A socióloga e consultora na área de deficiência Marta Gil mostra como é possível romper com atitudes discriminatórias e estimular a inclusão. Marta hoje é presidente do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, cujo foco institucional é a produção e disseminação de materiais que promovam a inclusão social e a qualidade de vida de segmentos sociais fragilizados, dentre eles pessoas com deficiência.
Mobilizadores COEP – O que é preconceito? O que o caracteriza e como ele se manifesta?
R.: Há muitas definições sobre o preconceito. A palavra sinaliza que é um pré-conceito, ou seja, é um juízo feito a priori sobre um objeto, um fato ou uma pessoa antes de conhecê-lo/a realmente. Em geral, os preconceitos são negativos. Manifestam-se em atitudes de negação, em comentários pejorativos, em piadinhas, em ?rótulos? colocados à primeira vista ? portanto, se referem a características aparentes e muitas vezes superficiais. O pior é que estes rótulos ?pegam? e passamos a aplicá-los, sem pensar sobre eles e seu significado. Todos os países e culturas, em maior ou menor grau, ainda têm preconceitos em relação ao Outro, ao Diferente, seja ele uma pessoa com deficiência, um imigrante ou com outra característica que se afaste do que aquela sociedade específica elegeu como “padrão” ou “normal”. Mobilizadores COEP – Como o preconceito começou?
R.: Segundo alguns estudiosos, ele está conosco desde o início da Humanidade. Entendem que ele teve um papel fundamental para garantir nossa sobrevivência, enquanto espécie. O que é o pré-conceito? É a capacidade de formar juízos (conceitos) e tomar decisões muito rapidamente. Imagine um grupo de homínidas (primatas bípedes) à procura de alimento em um ambiente hostil. Estão famintos e encontram um fruto. É preciso decidir: é de comer? É venenoso? Come-se com a casca? E o caroço? Parece com outro que já se comeu? Se sim, como se sentiu depois? Se não decidir e agir rapidamente, o outro rouba o fruto ? ou continua com fome. Situações semelhantes aconteciam quando o grupo se deparava com outro grupo de homínidas ou com um animal. Assim, o ser humano desenvolveu a habilidade de criar classificações e aplicá-las imediatamente. Os tempos mudaram, mas o ser humano conservou esta capacidade, que já não é útil para a sobrevivência. As pessoas continuam a ser classificadas: gordos são alegres e gostam de contar piada; negros gostam de samba e futebol; surdos são irritadiços; loiras são burras. Estas classificações são perversas: como que colocam um espelho na frente das pessoas rotuladas e dizem: ?Você é isso?. ?Esperamos que faça isso ou aquilo?. Estas expectativas são moldes, que limitam as pessoas, seus talentos e habilidades. Restringem o nosso olhar e procuram restringir o olhar da própria pessoa, que muitas vezes acredita que só é aquilo que a sociedade diz, só vê o que o espelho mostra.
Mobilizadores COEP – Qual a relação entre preconceito e discriminação?
R.: O preconceito é algo pessoal, enquanto a discriminação é algo que afeta o direito do outro no mundo social.
Mobilizadores COEP – Que tipos de preconceito aparecem de forma mais velada nos tempos de hoje?
R.: Não sei dizer, não conheço pesquisas que respondam essa pergunta, que é muito importante. Quando se pergunta ?quais os que aparecem de forma mais velada?, espera-se uma hierarquização e uma classificação. Como escrevi no texto ?Calorias e Preconceitos?*, essa é uma família grande, com várias ramificações. Não sei dizer quais são os ?mais velados? e os ?menos escancarados?….
Mobilizadores COEP – O que a levou a trabalhar com a temática deficiência?
R.: Há várias respostas. Uma delas está na pesquisa que coordenei, de 1976 a 1982, referente ao perfil sociológico das pessoas com deficiência visual. Essa pesquisa foi uma realização da Fundação de Apoio à Cegueira (Face), infelizmente extinta, e contou com o apoio fundamental da Fundação Projeto Rondon. Foram entrevistadas pouco mais de 6 mil pessoas residentes nos municípios mais pobres de nove estados brasileiros. Pude perceber a absoluta falta de informações (naquela época) sobre esse segmento da sociedade e também a importância da informação para mudar sua qualidade de vida. Essa pesquisa foi um fator decisivo em minha vida e agradeço ao professor Geraldo Sandoval de Andrade o convite para participar dela.
Mobilizadores COEP – Quais os principais meios de promover a inclusão das pessoas com deficiência e coibir as ações discriminatórias?
R.: Em minha opinião, para diminuir os preconceitos é preciso jogar a luz da Informação e da Comunicação sobre eles, que não as toleram. Eu as entendo como indissociáveis. Elas, juntamente com a vontade política, dão origem às políticas públicas e às leis, instrumentos que as sociedades democráticas têm para promover, não apenas a inclusão, mas o bem-viver em sociedade. Desta forma, gradualmente abrimos caminho para que a Inclusão chegue e ocupe o espaço onde os preconceitos estavam. Acredito, também, que os preconceitos voltam muitas e muitas vezes. São resistentes e teimosos. E os seres humanos, seus ?hospedeiros?, também resistem às mudanças, pois mudar dá trabalho. Porém, uma coisa é certa: a cada vez que a Informação os ilumina e os desmascara, eles se enfraquecem, e a Inclusão conquista mais adeptos e espaços. Até que um dia ….espero que eles acabem definitivamente. Pode ser uma utopia, mas é este o objetivo último de meu trabalho. O homem teme o que não conhece. A convivência é fundamental para a inclusão e para a aceitação do Outro, pois através do contato podemos identificar nossos pontos de semelhança, nossas dores e alegrias – enfim, percebemos que a natureza humana é una. Assume diferenças segundo a época, o lugar, a inserção da sociedade. Assim, ao visitarmos uma exposição sobre os antigos egípcios, por exemplo, percebemos o que nos une, a despeito da distância histórica e geográfica.
Mobilizadores COEP – Qual o papel da educação neste sentido e que iniciativas poderia apontar, como de fato, inclusivas?
R.: A educação, entendida em seu sentido mais amplo ? que ultrapassa a escolarização ? tem um papel muito importante na promoção da inclusão, não apenas das pessoas com deficiência, mas de todas as que se afastam do ?padrão definido como normal?, em uma determinada época e sociedade. Ela é um dos principais agentes transmissores de valores, de condutas, de conhecimentos que contribuem para o processo de socialização do ser humano. Portanto, deve propiciar ambientes acolhedores, que respeitem e celebrem a diversidade; deve propiciar a formação de indivíduos que saibam refletir sobre a herança cultural recebida e que tenham ferramentas para transformá-la, e, ao assim fazer, criar novas formas de ser, de pensar e de agir. Na sociedade atual, a maioria das crianças e jovens freqüenta a escola, ao menos por três horas diárias; parte significativa da população passa os anos considerados de formação intelectual e pessoal na escola. Daí a importância de cultivar valores de eqüidade e de respeito à diferença. Embora a diversidade seja parte constitutiva do universo, muitas vezes tendemos a considerá-la como algo negativo. Aí entra a educação, promovendo e estimulando outro olhar.
Mobilizadores COEP ? Poderia citar exemplos de iniciativas inclusivas?
R.: Há muitas, assim como há atitudes inclusivas. Entendo que a inclusão é um processo de mudança de comportamentos e valores e, portanto, é algo construído gradativamente. A Secretaria de Educação Especial do MEC publicou um documento, em janeiro deste ano, cujo título é: Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Acho que ele traduz o que penso. Nos sites do MEC, da Rede SACI, do Planeta Educação e tantos outros há muitos exemplos de iniciativas inclusivas, assim como em livros, blogs e listas de discussão. A inclusão veio para ficar, e vemos seus sinais em todos os cantos, das vagas demarcadas em supermercados até leis, produções acadêmicas, novelas, ônibus adaptados…
Mobilizadores COEP – Como a iniciativa privada e o governo brasileiro vêm se portando em relação à inclusão de pessoas com deficiência?
R.: Há numerosos exemplos maravilhosos e outros tantos deploráveis, na iniciativa privada e na esfera governamental (municipal, estadual e federal). Gostaria de destacar a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que acabou de acontecer. Além do conteúdo da Convenção ter sido discutido profundamente pelo segmento das pessoas com deficiência ? e, portanto, representar seus anseios e suas necessidades, aqui no Brasil ele adquiriu o status de emenda constitucional, pois foi adotado um recurso existente na Constituição, mas que nunca havia sido utilizado anteriormente. Portanto, temos duas razões para celebrar: a Convenção e o processo de ratificação. A partir da ratificação da Convenção, todos nós temos motivo para esperar que o cenário social brasileiro passe por alterações profundas e que a Convenção seja o instrumento para promover e apressar essas alterações.
Mobilizadores COEP – Qual a proposta do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas? Que tipo de iniciativas promove para a inclusão de pessoas com deficiência?
R.: O Amankay é uma associação civil, de direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1989, cujo objetivo é a democratização de informações. Atua fundamentalmente em duas áreas: deficiência e na elaboração de guias sociais. Seu foco institucional é produção e disseminação de materiais que promovam a inclusão social e a qualidade de vida de segmentos sociais fragilizados (pessoas com deficiência, jovens moradores em bairros periféricos, egressos do sistema penitenciário e outros), através da democratização do acesso à informação e da atuação em rede. Os nossos principais projetos podem ser conhecidos através do site (http://www.amankay.org.br/), tanto na área da deficiência como em outras. Um exemplo é o Alô V.I.D.A, um serviço, de abrangência nacional, de atendimento telefônico de escuta, orientação e encaminhamento, realizado por profissionais preparados para ouvir crianças, adolescentes, pais, professores e público em geral.
Mobilizadores COEP ? Qual o objetivo da ?Campanha Acesso de Humor? e como é possível aderir à iniciativa?
R.: A campanha Acesso de Humor é uma iniciativa do Amankay e contou com o apoio da Ashoka Empreendedores Sociais e do Planeta Educação, e com as parcerias da Associação Brasileira da Síndrome Pós Pólio (ABRASPP), do Instituto Interamericano de Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo (IIDI) e do Instituto Rodrigo Mendes. Seu objetivo é desenhar e implementar uma campanha de conscientização sobre o Direito à Acessibilidade no sentido mais amplo da palavra (meio físico, digital e atitudinal), utilizando a linguagem do humor, mostrando que acessibilidade “não é coisa de pessoa com deficiência” e dirigida a lideranças de organizações da sociedade civil. Para aderir, é possível criar um cartum sobre acessibilidade e enviá-lo ao endereço www.planetaeducacao.com.br/acessodehumor , onde estará disponível aos que quiserem inseri-lo em sua correspondência eletrônica ou em seu site, blog ou outro espaço. É possível inserir o selo da campanha em correspondências eletrônicas, sites, blogs; é possível reproduzir o conteúdo informacional, dando os devidos créditos.
* O texto ?Preconceitos e Calorias? está disponível na ferramenta Textos do Grupo Inclusão de Pessoas com Deficiência.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Edição: Eliane Araujo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
Parabéns à Entrevistadora e à Entrevistada, Marta Gil (saudade).
A entrevista demonstra a sensibilidade da entrevistada. Adorei a resposta à pergunta “Como o preconceito começou?”
Abraços,
Ruth Simão Paulino