A Associação de Promoção Humana e Resgate da Cidadania, localizada na Favela do Oleoduto, em São Bernardo do Campo (SP), surgiu em 1996 para oferecer profissionalização e formação cidadã para combater o desemprego dos moradores da região. Após finalizarem o curso, os alunos voltavam à associação e informavam que continuavam desempregados. Desta situação, nasceu a proposta de criar alternativas concretas de geração de trabalho e renda, por meio do incentivo ao empreendedorismo e ao cooperativismo. Há dois anos, foi lançada a idéia de uma Rede de Economia Solidária e Alternativa do ABC para reunir pessoas e grupos locais envolvidos na criação de uma possibilidade econômica focada nos princípios da Economia Solidária. Nesta entrevista, Mariella Tamburrelli, uma das coordenadoras da associação, fala do surgimento da Rede, do trabalho realizado para apóia-la e das perspectivas para seu fortalecimento.
Mobilizadores COEP – Como surgiu a Associação de Promoção Humana e Resgate da Cidadania?
R. A Associação foi criada por um grupo missionário da região de Imola, na Itália. Este grupo, além do trabalho pastoral da igreja católica, desenvolveu a atividade social coerente com uma visão de ser humano holístico, integral, visto como uma unidade de corpo e alma, uma visão própria daquela região, onde de fato surgiu e se fortaleceu o movimento cooperativista e de profunda mutualidade, que lança suas raízes nas experiências das duas guerras mundiais. Esta equipe já veio com princípios de empreendedorismo e cooperativismo enraizados dentro da experiência deles como vida cristã e como vida concreta e prática, por isso foi ?natural? a adesão do grupo às Comunidades Eclesiais de Base, à educação popular de Paulo Freire e à Teologia da Libertação. A Associação se localiza no início da Favela do Oleoduto, que, por sua vez, está dentro do arco de pobreza da cidade de São Bernardo do Campo, que envolve cerca de 110 mil pessoas, segundo dados da prefeitura. A Associação celebra este ano 10 anos de atividade. Surgiu, em novembro de 1996, como ferramenta de profissionalização e formação cidadã para combater o desemprego. As pessoas ainda pensavam que a formação profissionalizante pudesse servir para ingressar no mercado tradicional de trabalho com carteira assinada, mas, já em 1998, alguns alunos nos procuravam dizendo que tinha sido legal estudar aqui, mas que não conseguiam arrumar emprego e nos solicitavam alguma ajuda. Diante disso, nós iniciamos a organização de discussões sobre formas alternativas de geração de trabalho e renda, resgatando as origens da proposta da equipe missionária de estimular o cooperativismo e empreendedorismo e a criação de micro e pequena empresa.
Mobilizadores COEP – Como foi a aproximação com a Economia Solidária e como surgiu a idéia de uma Rede de Economia Solidária?
R. Por ocasião do II Fórum Mundial, em 2001. Eu participei e trouxe a discussão, na época incipiente, da economia solidária. De fato, lá no Fórum, ocorreram algumas mesas de debates e distribuição de materiais de divulgação. Em janeiro de 2002, compomos a equipe do Gaes ? Grupo de Apoio à Economia Solidária. A escolha do nome do grupo levou muito tempo, porque entrou a discussão do papel, da identidade e do que viria a ser sua atuação. De lá pra cá, muita coisa ocorreu, muitas idas e vindas, nós tínhamos modelos a seguir, foi uma procura e construção e agora estamos com a Rede de Economia Solidária em estruturação. A idéia do surgimento da Rede se deu em conseqüência do trabalho desenvolvido pela Associação e pela procura dos ex-alunos por alternativas de trabalho e renda. De fato, as pessoas procuravam a associação, que, por sua vez, já tinha a intenção de apoiar alternativas econômicas junto à população empobrecida e excluída. Isso desencadeou um processo de sinergias de interesses e objetivos, que produziu este processo de construção coletiva, reconhecido pelo corpo docente da faculdade de ciências humanas da Universidade Metodista, campus Vergueiro, em São Bernardo do Campo, por meio de uma dissertação de mestrado.
Mobilizadores COEP – Por que a Rede de Economia Solidária e Alternativa do ABC representa uma proposta capaz de enfrentar o desemprego e gerar renda para a população da periferia do ABC? Existe algum trabalho de sensibilização e capacitação para os participantes?
R. A Economia Solidária no país e no mundo é uma realidade já bastante conhecida, e se apresenta como saída concreta e alternativa para geração de renda e trabalho. É concreta porque o resultado é verificável para o próprio empreendedor, uma vez que se tratam de pequenos empreendimentos cujos impactos na vida real são perceptíveis em breve tempo. Na nossa rede, a maioria é de grupos micro e pequenos que se desenvolvem mais na área de serviços e comércio, que é a área de maior ocupação e renda que se expande no ABC. As pessoas que fazem parte da Rede têm acesso à consultoria do Gaes, e por isso eles não se sentem sozinhos e talvez arrisquem mais. É verdade também que muitos vão para a economia solidária por necessidade, mas vários ficam mesmo depois que passaram pelo momento crítico e sabem andar sozinhos, outros permanecem por acreditar na luta e querem apoiar os outros. A Associação, por meio do Gaes, mantém um acompanhamento constantepara a Rede com reuniões gerais e específicas, além de todo o mês oferecer formação específica aos novos interessados. Procura oferecer cursos tópicos como cursos de fluxo de caixa, marketing, composição do preço de custo, para as empresas que se encontram nas mesmas dificuldades, aproveitando para tanto o convênio com o Sebrae. Para 2007, um dos focos do trabalho da Associação será uma sensibilização maciça sobre o consumo crítico e solidário e a responsabilidade social dos consumidores.
Mobilizadores COEP ? Como é a composição e a organização da Rede atualmente?
R. Atualmente, são mais ou menos 30 grupos mais atuantes e que discutem a Rede e se reúne quinzenalmente. A grande maioria está dentro do ramo de alimentação, comércio e serviços, pequenos mercados, gráfica, padaria, cooperativa de pedreiros, vidraceiros. Está havendo um processo de formar comissões (de fundos, de comercialização e marketing, comissão de ética, de monitoramento) que fazem suas próprias reuniões. Estão indo para a prática, fazem visitas aos grupos que estão em processo mais adiantado, participam.
Mobilizadores COEP – Como funciona a liberação do crédito para os empreendedores?
R. A Rede não oferece nem libera créditos, quem oferece éa Associação, e quem libera é o Banco do Povo, através do Crédito Solidário. A Associação é sócia do banco. Quando pensamos nesta ação, pensamos que não seria interessante que quem estimulasse e acompanhasse os grupos pudesse também decidir sobre o crédito, e assim a Associação preferiu intermediar esta ação via Banco do Povo, do qual faz parte e concorda com os critérios para liberação. A Rede está em construção e somenteem 2006 deliberou sobre seu estatuto que está em cartório para registro. A Associação procura acompanhar o ritmo de amadurecimento dos participantes. Somente houve a liberação dos créditos com aval moral, quer dizer liberou sobre a palavra, mas a metodologia do aval solidário, que é próprio da liberação de créditos em grupos, será testada como prioritária em algumas áreas pelo Banco, a partir de 2007, como programa piloto. De qualquer forma, o crédito é considerado como direito humano a ter crédito e é um eficaz instrumento de resgate da cidadania porque faz o tomador se sentir capaz e dono do ?seu nariz?. Temos o caso da Dona Ana, semi-analfabeta que abriu uma pastelaria no meio da favela em lugar alugado; depois de três anos, está em local próprio, construindo um sobrado, e pegou crédito pela terceira vez para construção. É considerada cliente vip, de classe A.
Mobilizadores COEP – Você poderia falar um pouco mais sobre o aval solidário?
R. Estamos associados ao Banco do Povo e eles vão inaugurar este ano essa modalidade de aval solidário através de um projeto-piloto. A Associação quer testar essa metodologia também aqui em São Bernardo do Campo. É como a experiência do Banco de Palmas, no Ceará. A gente já tinha tentado, mas agora vamos insistir. Só vai acontecer o crédito em grupo: cada um fica como avalista do outro participante, do próprio grupo. Tem que ter muito entrosamento. Se alguém não pagar, o grupo todo tem que saldar o débito. É pra forçar o povo a se comprometer junto, pra quebrar o individualismo e também vai facilitar o acesso ao crédito. Com a política monetária atual, muitos já têm acesso ao crédito ? os aposentados com o desconto em folha, por exemplo – mas com esta metodologia, os excluídos voltam a ter prioridade porque ninguém vai apostar neles, mas eles têm que apostar em si mesmos.
Mobilizadores COEP – Outras realizações pela Rede são o Clube de Trocas e a sensibilização ao Consumo Solidário. Comente como são viabilizadas essas atividades.
R. Infelizmente o Clube de Trocas está ainda em via experimental. Fizemos algumas tentativas, mas não deslanchou. Talvez a metodologia e o público-alvo não estejam corretos. Talvez dê certo abrindo para todos que queiram participar, independente de estar na Rede ou não. O Consumo Solidário é o que mais motiva para espalhar a idéia da economia solidária, como fonte para reter a riqueza e gerar mais trabalho local. Fizemos um vídeo para aprofundar a discussão sobre o consumo crítico, consumo solidário. A idéia é fazer sensibilizações, campanhas.
Mobilizadores COEP – Como a Rede pretende alcançar sua independência e auto-sustentabilidade? O que vem sendo realizado para que a riqueza produzida circule e permaneça para o beneficio de todos os envolvidos na Rede.
R. Com a formalização da Rede como associação regularmente constituída, pretende-se iniciar uma feira permanente no bairro, em local público. Esta proposta está sendo negociada com a prefeitura. Durante o ano, a Rede participou de feiras e promoveu algumas em dias especiais. A Rede pretende investir nas compras conjuntas e comunitárias para abater os custos. Na medida em que as empresas participantes vão se fortalecendo, sua contribuição aumenta e haveria a possibilidade de ter sede própria e organizar uma central de compras e serviços, bem como criar uma agência que sirva de suporte, administrativo, jurídico e comercial para todas. Atualmente cada empresa participa mensalmente para o fundo e deposita 1% de suas vendas. A pretensão da Rede é poder se articular a nível municipal e do grande ABC para incidir na formulação de leis municipais e concretizar a lei das pequenas e micro empresas para poder participar das licitações públicas.