Para a psicanalista Maíra Soares Ferreira, cada escola exerce papel fundamental na aplicação da lei nº 11.465/08, que torna obrigatório o ensino sobre a história e a cultura afro-indígena em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, das redes pública e particular no país. Segundo Maíra, as histórias afro-brasileira e indígena estão nas próprias comunidades, sendo assim, cada escola precisa se adaptar, mapear, estudar, conhecer a comunidade que atende para, então, montar seu projeto político pedagógico, seu currículo, sua grade horária.
Maíra é autora da tese de mestrado “A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social entre jovens de uma escola pública de São Paulo”. A pesquisa recebeu o apoio da Fapesp e, recentemente, foi premiada pelo Ministério da Cultura (MinC), que apoiará a publicação da dissertação em livro.
A partir da pesquisa, Maíra desenvolveu com os jovens alunos de uma escola pública de São Paulo um espaço lúdico e criativo de ressignificação de suas histórias e experiências. Por meio da elaboração de poesias, segundo as métricas do cordel e nos ritmos do rap, ela trabalhou a própria recriação poética destes jovens.
Para a psicanalista, as manifestações culturais juvenis, como o hip hop, apesar de constituírem um campo muitas vezes marginalizado da cultura escolar -, revelam a escassez de espaços escolares e não escolares em que os jovens possam se apropriar, expressar, desenvolver, cultivar diferentes formas de ver seu presente, depreender outros significados de seu passado e imaginar futuros possíveis.
Mobilizadores COEP ? Quantos afro-indígenas vivem hoje no Brasil? É possível determinar quantos estão em idade escolar, especificamente no ensino fundamental e médio?
R.: Podemos brincar dizendo: muitos milhões. Vivemos em um país mestiço de histórias ?hifenizadas?. A hifenização no nome afro-indígena, por exemplo, é importante, pois mantém a referência à “mistura” de culturas, dando atenção, em proporções equivalentes, a todos os componentes étnico-culturais (Cf. Russell-Wood, 2001:34).
Esta proposta do autor representa uma mudança de paradigma que, ao contrário de apagar a história da opressão e da resistência, visa ?apreender a diversidade das culturas e dos povos ? luso, indígenas, africanos, americanos e brasileiros ? por meio de uma série de ?identidades hifenizadas? que passaram a povoar o Novo Mundo? (Russell-Wood, 2001:42).
Em suma, muito diferente de serem ?favelados?, ?pobres?, ?negros? nossos jovens apresentam ?identidades hifenizadas? (cf. o autor) como: afro-brasileiros, afro-indígenas, sertanejo-nordestinos, nordestino-paulistanos, afro-paulistanos etc. Estes nomes hifenizados carregam história, cultura, tradição, ancestralidade, pertencimentos, memórias.
É uma nova concepção de cultura. Uma concepção que não acredita em pureza, em identidades, em origem e sim em mistura, movimento e recriação. Trata-se de uma concepção que observa e atribui uma conotação ativa e dinâmica. Atribui aos povos que ? por meio de aldeamentos, cativeiros, desterritorialização, etc ? sofreram muitas ?misturas forçadas?, tanto no campo étnico quanto no social. E é fato que qualquer sujeito e grupo humano carrega consigo um sentido de intencionalidade e não de passividade, como tentam sugerir alguns conceitos, como por exemplo o conceito aculturação.
A pobreza no Brasil tem cor ? disse Bento (2002). A maioria dos alunos das escolas públicas brasileiras hoje atende à periferia, à classe baixa, ou seja, são os afro-indígenas brasileiros ? por exemplo.
Mobilizadores COEP ? Os descendentes de negro e índios no Brasil conhecem e valorizam suas origens, sua história? De que forma isto se reflete na sociedade em geral? Comente.
R.: Este foi meu desafio na pesquisa ?A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social entre jovens de uma escola pública de São Paulo?. Na escola pesquisada, havia uma grande questão a ser enfrentada com os jovens alunos. Havia alguns abismos e então era preciso construir pontes, como: entre a ?cultura escolar? e as ?culturas juvenis?, entre o ?passado? e o ?presente? dos jovens alunos, entre a história, cultura e realidade de suas comunidades e o projeto pedagógico da escola e, por fim, entre a experiência e interesse dos jovens alunos e as disciplinas do currículo escolar. No entanto, um desafio logo se apresentou: se ? na expressão artística ? por um lado os jovens tinham uma paixão pela poesia de improviso e pelo canto falado (rap/hip hop), por outro ? no discurso manifesto ? eles ?recusavam? qualquer proximidade com as culturas afro-brasileiras, indígenas e nordestinas. Por quê? O que recusavam?
A história da Favela Real Parque (comunidade onde vivem os alunos da escola pesquisada) é conhecida por seus moradores. É sabido que grande parte desta comunidade é de Pernambuco, especificamente de uma região do sertão nordestino que, no decorrer do século XIX, ficou conhecida como ?Brejo dos Padres?. Neste local ocorreu um ?aldeamento forçado? ? violentas políticas do Estado ? que fez conviverem, em uma mesma terra, muitos diferentes povos indígenas, grupos de afro-brasileiros recém alforriados e sertanejos livres e pobres.
Segundo Arruti (1995), a intenção era misturar para enfraquecer as culturas e tradições e, com isso, propiciar mão de obra para a construção do capitalismo brasileiro. Assim, no século XX, entre as décadas de 1950 e 1970, temos depoimentos de indígenas Pankararu, afro-brasileiros e sertanejos que foram trazidos para São Paulo para atuarem em algumas construções civis da metrópole paulistana, como o Estádio de Futebol do Morumbi.
Enfim, esta história, este passado recente, apesar de conhecido, parecia não permitir ao jovem o reconhecimento dos vínculos entre a sua atual cultura urbana ? o rap e o hip-hop ? e sua ancestralidade, por exemplo: suas tradições orais afro-indígenas sertanejas e nordestinas. É importante salientar que era na escola que os jovens diziam não conhecer a cultura afro-brasileira, não conhecer os ritos Pankararu e nunca ter visitado o sertão nordestino. Um aluno deixou escapar algo quando disse: ?Eu só sei que meus pais são Pankararu?.
Esse distanciamento, essa recusa manifesta da história, da cultura e do passado, pode ser entendido a partir de alguns fatos. Primeiro, historicamente, a experiência cultural e social dos grupos étnicos e pobres brasileiros é marginalizada, entendida com desdém e contada sob um ponto de vista. Segundo fato, este acúmulo de vivências da população é desconsiderado e desvinculado do ambiente de ensino. Terceiro, a mentalidade escravocrata e, portanto, preconceituosa, assim como as políticas públicas discriminatórias, atravessam as concepções de homem e de educação fortemente presentes nos projetos político-pedagógicos e nas elaborações dos currículos escolares.
Em suma, a (não) resposta dos alunos denunciou uma problemática bastante séria ? naquela escola não havia um projeto político-pedagógico e um currículo elaborado (construído, adaptado) para atender sua própria comunidade. Neste sentido, faltava o essencial para aquela escola, afinal se a história e a cultura são as matérias que fundam o sujeito ? propiciando sua singularidade ? exatamente estas estavam negadas.
Um pequeno exemplo ? em 2007, na data em que se comemora o ?Dia do Índio? no Brasil, havia, por toda a escola, cartazes mencionando as diferentes etnias indígenas brasileiras, com exceção justamente dos Pankararu.
Mobilizadores COEP ? Neste sentido, comente a importância da Lei nº 11.465/08, que torna obrigatório o ensino sobre a história e a cultura afro-indígena em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, das redes pública e particular, no país.
R.: Fundamental, mas precisa de um desdobramento que deve ficar sob a responsabilidade de cada escola. Concomitante ao trabalho que desenvolvi na escola, no cenário nacional, tivemos a elaboração da Lei 10.639/03 ? que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África ? e seu complemento, Lei 11.465/08 ? que insere a obrigatoriedade do ensino da cultura e história indígena e afro-brasileira. Assim, ?apropriei-me? desta última lei, desdobrando-a em um estudo que teve como ponto de partida a história cultural e étnico-social da comunidade local atendida pela escola em questão.
Para isso, realizei dois tipos de investigação sobre o passado nordestino desta comunidade específica: uma, por meio da leitura de pesquisas antropológicas que contam a história destes trabalhadores ?afro-indígenas pankararu e sertanejo-nordestinos? trazidos para a construção e expansão do capitalismo no sudeste brasileiro e outra, que foi uma viagem em direção à poesia popular do sertão nordestino, com ênfase nos hibridismos culturais que nele se produzem.
O motivo da etnografia da poesia popular nordestina se deve ao gosto dos jovens pela poesia urbana do rap e do hip hop. Ou seja, se os jovens não podiam (no discurso manifesto) falar sobre seu passado recente, eles podiam ? através da tradição oral presente em suas manifestações poéticas ? expressar a ligação com suas ancestralidades. O cordel nordestino e o coco de embolada conversam com as modas elaboradas nos cativeiros, os jongos, batuques ? assim como o grafite dialoga com a xilogravura, o rap, com o repente etc.
Ainda na viagem, conheci três projetos nesta linha. Um foi em Caruaru (PE) ? projeto com cordel e história desenvolvido pelo Museu do Cordel, Academia de Literatura de Cordel e Secretaria de Educação do município. Outro projeto foi na própria aldeia indígena Pankararu, que trabalha com dois currículos: a educação formal sistematizada e a educação enquanto formação cultural do sujeito ? esta acontece no terreiro e a primeira, na sala de aula. O nome do projeto é: Conhecendo o passado para construir o futuro. E a terceira experiência encontrada é de São José do Egito, também em Pernambuco ? cidade do sertão considerada a capital da poesia. Nesta cidade, as escolas públicas e privadas, assim como as universidades particulares mais próximas, têm uma cadeira chamada Literatura Sertaneja.
Vinícius Gregório, ex-aluno e hoje um grande poeta da cidade, explicou: ?Dizem que os jovens não gostam de poesia, mas as poesias que eram levadas para nós tinham palavras que nem um adulto consegue entender, palavras que nem no dicionário acredito que exista. Para mim não pareciam poetas, mas matemáticos da palavra. Então quando o professor Neném Patriota nos ensinou a poesia dos poetas daqui, aí sim nós gostamos. Nós estávamos na 7ª e 8ª série e queríamos viver o nosso mundo, entender a poesia daqui, cada um quer viver o seu mundo, claro! Estas poesias eu entendia e ainda lembrava das que meu pai declamava?.
Em suma, voltando à pergunta da entrevista ? a lei é importante, mas acho que o caminho é sempre a partir da realidade do aluno. A história afro-brasileira e indígena está na comunidade. Cada escola precisa se adaptar, mapear, estudar, conhecer a comunidade que atende para então montar seu projeto político pedagógico, seu currículo, sua grade horária. Pensar as matérias, cada uma (geografia, história, português, biologia, matemática) a partir do aluno, da história dele, da cultura dele, da experiência social da família dele).
Cada escola deve oferecer suas disciplinas a partir das ?raízes? culturais de seus próprios alunos. É a partir daí que dá para ir para as várias e diferentes histórias afro-brasileiras, as histórias indígenas do nosso país, a história da África, a história do mundo!
Considerar a história do jovem, a manifestação artística dele ? como é o caso do hip hop hoje ? significa ganhar o aluno, despertá-lo para o mundo, para a vida, convidá-lo à curiosidade, vê-lo com respeito. Significa aproximar incluindo, chamando junto para a luta contra a discriminação. Afinal estas leis, assim como o projeto de cotas, fazem parte de um movimento maior que é o programa de ?ações afirmativas?.
Mobilizadores COEP ? Desde a edição da lei, já houve alguma mudança significativa no modo de os alunos enxergarem sua herança afro-indígena? Comente.
R.: Sim. Um elemento significativo deste trabalho com os jovens teve início com a observação das encenações corporais dos alunos, as ?falas pelo gesto?, constituindo verdadeiros ?atos de linguagem?. O estudioso José Machado Pais sustenta que ?as encenações rebeldes das culturas juvenis promovem uma integração que se dá no palco de um reconhecimento intersubjetivo em que as aparências estão mais arraigadas às experiências que às consciências? (Pais, 2006:18).
Assim, talvez este tenha sido um dos motes das intervenções em sala de aula: interpretar estas experiências, colocando-as em palavras, possibilitando uma compreensão emocional das angústias e injustiças que denunciavam com seus atos, desenhos, poesias, músicas, cuja expressão se deu por meio de uma espécie de mimetização teatral da realidade vivida.
É fato que o indivíduo não consegue alcançar existência se não ocupar um lugar diante de um outro, se não pertencer a uma história, tiver uma casa onde morar, uma família que o ampare, uma cidade na qual se sinta tratado como cidadão. É preciso pertencer a um mundo compartilhado por outros homens. Ocupar um lugar no mundo é ocupar um lugar na vida de um outro. Somente a partir desta experiência é que o olhar poderá se voltar para o mundo com curiosidade e desejo. Contudo, o que se observa nas comunidades-favela é que este sentimento de pertencer ao mundo parece abalado em sua constituição; eles se referem a si mesmos como fazendo parte de uma categoria inferior de pessoas, como indivíduos que não podem ser vistos na sua humanidade e sim despersonalizados sob o rótulo de favelados.
Assim, o trabalho desenvolvido com os jovens permitiu a construção de um espaço lúdico e criativo de re-significação de suas histórias e experiências com o preconceito e a humilhação. Em outras palavras, por meio da elaboração de poesias, segundo as métricas do cordel e nos ritmos do rap, trabalhou-se a recriação poética de si mesmos.
Deste modo, entende-se que uma outra discussão a ser enfrentada envolve, não apenas a importância ou não deste debate no âmbito escolar, mas de como fazê-lo. Afinal, é preciso reconhecer que enquanto o enfrentamento da discriminação solicita políticas públicas que garantam ?ações afirmativas?, o preconceito ? por se enraizar no campo subjetivo ? requer esforços conjuntos da educação e da psicanálise.
Mobilizadores COEP – Como incentivar que o ensino da história afro-indígena seja, de fato, aplicado no dia a dia de crianças e jovens brasileiros?
R.: Como já afirmei, entendo que a apropriação, reinvenção e recriação da própria história é uma condição importante para a existência de um ser humano. Sendo assim, a experiência de pertencimento a um coletivo, a uma comunidade, uma família, um grupo cultural e/ou étnico-social é fundamental para a existência dos seres enquanto sujeitos históricos e políticos.
A atual e marcante visibilidade que o movimento hip-hop ? ativo nas periferias do planeta ? propicia a seus integrantes (as diversas juventudes) é uma importante experiência de inserção e inclusão social. A oralidade poética presente no rap da juventude de todas as ?quebradas? está na esteira das tradições e ancestralidades africanas e indígenas. O cordel, os repentes e o hip-hop que chegaram ao Brasil e, rapidamente, ganharam corpo como símbolo de combate à humilhação, ao preconceito e à discriminação dão continuidade a uma história de luta por formas dignas de pertencimento.
No Brasil (assim como na escola pesquisada), encontrei muitos jovens que estão ?reciclando? as histórias transmitidas por seus pais e introduzindo-as nas músicas e ritmos que mais gostam como ? o samba, o funk, o pagode e o rap. Eles integram e mesclam todos estes diferentes elementos em suas produções poético-musicais, por exemplo: misturam letras de samba e pagode com a batida do rap, musicam seus cordéis, elaboram poesias, brincam com associações livres e improvisam versos. Assim, a meu ver é interessante observar, acompanhar e incentivar toda essa criação poética que, além de revelar um verdadeiro mosaico cultural brasileiro, parece propiciar ? aos jovens ? o exercício de uma ?afirmação? étnica e social.
Por fim, é necessário sublinhar: o jovem precisa de um espaço ? dentro e fora ? da escola para se expressar, nomear suas angústias, conversar com um adulto, cultivar. Desenvolver diferentes formas de ver seu presente, assim como obter outros significados de seu passado pode ajudá-lo a imaginar diferentes e possíveis futuros para si mesmo. Afinal, uma educação comprometida exige a responsabilidade pelo mundo, o que significa levar o jovem a se responsabilizar com seu passado e com sua história de modo a ressignificar o seu presente e, assim, renovar o mundo.
Mobilizadores COEP – Na sua avaliação, o que determina que escolas neguem ou ignorem as heranças socioculturais de seus alunos?
R.: O preconceito. A mentalidade escravocrata. A formação social do pensamento brasileiro. O pacto narcísico de privilégios dos brancos (branquitute, cf. Bento, 2002), o medo da elite, a cordialidade e o estado personalista (cf. Sergio Buarque de Holanda, 2002) etc. Tudo isso está na base das políticas discriminatórias.
De modo geral, os rappers, o movimento da literatura marginal, o hip-hop, entre outros, levantam, claramente, a bandeira das ações afirmativas ? a ?reparação? de uma escravidão brasileira que ainda não foi superada. Ou seja, o preconceito, a mentalidade social brasileira, a humilhação e a discriminação que, por exemplo, os moradores pobres das favelas, periferias e ruas brasileiras sofrem ainda hoje, está diretamente relacionado com a maneira pela qual o país lidou (ou não lidou) com a abolição da escravidão.
Mobilizadores COEP – Por que a valorização dessas heranças é importante para as comunidades onde as escolas estão inseridas?
R.: Logo nos primeiros encontros, um jovem me perguntou: ?? O que você está fazendo aqui com nós, favelados? Eu vou ser um aviãozinho?.
Há muitos sentidos implícitos no nome próprio de cada pessoa como, por exemplo, a história pessoal e coletiva de cada um. Ou seja, o nome, a história e a cultura carregam definições de quem somos. Então, se assim for, é de chamar a atenção quando alguém se identifica a partir de uma condição social ? sou favelado ? e não por seu nome, sobrenome, apelido etc.
A pergunta ?quem sou eu?, ?quem somos nós? é universal e essencial para a constituição do sujeito. Apesar de ser um questionamento que não oferece uma resposta direta, ele abre para ?algo? fundamental na condição humana ? que é a possibilidade e necessidade de ligação com o mundo. Resumidamente, as perguntas sobre o destino, o sagrado, os ideais, o ódio, o futuro e os projetos de vida são de grande valor. E não tem problema não saber respondê-las, é até natural. O que é grave é não formulá-las, é silenciá-las e/ou tentar apagá-las.
No fim do trabalho, no sarau que organizamos, este mesmo jovem disse: ?Eu sou um afro-indígena paulistano, eu tenho história e agora o mote é pegar carona na tradição?.
Para finalizar, essas manifestações culturais juvenis como o hip hop ? a despeito do fato de constituírem um campo, na maior parte das vezes, marginalizado da cultura escolar – revelam a escassez de espaços escolares e não escolares em que os jovens possam se apropriar, expressar, desenvolver, cultivar diferentes formas de ver seu presente, depreender outros significados de seu passado e imaginar futuros possíveis. Por fim, é importante salientar que foi a partir das culturas juvenis encontradas na escola ? em especial o rap e o hip hop ? que nos deparamos com a necessidade e importância do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena e não o contrário.
No entanto, como já mencionado, ficou evidente que a cultura popular, assim como a experiência social ? seja dos indígenas, dos afro-brasileiros ou dos nordestinos ? tem sido marginalizada e excluída da ordem hegemônica da cultura escolar a ponto de seus jovens alunos negarem-se, ao menos neste ambiente escolar, a entrar em contato com essa realidade.
A pergunta é: a escola está a serviço de quem? Se for do aluno, então a importância do estudo da história e cultura da comunidade em questão é uma ferramenta para a melhoria do ensino público ? hoje em situação decadente.
Mobilizadores COEP – Em termos socioeconômicos, de que forma o ensino sobre a história e a cultura afro-indígena pode trazer mudanças a médio e longo prazo?
R: Menos amnésia social significa mais sujeitos autônomos – apropriados de sua história e cultura. O resultado pode se chamar EMANCIPAÇÃO.
Uma educação emancipadora exige, como dissera Arendt (1992), a responsabilidade pelo mundo, o que significaria ter como objetivo levar o jovem a se comprometer com seu passado e sua história pessoal e coletiva, de modo a ressignificar o seu presente e, assim, renovar o mundo.
Nesta direção, seriam muitas as dificuldades para se atingir objetivos amplos como estes apontados por Arendt (1992), no entanto, esforçamo-nos para viabilizar um processo de subjetivação ? forma fundamental para existir no mundo como sujeitos ? que pudesse ao menos no espaço de uma sala de aula viabilizar, pela via poético-musical do cordel, rap e repente, formas de se afirmar diante da discriminação e do preconceito a que estão submetidas estas famílias há tantos séculos.
Uma primeira questão é pensar em que medida é possível encontrar, nas produções culturais nordestinas e juvenis, a possibilidade de uma ampliação do campo de negociação com uma realidade marcada pela injustiça social, potencializando a capacidade de inventar modos de sociabilidade e integração societária que resultem em novas e singulares modalidades de inclusão.
Mobilizadores COEP – A senhora criou um método de ensino da cultura e história afro-indígena que pode facilitar a abordagem sobre o assunto em sala de aula. Em que consiste este método? Quais os principais meios de interlocução usados para que os alunos se apropriassem de seu passado e quais os principais resultados observados?
R.: Na escola pesquisada havia inúmeros alunos com aulas vagas todos os dias! Curiosa para saber o que faziam estes jovens diante destes longos ?intervalos? da escola ? reflexo do descaso de nosso Estado ?, optei por me aproximar e ouvi-los. Para minha surpresa e encantamento, constatei que eles faziam rimas, ouviam raps e, principalmente, expressavam a dor do preconceito, humilhação e da discriminação fortemente vivido por eles. Percebi que as poesias cantadas dos jovens eram verdadeiras crônicas da realidade brasileira. Observei muita criatividade e vontade de viver versus a violência e à precariedade da escola pública. Posso dizer que era quase a ?certidão de nascimento? de um e o ?atestado de óbito? de outro.
Para enfrentar esses desafios da negação da escola e da recusa dos jovens alunos, o primeiro passo foi voltar para as salas de aula.
Começamos ? os docentes e eu ? a ?entrar em contato? com a realidade local, a entrevistar os alunos e suas famílias, a estudar as culturas populares, a poesia do rap o movimento do hip-hop, as poesias populares nordestinas e sertanejas (como o cordel e os repentes) e, também, a pesquisar a história da migração desta comunidade que a escola atende.
Os alunos foram, em um movimento crescente, elaborando rimas, poesias, crônicas e músicas. Foram desenhando, narrando, compartilhando e denunciando suas experiências de preconceito, humilhação e discriminação na escola, no bairro e nas excursões pela cidade (teatros, museus etc.). Pouco a pouco, construiu-se um ambiente de trocas, no qual professores e alunos ensinavam uns aos outros.
Através das métricas das poesias populares e das regras da oralidade, iniciamos um trabalho de ?intervenções em sala de aula? que foi batizado pelos alunos de ?Cordel, RAP & Repente na Escola?. Através destas métricas e regras os jovens foram contando suas histórias, e os professores re-significando suas aulas. O professor de Geografia deu sua aula sobre migração com base na história dos jovens. A professora de história pediu para os alunos escreverem um cordel sobre a escravidão e o atual movimento das favelizações. A professora de português aprofundou os estudos em classe sobre as diferentes formas literárias brasileiras.
Resumidamente, a hipótese desta pesquisa foi a de que o jovem, a partir do contato com as suas culturas, poderá se apropriar de sua própria história para, com isso, ter maiores condições de recontar e replanejar sua vida futura. Ou seja, ressignificar sua vida e construir seu projeto de vida sem se render à violência do preconceito e da humilhação a que estão submetidos.
Mobilizadores COEP – Este método foi aplicado com alunos de que faixa etária?
R.: 7ª série ? 13-14 anos. A comunidade que a escola atende é emblemática para o estudo em questão. Este trabalho aconteceu com o apoio da Fapesp na linha do Programa Melhoria do Ensino Público.
Mobilizadores COEP – Poderia citar alguns assuntos, que fazem parte da história atual da sociedade brasileira, que podem ser explicados/abordados a partir do ponto de vista da história afro-indígena?
R.: A primeira é que, frente à trajetória histórico-social destas populações ? cujas vidas foram construídas em meio a uma estrutura social excludente e discriminatória ? as recriações culturais, assim como as buscas por novos espaços parecem revelar uma dinâmica que vem re-significando a diáspora e o aldeamento afro-indígena brasileiro, cujas marcas, todavia, estão longe de serem suplantadas. Conforme os estudos de Vargas (2007), é possível afirmar que as manifestações de culturas populares tradicionais (como o cordel e o repente) e as populares internacionais (como o rap) aproximam-se no que diz respeito a uma busca constante de renovação e recriação cultural.
As denúncias poéticas encontradas nas manifestações culturais estudadas revelam, nesse sentido, possibilidades enriquecedoras de ressignificar o passado. Portanto, diante da permanência das condições de exclusão e de miserabilidade da população brasileira, sustentamos a ideia de que não há apenas submissão, mas criação poética como forma de resistência cultural frente ao esquecimento (induzido) e à amnésia de todo esse passado repleto de contradições e renovações das culturas populares.
A segunda é que o cordel, os repentes e o hip hop que chegaram ao Brasil e, rapidamente, ganharam corpo como símbolo de combate à discriminação e ao preconceito étnico-social, dão continuidade a uma história de lutas por formas dignas de pertencimento. Ou seja, revelando-se como uma espécie de contrapartida da diáspora e, ao mesmo tempo, ressignificando o hibridismo já existente. Os estudos sobre o hip hop parecem avançar nesse sentido, uma vez que, no âmbito das culturas globalizadas, provocam rupturas nas tendências totalizantes destas últimas. Além disso, estas manifestações parecem constituir um modo de inserção social e cultural que põe em movimento alguns preconceitos étnico-sociais ainda não superados pela sociedade brasileira.
A terceira e última consideração diz respeito à visibilidade alcançada por estes jovens que habitam as grandes cidades (Recife, São Paulo), conquistando novos espaços e novas formas de expressão na metrópole. Visibilidade que parece propiciar a seus integrantes um lugar de pertença que pode fazer emergir nestes sujeitos um campo psíquico que se apresente como forma de (re)significar esse passado e atualizar as diferentes formas de inserção social, política e cultural.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Renata Olivieri e Flávia Machado