Regina Miranda, especialista em Saúde Comunitária e integrante da ONG Maria Mulher – Entidade Nacional de Mulheres Negras pela Erradicação da Violência Racial que atua no Rio Grande do Sul ? fala sobre o racismo no Brasil e as imensas diferenças socioeconômicas entre brancos e negros que persistem em nosso país. Para ela, o racismo no Brasil é histórico, assim como a imensa concentração de riquezas que impede o pleno desenvolvimento de nossas capacidades. Nesta entrevista, Regina, que também é presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea-RS), fala sobre desigualdades, políticas públicas, cotas, mulheres negras e o que todos nós podemos fazer para diminuir o abismo social entre brancos e negros.
Mobilizadores COEP – Quantos negros vivem hoje no Brasil? Onde estão mais concentrados e qual o perfil socioeconômico desta população?
R.: Depois da África, o Brasil é o país que concentra a maior população negra do mundo e também onde os negros permanecem ocupando a mais baixa localização na pirâmide social. A população brasileira foi estimada em 184,4 milhões de habitantes, em 2005, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD), sendo que 91 milhões de pessoas se declararam de cor/raça parda ou preta, aproximando-se bastante da população branca, estimada em 92 milhões. Assim, os negros (pardos e pretos) correspondem, hoje, praticamente à metade da população do país. Destes, 35,8 milhões residem na Região Nordeste e 32 milhões, no Sudeste.O estado de São Paulo contava, em 2005, com a maior população negra do país, com aproximadamente 12,5 milhões de pessoas de raça/cor preta ou parda, correspondendo a 31% dos habitantes do estado, segundo dados divulgados pela PNAD. Entretanto, em termos relativos, é um dos estados com menor proporção de negros, juntamente com os da Região Sul, pois, nos demais, as pessoas que se declararam pretas ou pardas equivalem a mais de 50% da população. Bahia, Amazonas e Pará são os estados com maiores proporções de negros, próximas a 80%. Somando-se os estados de São Paulo, Bahia e Minas Gerais, têm-se mais de 30 milhões dos negros do país.
Mobilizadores COEP – Tais diferenças se acentuam quando analisamos pelo prisma de gênero? Como tais desigualdades se refletem na sociedade brasileira?
R.: Sim. As mulheres negras são mais acometidas do que os homens negros em nosso país. Portanto, além de existir um preconceito contra a população negra em geral, existe ainda mais quando falamos de mulheres negras. A população feminina negra no Brasil possui os piores índices de emprego e educação. Geralmente, são vistas como empregadas domésticas e ganham menos do que as mulheres brancas, ainda que seja para desempenhar a mesma função. Estas desigualdades se refletem muito mal em nossa sociedade. Todos perdem muito com tanta desigualdade, não somente a racial. A imensa concentração de renda existente no Brasil pode ser considerada uma doença social e torna um país inadministrável, a partir do momento em que se privilegia uma determinada minoria. Quando existe uma parcela da população excluída de desfrutar dos seus direitos básicos para viver com dignidade, como moradia, educação, saúde ? e no caso do Brasil não se trata de uma minoria e sim de uma grande parcela -, todo o restante da população vai sofrer de alguma forma, seja com o aumento dos índices de violência, seja com a falta de estudo que não permite o pleno desenvolvimento de uma sociedade.
Mobilizadores COEP – Que aspectos as políticas públicas brasileiras deveriam contemplar para assegurar à população negra os direitos de cidadania? Em que áreas esta população é mais vulnerável do que a branca? Por que motivo?
R.: De certa forma, podemos dizer que a partir do momento em que um governo assume que existem desigualdades raciais em seu país, já estamos avançando. É o passo para assumir que somos racistas. Neste ponto, foi criada em 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que tem como objetivo promover a igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra.É claro que ainda estamos muito longe de chegar a um ideal, mesmo porque a população negra no Brasil sofre de uma discriminação histórica, instituída com o regime escravocrata do Brasil colônia. Desde que foi abolida a escravatura, não tivemos uma política pública de inserção dos negros em nossa sociedade. Pelo contrário, a raça negra ficou excluída do sistema produtivo, não tendo acesso a nenhum tipo de direito, como terra própria para produzir, moradia ou educação.Portanto, a população negra é mais vulnerável do que a branca em todos os aspectos: não tem acesso à educação e saúde públicas de qualidade e muitas vezes não consegue ter uma vida digna, pois seus direitos básicos não são assegurados.
Mobilizadores COEP – Algumas políticas públicas têm conseguido diminuir as diferenças étnico-raciais entre as populações mais pobres? Em caso afirmativo, poderia citar exemplos?
R.: Acredito que o dever de um país é distribuir sua riqueza. O Brasil é um país extremamente rico em recursos naturais, com a maioria de sua população pobre. Portanto, existe uma concentração histórica de riquezas muito grande, em que alguns poucos grupos detêm o capital e a tendência é manter este estado de concentração, se não houver uma interferência de políticas que possam distribuir esta riqueza.As políticas públicas brasileiras, como Bolsa Família, Bolsa Escola e cotas nas universidades são sem dúvida nenhuma um grande avanço, mas ainda são muito tímidas, a meu ver. Tais políticas atingem uma população que de certa forma já teve acesso a alguns direitos sociais, pois a partir do momento em que é necessário apresentar uma série de documentos que comprovem o acesso aos benefícios, esta população já deu um passo adiante. Não que ela não precise de políticas assistenciais, pelo contrário. A minha crítica é com relação a uma população ainda mais excluída que não consegue ter acesso a estes benefícios, por não possuir sequer um registro legal, como Certidão de Nascimento, por exemplo. Acredito que a população mais pobre do Brasil ainda não está sendo atingida.
Mobilizadores COEP – Entre as ações desenvolvidas pela chamada sociedade civil, o que vem sendo feito neste sentido? Poderia apontar iniciativas bem-sucedidas?R.: A pressão que os movimentos sociais realizam é um grande avanço no sentido de forçar as devidas mudanças na sociedade. A própria fundação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é resultado da pressão de movimentos da sociedade civil. A política de cotas para negros nas universidades também é outra iniciativa que vem dando resultados positivos.
Mobilizadores COEP – A Comissão de Políticas para Segurança Alimentar e Nutricional das Populações Negras, do Consea, coloca como fundamental a incorporação da temática racial na construção da Política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). De que forma isto pode mudar a realidade de segurança alimentar de negros em nosso país?
R.: É fundamental na política de segurança alimentar realizar este olhar racial e dar a devida divulgação do quanto é importante para a história do Brasil o fato de os negros terem uma interferência muito grande na culinária brasileira, assim como também na construção deste país que é considerado até hoje um país agrário. Temos que valorizar a contribuição dos negros em nossa sociedade e reforçar nosso ideal de nação. Não somos só descendentes de europeus, como gostamos de dizer, somos também descendentes de índios e de negros.A alimentação dos negros na época da escravidão era, antes de mais nada, uma estratégia de sobrevivência. Pratos e sopas ricos em carnes e gordura animal, vegetais diversificados e carregado de ervas e temperos. Alimentação rica em nutrientes diversificados, que preveniam doenças e caldos para fazer fartura para muitas pessoas. Podemos estimular a segurança alimentar da população fazendo um resgate da culinária típica utilizada pelos negros em nosso país.
Mobilizadores COEP – Quais os principais objetivos do plano de ação desta comissão?
R.: O plano de ação inclui a promoção social da população negra, possibilitando o acesso ao trabalho, à educação e à saúde de forma digna. Existem também algumas características da população negra que exigem medidas mais urgentes no sentido de proteção da sua integridade física, como por exemplo, o caso da anemia falciforme. Este tipo específico de anemia, que acomete certa parcela da população negra, tem origem genética e tem de ser devidamente identificada desde o nascimento das crianças negras. A anemia falciforme não pode ser tratada com doses de ferro, como se faz nas anemias comuns, pois agravaria a doença, podendo fazê-la progredir para casos de morte. No Rio Grande do Sul, conseguimos aprovar uma lei estadual que identifica a anemia falciforme através do teste do pezinho. A partir daí, pode ser dado o devido tratamento para estes casos. No resto do país, no entanto, está em vigor uma política contrária, baseada num protocolo que estabelece que crianças de seis meses a cinco anos devem receber doses de ferro através da rede pública de saúde. Não podemos permitir que esta política continue, pois ela foi instituída partindo do princípio de que todos são brancos. Isso é o que chamamos de racismo institucional.
Mobilizadores COEP – Você participa da ONG Maria Mulher. Qual a linha de ação da organização? Que tipo de iniciativas realiza?
R.: A ONG Maria Mulher é uma organização criada para combater qualquer tipo de violência ou discriminação contra as mulheres negras no estado do Rio Grande do Sul. A ONG estimulou a formação acadêmica de mulheres negras em cursos de Direito e Psicologia, sendo estas preparadas para atuar no atendimento de casos específicos de mulheres negras. É discrepante o atendimento dispensado a mulheres negras se comparado àquele dispensado às mulheres brancas em boa parte dos serviços oferecidos pela rede pública de saúde ou num simples atendimento bancário, por exemplo. A organização também atua em ações de segurança alimentar em casos de mulheres acometidas pelo vírus HIV, promovendo uma alimentação balanceada e rica em nutrientes para que estas mulheres consigam levar o tratamento adiante.
Mobilizadores COEP – Como o COEP pode estimular a equidade de gênero e raça, especialmente nas comunidades onde atua?
R.: Com a grande rede de pessoas mobilizadas, boa parte delas trabalhando em grandes empresas e instituições, acredito que o COEP poderia difundir uma campanha nacional despertando o olhar ao próximo e estimulando o tratamento igualitário entre as pessoas, independentemente de raça. É o que chamamos de cultura endógena, ou seja, ter um olhar diferenciado para as questões do outro. Quando observamos nas ruas o tratamento dispensado aos negros, podemos ter uma idéia do preconceito sofrido por eles todos os dias, com atos racistas.
Entrevista concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.