De acordo com Simone Cynamon Cohen, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as políticas habitacionais de interesse social, para serem bem-sucedidas, deveriam contar com a participação dos atores sociais envolvidos no projeto habitacional e não ser iniciativas exclusivas do aparelho do Estado. Para tanto, a pesquisadora ressalta a importância de um corpo técnico que crie formas de comunicação e de identificação das reais necessidades da comunidade em questão.
Para Simone, a formulação e a implementação de estratégias têm de levar em conta os cenários reais e não situações normativas ideais. Neste sentido, uma habitação saudável é considerada o espaço que contemple não só a parte construída como seu entorno e o bem-estar e qualidade de vida dos moradores.
A pesquisadora assinala a relevância de um Plano Diretor Municipal bem elaborado para garantir a melhoria na qualidade de vida de seus habitantes. Ela acrescenta que, se malformulado, o plano pode não contemplar as reais necessidades locais e facilitar o surgimento de áreas de grande vulnerabilidade e risco.
Simone ainda discorre sobre os principais riscos em habitações durante e após inundações, como contaminação dos lençóis freáticos, das fontes de abastecimento de água, surgimento de doenças de veiculação hídrica e risco de mordidas por animais peçonhentos.
Rede Mobilizadores – Quais as principais deficiências da política de habitação social no país? Quais os problemas mais recorrentes ocasionados por essas deficiências?
R.: As políticas de habitação de interesse social deveriam incorporar como objeto os riscos ou vulnerabilidades existentes no cotidiano da vida urbana. Riscos e vulnerabilidades que se transformam em verdadeiros obstáculos para a obtenção de uma vida com qualidade, bem-estar e autonomia, incorporando as demandas por condições básicas de vida, de conforto e de superação das dificuldades existentes.
As políticas, para serem consideradas de interesse social, devem restabelecer a centralidade de seu caráter público e de sua responsabilidade social. Isso implica um redesenho institucional para superar déficits de eficiência, eficácia e efetividade, bem como déficits de representatividade e sensibilidade, no sentido de definição do que realmente deve ser feito, segundo os interesses e necessidades da sociedade. Seria a redefinição do conceito de comunidade e da sua real/efetiva aproximação do poder público para negociação sobre demandas e prioridades dessa dada comunidade.
As políticas de habitação de interesse social, como processo, deveriam ser participativas incorporando atores sociais envolvidos no projeto habitacional e não iniciativas exclusivas do aparelho do Estado. Deveriam ser compartilhadas por meio de fóruns de discussão, onde estivessem representadas a diversidade de interesse e a necessidade de se redistribuir a responsabilidade pela melhoria das condições de vida entre Estado e sociedade.
A complexidade de um projeto social se deve, principalmente, ao fato de lidar com seres humanos, que são complexos, com desejos, aspirações, interesses e demandas diferenciadas. Para haver sucesso em um projeto social, o corpo técnico deve procurar criar formas de comunicação e de identificação das reais necessidades da comunidade. Uma equipe interdisciplinar que seja encarregada do apoio social aos necessitados é de fundamental importância para o sucesso do projeto.
Portanto, é preciso haver mudanças nos paradigmas estabelecidos e redefinir o desenho de política social, pensando em estratégias de articulação, integração e subordinação dos princípios da equidade e intersetorialidade aos da eficácia e efetividade na agenda da política social. A abordagem interdisciplinar é fundamental para a realização desse movimento de construção de uma nova agenda. Esse processo é dinâmico e determinado para cada espaço social segundo interesses, desejos, hábitos e valores, sendo fruto de interlocução e de pacto entre os vários atores sociais envolvidos nessa situação. A formulação e a implementação de estratégias devem levar em conta os cenários (settings) reais e não situações normativas ideais.
Rede Mobilizadores – O que é uma habitação saudável e o que é preciso para promovê-la?
R.: Espaço que contemple a parte construída e o seu entorno como agente da saúde de seus moradores, onde devem ser observados sua localização, seu modelo construtivo, a possibilidade de que seja habitado, sua relação e adaptação ao entorno, seu gerenciamento, seu uso e sua manutenção. O conceito se introduz desde o ato da elaboração do seu desenho, microlocalização e construção, estendendo-se até seu uso e manutenção.
É relacionado com o território geográfico e social, onde a habitação se assenta; materiais usados para sua construção; segurança e qualidade dos elementos combinados; processo construtivo; composição espacial; qualidade dos acabamentos; contexto global do entorno e educação em saúde e ambiental (estilos e condições de vida saudável).
O momento do dimensionamento de programas e projetos em habitação saudável é complexo e envolve:
•identificação de alternativas já existentes para a solução dos problemas demandados;
•fontes de financiamento;
•apoios institucionais e estabelecimento de parcerias, medidas administrativas, metodologia de monitoramento e avaliação do processo estabelecido.
Para a proposta de habitação saudável seria necessário entender em que ambiente está inserida a habitação, para averiguar qual seria a influência desse ambiente no quadro de morbimortalidade. Nesse primeiro momento da proposta, haveria a incorporação e conjugação do referencial teórico-conceitual construído para habitação saudável, com o lado prático, que será desenvolvido nesse processo.
Dessa forma, caminhando da visão macroespaço urbano para o microespaço da habitação saudável, dever-se-ia observar a semiologia do espaço construído, como instrumento de leitura do espaço urbano e habitacional. A leitura mostraria uma linguagem com códigos e signos que informariam sobre o usuário do espaço físico. Para se apropriar dos códigos e signos se faria necessário realizar uma leitura contínua e atenta, confrontando espaços e promovendo associações entre os elementos que comporiam o conjunto ambiental. Tendo, nesse processo, uma inferência perceptiva que resgate a memória individual e coletiva do usuário desse espaço.
Rede Mobilizadores – O que é um Plano Diretor Municipal? Qual sua importância para evitar tragédias decorrentes de situações de emergência? E quanto a suas principais fragilidades?
R.: O Plano Diretor Municipal é um documento que estabelece parâmetros e diretrizes da política urbana para um município. Oferece instrumentos para que o município possa intervir nos processo de planejamento e gestão urbana e territorial, e garantir a realização do direito à cidade. É considerado como um instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, incorporando a totalidade do território municipal, e tem como objetivo fundamental o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana com vistas à garantia e melhoria na qualidade de vida de seus habitantes. O Plano Diretor é parte integrante de um processo contínuo de planejamento, onde estão definidos os objetivos e assegurada a participação popular na sua realização e implementação.
Constituem o Plano Diretor as políticas, os objetivos, as diretrizes e os instrumentos com vistas à:
I. promoção da Política Urbana:
a) ordenação do território municipal;
b) ordenação do uso e ocupação do solo.
II. promoção de Políticas Setoriais nas áreas de:
a) meio ambiente; b) patrimônio cultural; c) esporte e lazer; d) saneamento ambiental; e) circulação e transportes; f) habitação; g) educação; h) saúde; i) infraestrutura complementar; j) desenvolvimento econômico; l) gestão municipal, articulação social e desenvolvimento comunitário; m) segurança pública.
Porém, quando o Plano Diretor Municipal é mal elaborado, não contempla as reais necessidades locais e permite que haja FRAGILIDADES no processo de ocupação, originando áreas de grande vulnerabilidade e risco. As áreas são pensadas sem possibilidades de crescimento. O não pensar nos vetores de crescimento origina mais ocupações irregulares, sem infraestrutura básica, degradação ambiental e vulnerabilidade e risco. Assim, o processo é motocontínuo.
Desse modo, o uso e ocupação do solo é fator determinante para sua salubridade e sustentabilidade.
As emergências ocorrem pela:
– falta de planejamento estratégico diante do crescimento do município;
– má organização e gestão do espaço urbano;
– não flexibilidade;
– não incorporação inovações. O cotidiano dos municípios não é contemplado.
Rede Mobilizadores – No seu ponto de vista, quais as principais causas de desabamentos durante eventos como enchentes e inundações?
R.: Os desabamentos ocorrem devido a ocupações em áreas de encosta sem o devido planejamento e estudo da qualidade do solo. A péssima qualidade do solo aliada ao depósito de resíduo sólido nas encostas resulta em maior degradação e vulnerabilidade. Também a remoção de morros (obstáculos naturais à chuvas intensas), ocasionam fácil acesso a ventos e chuvas intensas.
O esgoto lançado em natura cria lodo do fundo de recursos hídricos, diminui a lâmina d’água e, com as chuvas fortes, ocasiona o transbordo dos rios. Aliado ao transbordo, as águas encontram os resíduo sólidos que entopem bueiros.
Rede Mobilizadores – Em situações de emergência, em especial, após enchentes e inundações, quais os principais riscos em habitações?
R.: Durante as inundações existem problemas como a contaminação dos lençóis freáticos, das fontes de abastecimento de água, com águas poluídas dos rios. Os riscos são derivados da contaminação de pessoas com doenças de veiculação hídrica, como leptospirose, hepatite, dermatoses, etc… Também há risco de mordidas por animais peçonhentos, como cobras, que invadem as casas, por meio do recurso hídrico. Após as enchentes, os ambientes ficam umedecidos, originando infiltrações nas paredes, mofos, que são considerados riscos de ordem biológica.
Rede Mobilizadores – Se houver inundação em casa, que produtos podem ser usados para desinfetar e proteger o ambiente?
R.: Até o momento não existem produtos que protejam as casas das infiltrações e do mofo, pois a água dos rios penetra nas paredes e nos pisos. Pode-se pensar em tratamento preventivo, que muitas vezes não funciona, como o que ocorreu no metrô de Nova York. Houve um trabalho de colocação de protetores para que as águas não invadissem o local, mas as águas conseguiram passar. É preciso secar as paredes ou induzir a ventilação para que as paredes sequem. Às vezes não é suficiente.
Rede Mobilizadores – E quanto aos alimentos, o que deve ser feito?
R.: Os alimentos devem ser embalados e colocados em lugares mais altos nas casas, para protegê-los do contato com a água poluída do rio ou das chuvas. Não se deve jogar restos de comidas nos vasos sanitários, pois atraem animais como ratos.
Rede Mobilizadores – Quais os riscos de contato com animais peçonhentos? Quais destes animais são mais comuns e onde costumam se alojar?
R.: Existe risco de cobras, aranhas, escorpiões, ratos que conseguem sobreviver às enchentes. Eles costumam ficar alojados em locais frescos, como buracos nas paredes, nas coberturas, buracos no chão, entre pedras, etc… Os ratos podem entrar pelas tubulações, vasos sanitários.
Rede Mobilizadores – O Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza alguma medicação voltada ao tratamento no caso de acidentes com animais peçonhentos? Em caso positivo, o quê?
R.: O Instituto Vital Brazil desenvolve pesquisas com animais peçonhentos, mas não sei se disponibiliza medicação.
Rede Mobilizadores – É possível perceber nas habitações sinais de risco de desmoronamento? Quais os principais indícios?
R.: Sim. Rachaduras nas paredes e nos pisos. Janelas, portas de casa e de armários empenadas.
Rede Mobilizadores – O que a pessoa deve fazer quando percebe que sua moradia ou de vizinhos está em risco? A quem deve recorrer?
R.: Defesa civil. Deve pedir uma perícia técnica para que possam olhar as moradias e averiguar os níveis dos riscos.
Rede Mobilizadores – Há perigos de choque elétrico em equipamentos que foram molhados na inundação? Como proceder?
R.: Com certeza. Todos os equipamentos que foram molhados, e aparentemente não foram danificados, inicialmente deve-se esperar secar. Depois, com luvas e sapatos com solado de borracha, que são isolantes, devem ser manuseados.
Rede Mobilizadores – A Ensp ainda ministra o curso de capacitação de arquitetos de família? A quem é destinado e quais seus principais objetivos?
R.: O curso de assistência técnica para profissionais que atuam em áreas de assentamentos irregulares informais foi oferecido pela ONG Soluções Urbanas, com apoio do Instituto Vital Brazil, por meio das coordenações da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da ENSP/Fiocruz. Este curso ocorreu em 2010.
O curso da ENSP não é voltado para formar arquitetos de família. É um curso de pós-graduação em nível de especialização em promoção de ambientes saudáveis e sustentáveis. Tem como coordenadora a professora Claudia Gonçalves Thaumaturgo da Silva, do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da ENSP.
Este curso passará a ocorrer de dois em dois anos e é destinado ao público interessado em adquirir conhecimentos na área da saúde, ambiente e habitação, dando prioridade para profissionais que atuem nas instâncias governamentais voltadas para a habitação, saúde, urbanismo e meio ambiente.
É voltado para a promoção da saúde no ambiente construído, ou seja, promover a saúde na habitação, como também a saúde urbana.
São ministradas disciplinas, como: (a) saneamento e saúde ambiental; (b) avaliação de risco e biossegurança; (c) políticas públicas urbanas; (d) tópicos em epidemiologia; (e) qualidade do ar na habitação e seu entorno; (f) habitação saudável; (g) sustentabilidade e acessibilidade no ambiente construído; (h) gestão de resíduos sólidos; (i) controle de vetores; (j) mudanças climáticas e desastres; (k) cidades saudáveis, entre outras.
Caso necessite de mais informações a respeito do curso, favor procurar a professora Claudia Thaumaturgo pelo e-mail: thauma@ensp.fiocruz.br .
Professora Simone Cynamon Cohen e-mail: Cohen@ensp.fiocruz.br
Entrevista do Eixo Meio Ambiente, Clima e Vulnerabilidade
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
A própria fiscalização municipal, dentro do seu poder de polícia administrativa, poderia mapear as áreas de risco, e orientar quanto as construções próximas, o que poderia evitar problemas maiores, não só nos casos de inundação, mas também em casos de vendaval. Uma equipe multidisciplinar seria útil na avaliação do terreno, da construção e de outros fatores que possam caracterizar algum risco em potencial.