lá, aqui nosso voto é obrigatório. Tentei, então, trazer o conceito de capital social para a realidade brasileira. O grau de associativismo de uma sociedade é uma das variáveis largamente utilizadas para mensurá-lo, de acordo com os estudos que analisei. A escolha desta variável surgiu com a leitura dos trabalhos que Maria Lucia Maciel e Sarita Albagli desenvolveram sobre arranjos produtivos locais (APL?s), nos quais elas destacam a importância do associativismo, uma vez que atua na direção do acúmulo de conhecimento tácito, por meio da interação dos atores envolvidos, fazendo emergir os laços de interesses coletivos que podem ser dirigidos para um esforço de desenvolvimento local.