Esquistossomose, doença de Chagas e malária são exemplos de doenças negligenciadas, assim chamadas porque os investimentos em pesquisa, em geral, não se revertem em desenvolvimento e ampliação de acesso a novos medicamentos, procedimentos diagnósticos, vacinas e outras tecnologias para sua prevenção e controle.
De acordo com Guilherme Loureiro Werneck, pesquisador visitante da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e professor adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), estas doenças atingem, em especial, populações marginalizadas, de baixa renda e com pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento.
Estas doenças contribuem, ainda, para a perpetuação dos ciclos de pobreza, desigualdade e exclusão social, devido, principalmente, ao seu impacto na saúde infantil, na redução da produtividade da população trabalhadora e na promoção do estigma social.
De acordo com Guilherme, para combater o avanço das doenças negligenciadas, é fundamental dar visibilidade social e política a estes problemas. Ele considera essencial a participação da sociedade para pressionar os agentes políticos, o empresariado nacional e a tecnoburocracia estatal para que o enfretamento destas mazelas seja tratado como uma prioridade do Estado.
Mobilizadores COEP – O que são doenças negligenciadas? Quais as principais doenças que se encaixam nesta categoria?
R.: As doenças negligenciadas, muitas vezes também chamadas de doenças tropicais negligenciadas, são um grupo de doenças infecciosas que afeta principalmente as populações mais pobres e vulneráveis, causando impactos negativos na saúde das crianças e na produtividade da população trabalhadora.
Estas doenças são chamadas de negligenciadas porque os investimentos em pesquisa geralmente não se revertem em desenvolvimento e ampliação de acesso a novos medicamentos, procedimentos diagnósticos, vacinas e outras tecnologias para sua prevenção e controle. O problema é particularmente grave em relação à disponibilidade de medicamentos, já que as atividades das indústrias farmacêuticas são principalmente orientadas pelo lucro, e o retorno financeiro exigido dificilmente seria alcançado no caso de doenças que atingem ulações marginalizadas, de baixa renda e com pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento.
Há grande variedade de definições e visões sobre quais seriam estas doenças negligenciadas. Dentre as de maior interesse no cenário brasileiro, o Departamento de Doenças Tropicais Negligenciadas da Organização Mundial da Saúde (OMS) atualmente prioriza a esquistossomose, a dengue, a doença de Chagas, as leishmanioses, a hanseníase, a filariose linfática, a oncocercose, as helmintíases transmitidas pelo solo (as chamadas ?verminoses?), o tracoma e a raiva. No Brasil, o Ministério da Saúde considera também a malária e a tuberculose como doenças negligenciadas. No que diz respeito ao Brasil, desde 2007, ocorreram mais de 10 mil mortes anuais em virtude destas doenças.
Mobilizadores COEP – Há estimativas de quantas pessoas morrem em decorrência destas doenças no mundo? E no Brasil?
R.: A OMS calcula que, no mundo, cerca de 1 bilhão de pessoas são afetadas por uma ou mais doenças negligenciadas. Estima-se que cerca de 200 mil pessoas morram por estas doenças a cada ano no mundo.
No Brasil, calcula-se que a cada ano ocorram cerca de 300 mil casos de malária, 4 mil casos de leishmaniose visceral, 20 mil casos de leishmaniose cutânea, 70 mil casos de tuberculose, 40 mil casos de hanseníase e 12 mil casos de esquistossomose. Nos últimos 3 anos várias epidemias de dengue ocorreram no país, afetando entre 400 a 600 mil pessoas a cada ano e causando mais de 500 óbitos. Em relação à doença de Chagas, são cerca de 2 milhões de infectados e 12% da população brasileira estão sob risco de se infectar. Contando estas doenças, ocorreram mais de 10 mil mortes a cada ano desde 2007 no Brasil.
Mobilizadores COEP – Quais as principais causas para um número tão grande de óbitos?
R.: Principalmente o diagnóstico tardio e a ausência, em alguns casos, de medicamentos eficazes para tratar as formas crônicas das doenças. No caso da tuberculose e da leishmaniose visceral, há ainda o problema da infecção conjunta com HIV/AIDS, o que contribui para aumentar a gravidade e a letalidade destas doenças. Na tuberculose há também o problema da resistência de alguns agentes causadores da doença aos medicamentos disponíveis.
Mobilizadores COEP – Por que afetam mormente as populações mais empobrecidas?
R.: Muitas delas são transmitidas por insetos que se proliferam nas áreas mais depauperadas, sem saneamento e coleta de lixo. Também é comum que as formas mais graves destas doenças afetem principalmente a pessoas com o sistema imune (de defesa) mais frágil e com perfil nutricional inadequado. A aglomeração (comum nas comunidades mais vulneráveis) favorece também a transmissão destas doenças, principalmente a tuberculose e a hanseníase. Estas populações também têm menor acesso aos serviços de saúde, o que dificulta o diagnóstico e tratamento precoces.
Mobilizadores COEP – Das doenças negligenciadas, quais as mais frequentes no Brasil? Em que regiões do país? Alguma delas pode ser considerada endêmica no país?
R.: Todas as citadas são consideradas endêmicas. A malária ocorre quase que totalmente nos estados que compõem a Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos estados do Mato Grosso, de Tocantins e do Maranhão). Já a leishmaniose visceral tem cerca de 50% dos casos registrados na região Nordeste, mas já se espalhou para muitos estados de outras regiões (por exemplo, Tocantins, Pará, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais). Em relação à detecção de novos casos de hanseníase, cerca de dois terços deles são identificados nas regiões Norte e Nordeste.
Mobilizadores COEP – Quais os principais impactos socioeconômicos sofridos pelas populações acometidas por doenças negligenciadas?
R.: Estas doenças contribuem para a perpetuação dos ciclos de pobreza, desigualdade e exclusão social, em razão principalmente de seu impacto na saúde infantil, na redução da produtividade da população trabalhadora e na promoção do estigma social.
Mobilizadores COEP – Até que ponto as alterações do clima podem contribuir para a proliferação de doenças negligenciadas?
R.: Há evidências de que as mudanças climáticas tenham um impacto no aumento da ocorrência de doenças infecciosas, principalmente daquelas transmitidas por insetos. As mudanças climáticas poderiam afetar a ocorrência destas doenças de diferentes maneiras, por exemplo, o aumento da temperatura contribuindo para aumentar na quantidade e disseminação geográfica dos insetos transmissores e mudanças socioambientais aumentando o contato dos humanos com o ciclo de transmissão destas doenças.
Mobilizadores COEP – Que ações são necessárias para combater o avanço das doenças negligenciadas?
R.: Em primeiro lugar é necessário dar visibilidade social e política a estes problemas. Só com o reconhecimento pela sociedade de que estas são doenças incompatíveis com o grau de desenvolvimento social e econômico que se almeja para o país é que soluções efetivas poderão ser encontradas. A participação da sociedade é fundamental para pressionar os agentes políticos, o empresariado nacional e a tecnoburocracia estatal para alçar o enfretamento destas mazelas como uma prioridade do Estado brasileiro.
Também se necessita de mais recursos para desenvolvimento científico e tecnológico e em inovação em saúde. Por exemplo, são fundamentais mais estudos para o desenvolvimento de novos medicamentos, regimes terapêuticos, protocolos de manejo clínico, testes diagnósticos e ações de vigilância e controle inovadoras. Pesquisas que levem a vacinas efetivas são prioritárias. Também é preciso buscar soluções para os entraves operacionais na implementação das ações de prevenção. Para isto tudo é necessário formar recursos humanos capacitados e comprometidos com o enfretamento destas doenças.
Mobilizadores COEP – Neste sentido, como andam, no Brasil, os investimentos de pesquisa e desenvolvimento direcionados às doenças negligenciadas? Como vem sendo a atuação da Fiocruz?
R.: Na última década, houve significativo incremento no financiamento de pesquisas nesta área. Por exemplo, foi criado, em 2006, o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento em Doenças Negligenciadas no Brasil, uma parceria dos Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia. Por meio desse programa, foram financiados 140 projetos de pesquisa em dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, malária, esquistossomose e tuberculose, com investimentos de R$ 39 milhões. Também, entre 2003 e 2008, por meio do Programa de Pesquisa Para o SUS (PPSUS), o Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, junto com as fundações estaduais de amparo à pesquisa e secretarias estaduais de Saúde, aportou R$ 10,6 milhões para apoiar 203 projetos nesta área. Em 2009, mais R$38 milhões foram destinados para o desenvolvimento de projetos na área de dengue e malária.
Diversas unidades e pesquisadores da Fiocruz têm papel preponderante tanto na pesquisa científica como no apoio técnico aos programas de controle destas doenças. Estimo que cerca de um terço dos artigos científicos sobre estas doenças, que contam com autoria de pesquisadores brasileiros, tenha participação de pelo menos um pesquisador da Fiocruz.
A Fiocruz tem também vários laboratórios e departamentos considerados centros de referência nacional ou internacional por instituições brasileiras e estrangeiras nesta área. São exemplos o Laboratório de Referência Nacional de Triatomíneos e o Centro de Dengue (IOC); os Centros de Referência em Leishmanioses, em Doenças de Chagas, em Tuberculose, em Hanseníase e em Leishmaniose Tegumentar (IPEC); o Centro de Vigilância e Monitoramento de Endemias (ENSP); os Centros de Referência em Leishmanioses, em Flebotomíneos, e de Triatomíneos e Epidemiologia da Doença de Chagas (CPqRR/MG); o Centro de Referência em Epidemiologia e Diagnóstico das Leishmanioses (CPqGM/BA) e os Serviços de Referência para Diagnóstico em Esquistossomose Mansônica, em Leishmaniose e em Filariose (CPqAM/PE), entre outros.
A Fiocruz coordena também o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inovação em Doenças Negligenciadas, uma rede internacional de grupos de pesquisa formada para estudar, estimular e promover a inovação em saúde, com foco nas doenças negligenciadas consideradas prioridades sanitárias no Brasil.
Mobilizadores COEP – E quanto ao Ministério da Saúde? Há algum programa voltado às doenças negligenciadas?
R.: No Ministério da Saúde, além do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento em Doenças Negligenciadas no Brasil, há vários programas específicos voltados à vigilância e controle das doenças negligenciadas, como os Programas Nacionais de Controle da tuberculose, da hanseníase, da malária e da dengue. Há também a Coordenação Geral de Doenças Transmissíveis onde se localiza a Unidade Técnica de Zoonoses Vetoriais e Raiva que trata da vigilância e controle da doença de Chagas e das leishmanioses.
Estes programas têm desempenhado um papel importante na vigilância e controle destas doenças. Talvez uma das mais importantes conquistas seja a “Certificação Internacional de Eliminação da Transmissão da Doença de Chagas pelo Triatoma infestans” e o declínio do número de casos agudos desta doença. Há ainda muitos avanços que podem ser verificados diretamente nas páginas eletrônicas de cada programa no sítio da internet www.saude.gov.vbr/svs.
Mobilizadores COEP – Como o COEP, rede social com atuação em comunidades de baixa renda em todo o Brasil, pode contribuir para conter o avanço das doenças negligenciadas?
R.: A atuação do COEP é fundamental para o enfrentamento destas doenças, seja com programas de educação em saúde, contribuindo para a busca de soluções locais com a participação da comunidade, seja promovendo o empoderamento destas comunidades para desenvolver lideranças que possam reivindicar a definição das prioridades nesta área.Entrevista do Grupo Promoção da SaúdeConcedida à: Renata OlivieriEditada por: Eliane Araujo