Aproximar as discussões sobre mudanças climáticas e combate à pobreza. O desafio, nada simples, é o ponto central da criação de um novo grupo de trabalho no Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. O COEP e o Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG) foram convidados a coordenar este grupo, que terá como primeira atividade uma pesquisa nacional para conhecer melhor a interseção entre as duas áreas, os impactos já existentes das mudanças climáticas e o que as empresas estão fazendo e podem fazer para agir neste campo. É sobre isso que fala, nesta entrevista, a secretária executiva do COEP Nacional, Gleyse Peiter.
Mobilizadores COEP – O COEP foi convidado para coordenar o grupo temático de Mudanças Climáticas e Pobreza do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC). Como surgiu a idéia e quando vai ser iniciado de fato o trabalho?
R. O COEP vem, há algum tempo, trabalhando com foco nas populações mais vulneráveis e no combate à pobreza. Quando começou a grande discussão mundial sobre mudanças climáticas, tivemos a preocupação, a partir do ponto de vista de quem está lidando com as populações pobres, de tentar fazer a ligação entre os dois temas.
Fizemos uma pesquisa preliminar do que existia sobre este assunto e como poderíamos trazê-lo para a rede [COEP]. Constatamos que não tinha nenhuma organização ou projeto fazendo este elo: mudanças climáticas e pobreza, e percebemos que seria importante começarmos esta junção. Procuramos o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas e, como resultado das conversas, foi criado o GT que o COEP coordena junto com o Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG). Nosso objetivo é levantar esta discussão sobre mudanças climáticas com foco no modo como se inserem as populações mais vulneráveis neste contexto, e não simplesmente no impacto que as alterações no clima provocam em todo o planeta. No fundo, queremos discutir o processo de desenvolvimento: de que desenvolvimento estamos falando?
No ano passado, quando o COEP fez 15 anos, realizamos um curso sobre desenvolvimento sustentável. Nele, começamos a abordar estas questões: que desenvolvimento queremos? Queremos manter o padrão de consumo que temos hoje? Como promover desenvolvimento de quem precisa efetivamente se desenvolver? Começamos, então, a pensar neste assunto: ?e as mudanças climáticas vão trazer o quê??. Fomos evoluindo e chegamos ao momento atual, com a criação do GT.
Mobilizadores COEP – Trabalhando com este tema, é possível perceber que as duas pontas ? mudanças climáticas e populações vulneráveis ? sempre foram interligadas, mas que não se fazia esta relação tão diretamente?
R. Sim. Os temas são interligados, sem dúvida. Quando começamos a trabalhar com o assunto, fomos buscar o que já existia em termos de conceitos e debates, para nos balizar. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas* começou a ser discutida em 1992 e foi concluída em 1994. Um de seus cinco fundamentos é: ?Cuidar dos mais vulneráveis?. Isso é referência para nós.
Existe um consenso mundial de que os pobres vão ser mais prejudicados pelas mudanças climáticas. É inegável, todos sabem. Porém, existem duas formas de cuidarmos disso: ou nos preparamos para prestar ajuda humanitária ou fortalecemos a capacidade das comunidades mais vulneráveis para que elas possam estar preparadas. Esta última opção está mais próxima do foco do COEP. E isso pode ser feito, primeiro, reduzindo a vulnerabilidade (ou seja, trabalhando para diminuir a pobreza, melhorar a condição de vida das comunidades etc.); segundo, capacitando as pessoas para enfrentar [as mudanças climáticas]. Nossa proposta é quebrar essa dependência da ajuda humanitária. Não que sejamos contra: desde que o COEP foi criado, em 1993, prestamos ajuda em situações de emergência. Mas defendemos um processo de independência das comunidades para lidar com essas questões climáticas.
Para tanto, precisamos nos preparar. O Desmond Tutu [bispo sul-africano que ganhou o Nobel da Paz em 1984] tem uma frase que diz: ?adaptação é um processo indolor para os ricos e muito doloroso para os pobres?. Vamos tentar pegar o que se fala sobre mudanças climáticas e agir para adaptar [o tema para as populações vulneráveis].
O processo de desertificação do Semi-árido é um problema para o mundo e para as plantações. As pessoas que moram na região vão migrar. Veremos migrações internas, mudanças de alimentação e, no limite, poderemos ter uma questão importante de segurança alimentar. É preciso nos adaptarmos para que isso não ocorra. As pessoas têm que conviver com a seca. Para isso, é preciso ter água, cisterna etc. Ou seja, é necessário criar condições, fortalecer [as populações], reduzir a vulnerabilidade para manter as pessoas lá.
Mobilizadores COEP – Qual o principal desafio ao trabalhar este tema, seja dentro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, seja de maneira geral?
R. O principal desafio é encontrar mecanismos para atuarmos. Estamos iniciando, com apoio da Presidência da República, uma pesquisa com vários parceiros, como o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e a Oxfam Internacional.
Como primeiro trabalho, vamos fazer duas pesquisas: uma para identificar essa questão das populações, ou seja, ?que vulnerabilidade é esta??, ?como fazer a gestão desse risco?? e ?que medidas teríamos de empregar para o fortalecimento de capacidades??. Estamos nos preparando para conhecer o que está acontecendo com relação a este tema, pois existe muito pouca informação.
A situação é influenciada não só pelos eventos climáticos em si, mas pelo que já vem acontecendo ao logo do tempo. Já houve um aumento de 0,7 ºC na temperatura da Terra. Precisamos saber o que aconteceu em decorrência disso. Se já houve migração, ou se não houve; se já foram sentidas mudanças na produção agrícola etc. Existe um relatório da Embrapa que prevê que, se houver o aumento esperado de temperatura, certos tipos de café vão desaparecer e não se vai ter mandioca em certas regiões do Brasil, entre outras previsões. Ou seja, pode haver fome. Assim, a intenção com a pesquisa é, caso já tenha havido um aumento [de temperatura], ver se existe uma cultura local que trate disso. Queremos também avaliar como lidar com essas mudanças que acontecerão e propor maneiras de agir e se adaptar.
Mobilizadores COEP ? O segundo trabalho se refere a empresas, certo?
R. Isso. Temos um histórico muito grande de relacionamento com as empresas. Em 1998, estabelecemos uma parceria com o Ipea, que havia feito uma pesquisa sobre ação social das empresas, tema que estava começando a ganhar importância na época. Replicamos essa pesquisa para o COEP em parceria com o Ipea. Agora, vamos fazer o contrário: uma pesquisa com as empresas associadas ao COEP, não sobre o que elas podem fazer com relação às mudanças climáticas, mas o que já estão fazendo, com a perspectiva de impactos e benefícios para as populações pobres. Queremos questionar também qual o papel das empresas com relação a mudanças climáticas, com o recorte de pobreza, que normalmente não é feito por elas.
O Nobel de Economia Paul Krugman escreveu, em artigo recente, que as empresas estão reclamando muito, pois, para elas se adaptarem às imposições que vierem com relação a mudanças climáticas, terão que gastar dinheiro. Ele enxerga nisso uma grande oportunidade, como quando as empresas têm de lidar com uma nova tecnologia revolucionária. Elas têm que investir na nova tecnologia para ganhar no médio prazo. Ele acha, então, que as empresas precisam ver esta questão das mudanças climáticas da mesma forma.
Como o COEP quer fortalecer as capacidades das comunidades, é preciso criar alternativas. E isso se refere também a como usar as mudanças climáticas como oportunidade; avaliar se as pessoas vão ter oportunidades de trabalho e geração de renda, em meio a esse quadro que estamos vendo. Na pesquisa, portanto, queremos averiguar também como as empresas podem oferecer as tecnologias sociais que estão sendo desenvolvidas nos países ricos (que são os responsáveis históricos pelas mudanças climáticas) para serem aplicadas nas comunidades.
Mobilizadores COEP – Como este novo tema se insere na trajetória e na missão do COEP?
R. No fundo, pretendemos fazer o que o COEP sempre fez: mobilizar e articular as empresas. Desta vez, em torno do tema mudanças climáticas, com o recorte da pobreza. Sempre mobilizamos empresas para o combate à pobreza. Agora o raciocínio é: Existem as mudanças climáticas. Como juntamos uma coisa com a outra?
Também sempre sensibilizamos a sociedade. No portal Mobilizadores COEP temos mais de 8 mil pessoas cadastradas que vão discutir este tema mundialmente relevante ? vai acontecer em dezembro a conferência da ONU sobre o assunto. De novo, com o recorte de como ficam as populações vulneráveis neste contexto.
Outra coisa que o COEP sempre fez foi agregar redes. Quando falamos em realizar a pesquisa, além de uma grande mobilização que vamos promover sobre o tema (iremos sensibilizar e mobilizar comunidades, empresas, pessoas), pretendemos também sensibilizar uma grande rede de universidades para que tenhamos um resultado concreto e, assim, possamos falar com base em números, e não em sentimentos.
O COEP, na realidade, não mudou nada do que sempre faz. Temos grande capacidade de fazer mobilização ? em níveis municipal, estadual; em comunidades, com organizações, com pessoas. E, para isso, é preciso haver estratégia de mobilização, técnicas. Quando aprendemos isso, não perdemos nosso foco na pobreza. Vamos mobilizar em torno de outro tema ? no caso, mudanças climáticas ? mas com o mesmo norte, sempre com o mesmo foco. Somos uma rede de mobilização de combate à pobreza, que inclui a fome, a segurança alimentar, as mudanças climáticas e seus impactos, o processo de desenvolvimento, o consumo e outras coisas.
Mobilizadores COEP – Mudanças climáticas é um tema que ainda está distante do cotidiano das pessoas. Como aproximar o tema das pessoas, de maneira geral, e das comunidades com que o COEP trabalha? Quais as facilidades ou dificuldades?
R. O tema está próximo das empresas, até porque existe uma pressão mundial. Nas comunidades, temos que suscitar a discussão das mudanças climáticas e tudo que isso implica. Por exemplo: o rio [próximo a uma comunidade] vai subir, ou vai descer? O que pode acontecer naquela comunidade ou na produção agrícola por causa disso?
Um exemplo de algo que a gente já faz é o estímulo à produção de algodão orgânico colorido nas comunidades. Isso não é feito à toa, existe uma discussão por trás: o algodão orgânico não usa agrotóxico; a diminuição de seu uso faz bem ao meio ambiente etc.
Trabalhamos principalmente com comunidades rurais. Queremos saber como as mudanças climáticas podem afetá-los no seu dia a dia e como já podem fazer algo para combater. Abordar assuntos como lixo, agrotóxico, conservação do local onde estão, como fazer replantio etc.
Mobilizadores COEP – E quanto ao oposto: como conscientizar sobre os hábitos, muitas vezes arraigados, que também podem contribuir para agravar as mudanças climáticas?
R. A partir do momento em que teremos cases relacionados ao que está acontecendo e ao que já aconteceu, teremos subsídios para travar essa discussão. Apesar de que já fazemos isso de alguma forma quando, por exemplo, trabalhamos reciclagem nas comunidades. Talvez não tragamos isso com tanta força: ?reciclagem significa que você não vai jogar isso ali, que não vai poluir o rio etc?. Trabalhamos [a reciclagem] mais como geração de renda do que com a visão ambiental. Tenderemos a incorporar ao trabalho a educação ambiental.
Vamos trabalhar o tema com as escolas também, com a idéia de juntar todos esses conceitos. É preciso criar um fio condutor entre esses assuntos, para que as pessoas possam associar suas responsabilidades como cidadãos a seus direitos.
Mobilizadores COEP – Citaria alguma iniciativa interessante que já faça esta ligação entre mudanças climáticas e pobreza?
R. Não, ainda não existe da forma como estamos começando a fazer. O que temos são tecnologias sociais e produtos que usam energia alternativa. Se levássemos isso para as comunidades, por exemplo, estaríamos juntando as duas coisas: tanto levaríamos para as pessoas a opção de tecnologias limpas e alternativas, que normalmente trazem facilidade aliada à contribuição para o meio ambiente; quanto transformaríamos isso em uma fonte de renda para elas. É interessante estimular o empreendedorismo: as pessoas poderiam fabricar objetos e vender para comunidades vizinhas, gerando renda.
Já que estamos no Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, que tem tantas instituições aportando informações, certamente tecnologias sociais vão aparecer como alternativas. E poderemos levar para quem precisa.
Mobilizadores COEP – Que outra estratégia de atuação o COEP pode ter quanto a este tema?
R. O COEP tem um papel importante tanto para a formulação de políticas públicas, quanto para a revisão delas. Temos feito isso ao longo da nossa história. É importante fazer políticas públicas que possam ser replicadas em comunidades rurais. No grupo que vai fazer a pesquisa, a idéia é que tenhamos mais conhecimento, para termos mais resultados e possamos contribuir para outras frentes em que estamos trabalhando.
* A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima – CQNUMC – (do original em inglês United Nations Framework Convention on Climate Change) é um tratado internacional que resultou da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), informalmente conhecida como Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Este tratado foi firmado por quase todos os países e tem como objetivo a estabilização da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera em níveis que afetem o clima. Esse nível de concentração segura para o clima ainda não é conhecido, mas a maior parte da comunidade científica considera que, se a emissão destes gases continuar crescendo no ritmo atual, advirão danos ao meio ambiente.
Entrevista concedida a: Maria Eduarda MattarEdição: Eliane Araujo
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