Valquíria Smith, coordenadora executiva e membro do Grupo de Trabalho (GT) de Gênero da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA Brasil), diz que Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) vem contribuindo para que mulheres da região conquistem novos espaços sociais e para que as relações de gênero sejam postas em pauta. Ela acredita que a promoção da igualdade entre mulheres e homens seja fundamental para garantir uma convivência sustentável com o Semiárido.
Mobilizadores COEP – Historicamente, a quem cabe a tarefa de abastecer os lares com água?
R.: Sem dúvida alguma, às mulheres. São elas as responsáveis pela segurança alimentar, nutricional e hídrica da família. Estamos falando da segurança hídrica da família, ou seja, de prover água de beber, água para os quintais, para os pequenos animais, cozinha, banho… Estas responsabilidades e tarefas cabem, em nossa sociedade, às mulheres camponesas e agricultoras familiares. São elas que cuidam da casa, da saúde, dos filhos, da comida que vai à mesa, da educação e da sobrevivência da sua família.
Mobilizadores COEP – Por que no Semi-árido esta realidade é ainda mais presente na vida das mulheres? Em geral, como é o dia a dia das mulheres da região quando o assunto é água?
R.: Tudo o que é relacionado à segurança alimentar e hídrica das famílias é de responsabilidade das mulheres do Semiárido. Aos homens cabe a produção, a lavoura e a comercialização. Principalmente a comercialização, espaço predominantemente masculino. Mas as mulheres também se envolvem nas roças e nos roçados, trabalhando ao lado dos homens, mesmo que esse trabalho não seja reconhecido e esteja na invisibilidade. O trabalho das mulheres ultrapassa o espaço doméstico, se estendendo para além da casa e do quintal, chegando à roça, à lavoura e conquistando espaço na comercialização da produção familiar.
O acesso à água no Semiárido é vital para o desenvolvimento e a vida das famílias, e esse acesso ainda é bastante concentrado. Muitas famílias não têm água de boa qualidade para o consumo humano. Dependem do carro-pipa e, nas ocasiões mais criticas de estiagem, retiram a água de locais dos quais os animais também fazem uso. Assim, a vida das mulheres e das crianças é muito penosa. Andam quilômetros em busca de água para o consumo humano… Crianças precisam ajudar suas mães e, desde cedo, assumem para si essa responsabilidade, deixando, muitas vezes, de ir à escola para ir em busca da água.
Essa busca por água torna-se uma das principais atividades da mulher no seu dia a dia. Ela precisa, de qualquer forma, garantir a água de sua família. Nos períodos de estiagem, encontramos também uma realidade bastante critica. São as viúvas de marido vivo! Em plena seca, os homens migram para lavouras de soja, cana e outras, e as mulheres sozinhas assumem toda a responsabilidade de sua família, em casa, na roça, em busca da água de beber, de água para os animais e de água para seu roçado e lavoura. Isto sem contar que, muitas vezes, vêem tudo se perder pela seca.
Mobilizadores COEP – O que é o programa P1MC? Desde quando é implementado?
R.: As organizações que fazem parte da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA Brasil) já constroem cisternas há mais de 40 anos. No entanto, o P1MC é desenvolvido desde 2001, tendo começado com um projeto piloto apoiado pelo Ministério do Meio Ambiente e pela Agência Nacional de Águas (ANA).
O P1MC é o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: um Milhão de Cisternas Rurais, e seu próprio nome já diz muito do seu significado: mobilizamos grupos, comunidades, famílias, pessoas para se organizarem e, através dessa organização, garantir o direto constitucional e universal de acesso à água. As famílias não são beneficiárias e sim protagonistas dessa mobilização. Partindo de uma necessidade concreta, a gente contribui para um novo olhar da família sobre o Semiárido, sua comunidade, e sobre a importância de se organizarem em grupos para a reivindicação de políticas publicas adequadas às famílias camponesas e agricultoras familiares da região.
A cisterna é construída por pedreiros e pedreiras das próprias localidades ? capacitados pelo P1MC ?, e pelas famílias, que fazem os serviços gerais de escavação, aquisição e fornecimento da areia e da água. Eles ganham pelo serviço prestado, e a contribuição das famílias na construção das cisternas se caracteriza como a contrapartida no processo. Se a água da cisterna for utilizada de forma correta ? para beber, cozinhar e escovar os dentes ? dura cerca de oito meses. Cada cisterna tem capacidade de armazenar 16 mil litros de água, que é captada das chuvas, através de calhas instaladas nos telhados.
Mobilizadores COEP – Quantas cisternas já foram construídas e quantas comunidades participam do programa?
R.: Até 25 de janeiro de 2010, foram construídas 288.125 cisternas pela ASA. Já chegamos em 1.066 municípios, atendendo a 18.234 comunidades do Semiárido.
Mobilizadores COEP – De que forma o P1MC vem transformando a vida das mulheres da região?
R.: Transformar a vida das mulheres… É muito amplo. Acredito que estamos contribuindo um pouco para a melhoria da sua qualidade de vida e de sua família. As cisternas contribuem também para o processo de organização da comunidade, pois as construções são feitas em mutirão.
Com as cisternas, as famílias adquiriram água de qualidade para o consumo humano. Consequentemente, houve uma melhoria significativa na saúde das famílias. Isso é comprovado por dados de pesquisa e depoimentos das famílias e em especial das mulheres. São muitos os depoimentos. Além de melhoria da saúde da família, as cisternas possibilitaram às mulheres mais tempo para se envolverem em outros afazeres. Sem a necessidade de buscar água, as mulheres se dedicam a outras atividades da casa, à lavoura, à educação dos filhos, participam das atividades sociais e políticas de sua comunidade ? na igreja, nas associações e sindicatos. Além disso, buscam se envolver na comercialização da produção, conquistando cada vez mais esse espaço que era predominantemente dos homens. Muitas delas têm se organizado em grupos de mulheres que se dedicam à geração de renda através das atividades agrícolas, do beneficiamento da produção e da comercialização, ganhando, assim, mais autonomia nas decisões de sua própria família e de sua comunidade. Vejam alguns depoimentos:
?Antes [da cisterna] , a gente vivia de pegar água em tanque de pedra. Quando chovia bem, tinha até água mais ou menos. Mas, no final, na seca, ficava uma água grossa, uma água da qual qualquer bicho se aproxima. Não ficava uma água boa. Tinha que ferver por causa da nossa saúde. A minha menina vivia com diarréia, com vômito. Mas, depois da cisterna, acabou tudo isso?, conta Veronice Mendonça, 35 anos, moradora da comunidade Sítio Pintada, no município de Pesqueira (PE).
?[Com as cisternas], sobra tempo para cuidar das galinhas, fazer bordados em panos de prato e ficar prosando com as amigas. Com a água na porta,, dá para descansar mais e fazer meus panos de prato para ganhar um dinheirinho?, diz Vera Lúcia, da comunidade de Malhadinha, no Semiárido baiano.
?[Antes das cisternas], minha vida era muito difícil. Eu tinha que levantar às quatro horas da manhã para buscar água na distância de uma légua. Eu saia sem tomar café e dava três viagens ou mais. A água tinha que vir [numa lata] na cabeça. Minhas crianças ainda eram pequenas. Quando eu chegava em casa, elas estavam chorando, sozinhas, pedindo café. Era uma correria. Eu tinha que arrumar tudo rápido para mandar elas para a escola. As pernas chega cansavam… Agora ficou tudo melhor. Eu não levanto mais às quatro horas da manhã. Eu acordo às seis e vou direto fazer o café. Depois que eu dou o café às crianças, eu arrumo elas para mandar para a escola. Depois, eu vou cuidar na roça, vou ajudar a uma colega a raspar uma mandioca, já tenho até mais um tempinho pra sair e ganhar um dinheirinho? , detalha a agricultora Silvaneide Batista de Jesus, moradora da comunidade de Fazenda Vertente, zona rural do município de Serrinha, a 173 Km da capital baiana.
Mobilizadores COEP – Em que outras frentes do programa P1MC as mulheres estão atuando?
R.: Na formação. O programa tem priorizado bastante a mobilização das famílias para a convivência com a região. As mulheres se envolvem nos cursos, nas capacitações, nos intercâmbios de experiências… Relatam a sua historia de vida para outras famílias e outras mulheres. Isso é de um resultado fantástico, pois sabemos que são as mulheres as educadoras de seus filhos e filhas e quando elas têm oportunidades de reeducar seu olhar sobre a sua realidade, também se tornam grandes educadoras, não apenas para sua família, mas também para toda a comunidade. As mulheres também têm o dom da mobilização comunitária. Acreditam no trabalho de formiguinha, não desistem nunca e jamais perdem a esperança de um futuro melhor.
Um exemplo concreto de participação das mulheres no P1MC é sua atuação como pedreiras. O programa as capacita e elas aprendem a construir cisternas. Por cada reservatório construído, recebem R$ 170,00. Um trabalho inovador na região, que, além de garantir renda a estas mulheres, contribui para melhorar sua auto-estima.
A cisterneira Edilene Barbosa, de São Bento do Una, em Pernambuco, passou por inúmeras dificuldades, mas, graças ao curso de pedreiras, conseguiu ganhar o reconhecimento e o respeito da família e da comunidade. ?Meu esposo no início não queria que eu fizesse o curso. Ele achava que isso não ia dar certo. Aí de repente eu fiz o curso, comecei a trabalhar, aí capacitei ele também e, hoje, ele trabalha também. E o dinheiro fez uma grande diferença, mudou radicalmente minha vida?, conta.
Mobilizadores COEP – De que forma as novas atribuições das mulheres contribuem para modificar a realidade socioeconômica e cultural da região?
R.: Ainda estamos bem no inicio de uma transformação socioeconômica e cultural da região… Mas acredito que esse novo papel que as mulheres vêm desempenhando, conquistando o seu espaço social e político na família e na comunidade, contribua bastante para que mais mulheres, jovens e meninas possam conquistar novos e possíveis espaços em suas famílias e comunidades.
A mobilização das mulheres para a construção de cisternas vem mostrando que esse trabalho não é um oficio apenas dos homens. Que as mulheres são capazes de fazer [cisternas] e já fazem. Assim as mulheres do Semiárido vêm se tornando capazes de vencer todos os preconceitos no que diz respeito ao que é trabalho do homem e do que é trabalho da mulher.
Mobilizadores COEP – De que forma o programa afetou as relações de gênero e a autoestima das mulheres na região?
R.: O programa tem possibilitado o reconhecimento do papel das mulheres no desenvolvimento da região, da sua comunidade e da sua família. Isso tem mexido com as estruturas sociais de forma delicada, mas profunda. Hoje, temos mulheres pedreiras, construtoras de cisternas, que capacitam homens e conseguem, na prática, mostrar que seu trabalho tem igual valor ao trabalho dos companheiros. A melhoria na autoestima das mulheres tem possibilitado que as relações de gênero sejam pelo menos colocadas em pauta e questionadas na região. Acreditamos, através da historia de vida dessas mulheres, que promover a igualdade entre mulheres e homens é construir uma convivência sustentável com o Semiárido.
Nota do editor: os depoimentos reproduzidos nesta entrevista foram extraídos do site da ASA (www.asabrasil.org.br).
Assista também ao vídeo “Feito em casa – Construção de Cisternas em Uruçu”, na COEP Tevê. No vídeo, mulheres da comunidade paraibana falam do que mudou em suas vidas com a construção de cisternas perto de suas casas. Vale a pena conferir.
Entrevista do Grupo Gênero, Combate à Discriminação e Grupos Populacionais
Concedida à: Renata Olivieri Editada por: Eliane Araujo