Eugenia Fávero, procuradora da República em São Paulo, nos fala, nessa entrevista, a respeito da violação dos direitos das pessoas com deficiência no país e da importância da democratização do acesso a informações como meio de estimular a sociedade civil a conhecer a legislação e denunciar o seu descumprimento. Fávero é autora do livro “Direitos das pessoas com deficiência”, pela WVA Editora.
Mobilizadores COEP – Ainda é comum no Brasil pessoas com deficiência terem seus direitos violados. Por que isso acontece?
R.: Creio que isso se deve à falta de informação e sobretudo à falta de consciência de que todos têm direitos iguais e que devem ser promovidas as adequações que se fizerem necessárias para que tais direitos possam ser exercidos de fato.
Mobilizadores COEP – Quais seriam as principais violações e quais as adequações necessárias?
R.: As principais violações, a meu ver, estão no campo da educação e no acesso à informação/cultura. As escolas comuns, por exemplo, deveriam parar de insistir em dizer que “não estão preparadas” e tomar atitudes concretas no sentido de virem a se preparar. Essas medidas vão desde a eliminação de barreiras arquitetônicas e a adoção de práticas pedagógicas não-excludentes, até a aquisição de livros em meio digital e contratação de intérpretes e professores de língua de sinais.
Mobilizadores COEP – A legislação brasileira destinada à garantia dos direitos da pessoa com deficiência é adequada às especificidades de nosso país? E quando comparada com a legislação de outros países, como estamos?
R.: Sim, nossa legislação é adequada porque trata de temas importantes como: o direito de acesso às escolas comuns, com garantia de atendimento educacional especializado no mesmo ambiente; adaptação de transporte coletivo; concessão de passe livre; previsão de cotas nos âmbitos privado e público; etc. E, quando comparada à legislação de outros países, verifica-se que ela é bastante avançada, pois, quando lemos as normas de outros países da própria América do Sul, por exemplo, verificamos que as disposições legais sobre deficiência são em número bastante reduzido.
Mobilizadores COEP – Na sua avaliação, a que se deve o descumprimento da lei no Brasil? O que é preciso fazer para reverter esse quadro?
R.: Justamente por ser uma lei tão completa, o seu cumprimento exige tempo e dinheiro. Isso, somado a uma falta de consideração das pessoas com deficiência como cidadãos completos, gera toda a sorte de artifícios e entendimentos para se burlar o que consta da legislação. Por exemplo: as previsões sobre transporte público adaptado existem há décadas e até hoje não temos uma malha viária 100% acessível. Isto ocorre porque, de fato, é muito difícil tecnicamente, mas sempre há uma nova norma ampliando prazos. Esperamos que o atual Decreto 5.296/2004, que trata desse tema, seja o último e seja totalmente cumprido até o ano 2014. Para reverter esse quadro é preciso colocar as informações pertinentes ao alcance de todos. Acho que a sociedade civil organizada poderia fazer um bom trabalho mapeando esses prazos todos, cobrando uma atuação das autoridades e maior atenção da mídia.
Mobilizadores COEP – De que forma a sociedade civil deve se mobilizar para o cumprimento da lei?
R.: Ela deve buscar conhecer a legislação e denunciar cada descumprimento aos órgãos respectivos. Em regra, quando o descumprimento pode ser creditado a um órgão público federal, a denúncia deve ser encaminhada ao Ministério Público Federal/Procuradoria da República. Em todas as capitais e nas maiores cidades há uma procuradoria, que aceita até mesmo denúncias por meio digital. O endereço eletrônico é www.prXX.mpf.gov.br. Substitua o XX pela sigla do seu Estado (exemplo: em SP, o endereço é www.prsp.mpf.gov.br). Agora, quando o descumprimento da lei pode ser creditado a órgãos privados, ou a órgãos estaduais e municipais, quem deve ser procurado é o Ministério Público Estadual, por meio de um(a) de seus/suas promotores(as) de Justiça, que ficam nos fóruns.
Mobilizadores COEP – Quais as violações de direitos mais comuns enfrentadas por pessoas com deficiência e que podem ser levados ao Ministério Público? Com que freqüência o MP tem sido acionado nesses casos?
R.: As mais comuns dizem respeito à falta de acessibilidade no plano arquitetônico, bem como no relacionado aos transportes e à comunicação/informação e também à falta de acesso às escolas comuns, que é bastante freqüente, conforme já mencionei. O MP tem sido acionado com mais freqüência nos últimos tempos. Isso se deve ao fato de as pessoas com deficiência e seus familiares estarem mais bem informados e não aceitarem mais tão passivamente os atos de discriminação que sofrem.
Mobilizadores COEP – Em que casos é legítima a interdição dos direitos das pessoas com deficiência? Como o judiciário tem se posicionado em relação a essa questão?
R.: A interdição deve ser feita em caso de pessoas com déficit intelectual e precisa ser o menos restritiva possível. Temos sempre recomendado que, quando necessária a interdição, seja pleiteada a interdição parcial e não a total. O Judiciário ainda não está habituado a essa nova visão e continua decretando, como regra, a interdição total.
Mobilizadores COEP – As experiências práticas de inclusão escolar têm sido bem-sucedidas no país?
R.: Nos locais onde a inclusão deixou de ser uma “experiência” e passou a ser uma política, com mudanças efetivas nas práticas pedagógicas e nos ambientes de ensino, os resultados têm sido muito positivos. Tenho ouvido falar muito bem de algumas escolas públicas nos municípios de São Paulo, Santo André, Ribeirão Pires, Belo Horizonte, Natal, entre outros.
Mobilizadores COEP – Como o responsável por pessoa com deficiência deve agir no caso de recusa do pedido de matrícula em uma instituição de Educação Infantil ou de Ensino Fundamental? Há algum caso em que a matrícula possa, de fato, ser negada?
R.: O primeiro passo é documentar essa recusa, ou ter testemunhas de que ela ocorreu, para poder denunciar o fato ao (a) promotor (a) de Justiça do local, que pode notificar a escola para que venha prestar informações e até mesmo propor um ajuste em sua conduta. Pode também processar judicialmente os responsáveis pela escola e pela recusa. Neste caso, um(a) juiz(a) irá analisar o caso e aplicar a penalidade cabível que pode ir de multa até prisão. No caso da matrícula, essa pode ser negada quando a escola já tem, por exemplo, mais de 20 ou 30% de alunos com deficiência em cada sala de aula.
Mobilizadores COEP – Que tipo de punição podem sofrer os dirigentes de escolas particulares ou públicas que não adotem providências para se adaptar às necessidades de educandos com deficiência?
R.: Eles podem ser processados e vir a ser condenados a fazer tais adaptações sob pena de multa. Em caso de recusa específica de algum aluno, pode até estar sujeito à pena de reclusão prevista no artigo 8º, da Lei 7.853/89.
Mobilizadores COEP – O que já tem sido feito para combater formas de discriminação a pessoas com deficiência no país?
R.: Além da publicação de textos, da atuação em procedimentos onde são feitas denúncias de discriminação, participamos de campanhas como a que se chama “É criminoso discriminar”, veiculada recentemente pela Rede Globo de Televisão, de responsabilidade da Escola Superior do Min. Público da União e da ONG Escola de Gente, do Rio de Janeiro, a qual pode fornecer maiores informações.
Trecho da campanha ?É criminoso discriminar?
O objetivo da campanha é mostrar que condutas discriminatórias são crimes previstos na legislação brasileira e devem ser denunciadas pela população. A campanha é baseada no documento ?É Criminoso Discriminar?, elaborado em outubro de 2006 durante o I Seminário Latino-americano de Mídia Legal, organizado pela ONG Escola de Gente ? Comunicação em Inclusão em parceria com a Escola Superior do Ministério Público (ESMPU). Entre outras ações, o documento propõe a implementação de uma agenda social que contemple a discriminação como forma grave de violação de direitos humanos.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Edição: Renata Olivieri e Eliane Araujo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.