Ao longo do tempo, os catadores de materiais recicláveis têm sobrevivido às margens da sociedade de consumo, coletando e classificando os resíduos por ela gerados e fazendo-os retornar à cadeia produtiva para serem reciclados. Esse trabalho contribui para redução dos gastos públicos com o sistema de limpeza pública, aumento da vida útil dos aterros sanitários, diminuição da demanda por recursos naturais, e fomento à cadeia produtiva das indústrias recicladoras com geração de trabalho e renda.
Porém, a despeito da importância de seu trabalho, muitos catadores ainda vivem em processo de exclusão social, e mesmo aqueles que estão organizados e mais conscientes de seus direitos, em geral, têm baixa remuneração pelo serviço que prestam e não têm assegurados mecanismos que deem a eles o controle da reciclagem.
A diferença é que hoje os catadores estão cada vez mais conscientes de seu papel na sociedade e lutam por seus direitos. Organizados, desde 2001, no Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis (MNCR), eles lutam por políticas públicas voltadas para a classe, por sua inclusão social e pelo reconhecimento da importância de seu papel na efetiva implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), com justiça social. É o que mostra, nesta entrevista, Fagner Jandrey, um dos integrantes do movimento.
Rede Mobilizadores – Quando e como surgiu o Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis?
R.: O movimento nasceu da união de organizações de base dos catadores, que, durante os anos 1980, iniciaram suas atividades por meio de associações e cooperativas. A partir daí, os grupos foram se articulando, impulsionados principalmente pelos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Mas, até o final dos anos 1990, ainda eram grupos de base econômica.
Com o avanço do debate e da necessidade de enfrentarmos os desafios advindos do novo cenário de privatização do lixo, optamos por criar um movimento nacional, que servisse como instrumento de luta e organização da classe catadora de todo o país. Este momento foi em 2001, quando, no primeiro congresso nacional dos catadores e da população de rua, foi fundado o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).
Rede Mobilizadores – E quando o movimento começou a ganhar maior visibilidade?
R.: Acredito que a maior visibilidade veio quando conseguimos pautar o governo federal, principalmente o governo Lula. E a partir do momento que passamos a lutar por políticas públicas para a categoria. Foi isso que possibilitou colocarmos este debate na pauta da sociedade que historicamente produziu e discriminou estes sujeitos.
Rede Mobilizadores – Há quanto tempo você integra o MNCR e como foi sua adesão ao movimento?
R.: Sou militante do movimento desde 2002. Minha adesão foi como a da grande maioria dos catadores, por não conseguir outro trabalho. Depois que conheci melhor o movimento, abracei com mais consciência e vigor a causa.
Rede Mobilizadores – A aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) já se refletiu em mudanças na vida dos catadores de recicláveis?
R.: Com certeza. Em alguns lugares, para melhor, e, em outros, nem tanto assim. A grande questão é que esta lei traz um novo paradigma para o tratamento e gestão dos resíduos no país. E a maioria das prefeituras não tem esta visão integral do processo e precisa superar seus vícios administrativos para cumprir a lei. Existe uma tendência privatista [de valorização da iniciativa privada] muito grande neste setor. E a luta do movimento é pela inclusão social com distribuição de renda e poder [aos catadores]. Portanto, constatamos avanços positivos onde existe uma mobilização mais forte por parte dos catadores e da sociedade civil pela execução da PNRS na sua totalidade.
Rede Mobilizadores – Hoje, quais as principais demandas da categoria?
R.: A grande maioria dos catadores e catadoras brasileiras está marginalizada. Somos cerca de um milhão, e temos aproximadamente 80 mil pessoas somente no movimento. Hoje, e por um bom tempo, nossa demanda é e será 100 % pela inclusão dos catadores, com 100 % de reciclagem, garantindo desde infraestrutura básica para a formação e expansão dos grupos até o avanço na cadeia produtiva da reciclagem, através do beneficiamento e industrialização dos materiais.
Além disso, precisamos de políticas públicas afirmativas, que contemplem e reconheçam o trabalho desempenhado na sociedade pelos catadores. Como é o caso da aposentadoria especial e das políticas habitacionais, educacionais e de saúde.
Rede Mobilizadores – Na sua opinião, onde estão os maiores entraves ao cumprimento da PNRS?
R.: Na falta de real poder de decisão da sociedade civil nos processos de gestão dos resíduos. Apenas realizar consultas participativas não pode ser considerado mecanismo de uma democracia realmente participativa. Outro entrave são as tendências privatistas, as soluções fáceis, que estão aparecendo nos municípios.
Uma das principais ameaças hoje são as tecnologias de recuperação térmica (incineração). Outro aspecto é a falta de compreensão por parte de alguns gestores, que tentam comparar as organizações de catadores às empresas privadas, numa lógica concorrencial. Mas sabemos que as empresas historicamente vêm sendo beneficiadas pelo Estado brasileiro.
Rede Mobilizadores – Na sua avaliação, o que é preciso para que os catadores possam ter mais oportunidades de trabalho, com remuneração justa, e maior reconhecimento social?
R.: É preciso que sejamos reconhecidos como protagonistas na cadeia produtiva da reciclagem. Necessitamos de investimento público para desenvolvermos ainda mais nosso potencial de inclusão, geração e distribuição de renda e garantia da dignidade das famílias. Precisamos ser contratados como prestadores de serviços de coleta, triagem e destinação dos resíduos. É necessário um novo modelo de gestão dos serviços públicos de limpeza urbana, com controle social e promoção do desenvolvimento sustentável.
Rede Mobilizadores – Em que consiste o sistema de créditos de logística reversa, desenvolvido pelo MRCR em parceria com o BVRio? Quais os benefícios para os catadores associados?
R.: Na verdade, ainda é muito cedo para se falar em benefícios. O que está se tentando é fazer com que os produtores cumpram a lei e se responsabilizem pela logística reversa [restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação], com o devido reconhecimento do trabalho dos catadores.
Para isso, é necessário que, além deste mecanismo de mercado, se tenham bem definidos os acordos setoriais que garantam o cumprimento da lei. Defendemos a intervenção do Estado na regulamentação destes mecanismos de forma a consolidar meios anticíclicos às crises financeiras. Um exemplo foi a crise de 2008, que atingiu duramente os catadores.
A financeirização da reciclagem não é o melhor caminho, pois temos exemplos em outros setores que demonstram a fragilidade do mercado em garantir estabilidade econômica.
Rede Mobilizadores – O que acha da Bolsa Reciclagem? Sugere outras alternativas para assegurar renda e participação dos catadores nos processos de coleta seletiva?
R.: Acho uma boa iniciativa que deve se espraiar por todo país. Na questão da coleta seletiva, ela deve ser feita pelos catadores, devidamente contratados, com contratos justos e viáveis, que garantam o desenvolvimento do serviço e a valorização dos trabalhadores.
É preciso também que a iniciativa reconheça o resíduo sólido como um bem público e que deve ser utilizado para gerar e distribuir renda para os trabalhadores, num processo autogestionário; única garantia de viabilizar a justiça social e a preservação ambiental.
Rede Mobilizadores – Quais são as principais dificuldades encontradas pelos catadores no relacionamento com empresas e com a sociedade em geral?
R.: Os catadores são responsáveis por quase 81% de todo trabalho na cadeia produtiva da reciclagem e ficam com menos de 10 % da produção da riqueza nesta cadeia. A dificuldade com as empresas do setor é estrutural. Queremos o controle da cadeia produtiva da reciclagem na mão dos trabalhadores e isso vai contra os interesses dos grandes empresários da reciclagem.
Conforme as iniciativas vão avançando, as dificuldades vão ficando maiores, pois esta cadeia é dominada por um cartel internacional e quase sem regulação. Na sociedade em geral, se é que é possível falar nestes termos, não temos maiores dificuldades, pois, através do dialogo e da nossa prática, temos demonstrado nosso valor e vontade de construir um país e um mundo mais justo e digno pra todos e todas.
Rede Mobilizadores – O que é preciso para que o apoio da sociedade seja adequado às necessidades dos catadores?
R.: Creio que nos reconhecermos como parte, vendo no outro nós mesmos, e sabermos que somos responsáveis pelo nosso destino e que podemos mudar as coisas. Sempre gosto de falar da necessidade de termos consciência, mas que só isso não adianta, precisamos ter atitude também, pois sem ela nossas palavras continuarão sendo sempre só palavras, e atitudes são muito mais. Precisamos de paciência, persistência e coragem para sair da nossa zona de conforto e enfrentar os desafios e ameaças que se impõem à construção de uma sociedade que produza saúde e felicidade para todos os seus membros de forma justa e livre.
Entrevista do Eixo Erradicação da Miséria
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por Eliane Araujo
Acredito que as transformações no nosso país acontecem em uma morosidade sem fim. Lógico, vivemos em uma sociedade capitalista que privilegia o ter e não o ser, portanto nossos líderes políticos não estão preocupados com a qualidade de vida dos seus eleitores, e sim, com os votos que vão garantir seus poderes. Enquanto não houver um trabalho pautado na conscientização o conceito de sustentabilidade na prática terá um caminho longo a percorrer. O caminho ideal é a educação, mas o desafio é estimular agentes que sintam privilegiados ao transformar vidas. Vidas que possam amar através de gestos e atitudes, e não simplesmente usar a dialética para massificar a população.
Concordo com o entrevistado quando ele expõe a dificuldade de colocar uma estrutura de cooperativas de catadores à mercê das leis de mercado. Se queremos coletar, temos que pagar sim, por este serviço. A proteção do Estado é fundamental para que as iniciativas tenham não só o começo mas continuidade, imunes às flutuações de preços de mercado.
Concordo com o entrevistado quando ele expõe a dificuldade de colocar uma estrutura de cooperativas de catadores à mercê das leis de mercado. Se queremos coletar, temos que pagar sim, por este serviço. A proteção do Estado é fundamental para que as iniciativas tenham não só o começo mas continuidade, imunes às flutuações de preços de mercado.
Com relação a situação muito bem apresentada pelo Fagner acredito que a manutenção destas campanhas farão que as próximas gerações cobrem dos fornecedores de bens e alimentos produtos oriundos de processos ecológico, social e economicamente sustentável. Acredito que a lutar por políticas públicas para a categoria, possibilitou um pouco a sua inclusão na sociedade que historicamente sempre discriminou estas pessoas.
Com relação a situação muito bem apresentada pelo Fagner, reforça o que eu escrevi na mensagem anterior, sem uma grande difusão das responsabilidades no ciclo da reciclagem, continuaremos patinando no preconceito e ganância das grande corporações em detrimento da verdadeira inclusão social deste segmento da população.
Na década de setenta existia um filme institucional onde o personagem principal era o Sujismundo. Acredito que se voltarmos com filmes institucionais produzidas pelos governos municipais, estaduais e federal, poderemos melhor entender a função dos Agentes Ecosociais (Catadores de Material Reciclável) e a nossa responsabilidade no ciclo de vida dos produtos que adquirimos.
Acredito que a manutenção destas campanhas farão que as próximas gerações cobrem dos fornecedores de bens e alimentos produtos oriundos de processos ecológico, social e economicamente sustentável.