Robson Patrocínio de Souza atua no Instituto PACS – Políticas Alternativas para o Cone Sul.É educador popular, atua na equipe de Desenvolvimento Local e é um dos animadores da Rede Estadual de Trocas Solidárias. Nesta entrevista ele fala sobre o surgimento da economia solidária, seus impactos e o que entende-se hoje por este conceito e realidade. Mobilizadores COEP – O que se entende hoje por Economia Solidária?
R: Primeiro precisamos nos perguntar, o que se entende por “Economia”. Economia é uma palavra que tem a sua origem no grego e significa, nomos (gestão), oikos (casa), o cuidado ou gestão da casa. Do resgate da origem da palavra economia, podemos extrair duas reflexões importantes: a primeira tem a ver com a dimensão mais ampla do conceito de casa. Onde começa a nossa casa? Poderíamos pensar que o nosso corpo é a nossa casa, assim como onde moramos com nossos familiares, nosso estado e nosso país. Essa visão muda muita coisa, pois os cuidados que temos com toda dimensão de casa, muda a forma de intervir nos diversos espaços e muda a maneira como consumimos.A outra reflexãoé que, de fato, se tomarmos como referência as sociedades que possuemum sistema baseado no acumulo de capital, na conquista do lucro a qualquer preço, como é o caso do Brasil, poderemos perceber o quanto o conceito de economia e, principalmente, as suas práticas, foram totalmente distorcidas ao longo da história. No sistema capitalista neoliberal, os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais miseráveis. Não precisamos ir muito longe para percebermos os efeitos desse modelo, basta ver, por exemplo, o crescimento da violência no Estado do Rio de Janeiro e o crescimento do medo dessa violência dentro de cada um de nós. Quando falamos de Socioeconomia Solidária, Economia Solidária, Economia Popular e outras terminologias estamos falando de uma outra forma de resistência e sobrevivência a esse modelo neoliberal. Essa forma de relação econômica recebe essas e outras terminologias diferenciadas porque vão se constituindo dentro de um processo de reflexões e debates,e de ações bem concretas no cotidiano, com vários sujeitos envolvidos, como camelôs, cooperativas, grupos familiares, empresas autogestionárias, grupos associativos, ONGs, empresários e o Estado.
No caso da Socioeconomia Solidária, definimos sócio, como a idéia da gestão participativa de tudo que é produzido por um determinado grupo e a gestão participativa dos bens públicos. Economia, pensada e concretizada para a promoção da vida, e solidária no sentido da “não competição” e, sim da cooperação. Então, estamos falando da reflexão e da implementação de outros valores por essa sociedade. Estamos falando de um outro modelo de desenvolvimento que leve em consideração não só o capital, mas, sobretudo, a pessoa humana e tudo que gera vida. Estamos falando de “desconstrução” de valores como competição, fragmentação, consumismo etc. A Socioeconomia Solidária pode ser um dos projetos mais importantes na busca de um outro modelo de sociedade baseadona solidariedade, cooperação, distribuição de lucro e riqueza, trocas solidárias e integração.
Mobilizadores COEP – Como surgiram os conceitos de economia solidária e de cooperativismo?
R: A economia solidária, tal qual vivemos hoje, na passagem para o século XXI em numerosos países, tem como antecedente principal o cooperativismo operário, surgido das lutas de resistência contra a Revolução industrial ao longo do século XIX e XX. Ele foi concebido e praticado por Robert Owen (1771 ? 1859) que sempre procurou testar suas proposições na prática social e na economia. Primeiro na grande industria têxtil e depois numa colônia cooperativa nos Estados Unidos. Passado um tempo testa também no movimento sindical e cria a Labour Exchanger (Bolsa de Trabalho), em 1832, onde se intercambiavam produtos das cooperativas, a preços justos, calculados conforme o número de horas de trabalho gastas na produção. A bolsa emitia sua própria moeda sob a forma de notas, valendo horas de trabalho. Outro antecedente importante da economia solidária hodierna é a cooperativa de consumo. Em 1844, algumas dezenas de operários constituíram uma cooperativa sob o nome de Pioneiros Eqüitativos de Rochdale. Começou como cooperativismo de consumo e de aplicação de poupança e teve grande êxito social e comercial. O que notabilizou a cooperativa de Rochdale e a tornou conhecida como “mãe das cooperativas” foram os princípios adotados desde a sua fundação. Os princípios definiam com precisão o que era uma autêntica cooperativa autogestionaria: igualdade política, livre entrada e saída do quadro social, neutralidade política e religiosa e prioridade à educação cooperativa. Seus princípios foram adotados por inúmeras cooperativas que foram sendo criadas na Inglaterra e outros países. Na primeira metade do século XX, grande parte dessas cooperativas já tinha abandonado os princípios da autogestão se transformando em empreendimentos convencionais.
Mobilizadores COEP – Como é o processo de formação de uma cooperativa de produção?
R: No sistema Neoliberal as coisas precisam estar sempre prontas e acabadas além de encaixotadas dentro de uma única maneira de se fazer e pensar. Na Socioeconomia Solidária não funciona assim, ou melhor, não deveria funcionar assim. A experiência mostra que não existe um único caminho de se fazer as coisas, muito pelo contrário, existem vários e ainda podemos criar tantos outros. Portanto, a formação de uma cooperativa de produção pode se dar de várias maneiras, por motivações diferenciadas. Conheço uma cooperativa que produz materiais de limpeza, que iniciaram suas atividades a partir de um curso que fizeram. O que considero importante nessa pergunta é que ela meleva a enfatizar a importância do Estudo de Viabilidade Econômica e Gestão Democrática, tanto para o processo de formação de um grupo de produção ou de serviços quanto para aqueles grupos que já estão caminhando. Com o estudo feito, não estou querendo dizer que o grupo estará totalmente imune a possíveis problemas, mas o estudo ajudará na parte associativa. Exemplo de uma boa pergunta para os grupos se fazerem, seria: Como vai se dar o processo de decisão no grupo e a divisão das tarefas? E ainda na questão dos números. Saber se uma cooperativa tem como arcar com uma certa quantidade de impostos ao se legalizar, também é um bom exemplo de como o estudo pode contribuir. Mobilizadores COEP – O que são os Clubes de Troca? E as moedas sociais?
R: Começo respondendo sobre o que são as Trocas e qual a sua importância para as nossas vidas. Nós não sobreviveríamos se não trocássemos, aliás, nem existiríamos se não fossem as trocas. Fomos concebidos e existimos porque houve uma relação de troca. Então somos essencialmente seres que trocamos o tempo todo, sejam informações, produtos, saberes, sentimentos e serviços. A questão é, como potencializar as trocas, para que dentro da Economia Solidária seja um instrumento de transformação da economia capitalista e de valores humanos. Os clubes de trocas surgem como espaços onde as pessoas se encontram de tempos em tempos para trocar serviços, produtos, saberes e sentimentos. Funcionam de forma diferenciada de local para local, de estado para estado, dependendo de cada realidade. Os clubes têm como uma de suas características a realização de feiras de trocas onde as pessoas são convidadas a trocar. Porém, as trocas não acontecem somente nas feiras, podem acontecer independente dessas e, principalmente, se as pessoas morarem próximas uma das outras, reconectando as relações entre vários sujeitos. A moeda social é criada como uma forma de facilitar as trocas, não tem juros, não pode ser acumulada e não tem um fim em si mesma. São criadas segundo a realidade de cada grupo, e em cada um assume formas diferenciadas de funcionamento. Cada grupo assume a gestão sobre a moeda, quantidades a serem emitidas, etc. A moeda tem servido em alguns lugares como um instrumento pedagógico, discutindo-se qual é sua função. Nas trocas, cada ser humano e seu trabalho são valorizados, as pessoas redescobrem suas relações com o trabalho. Cada um de nós tem muito a oferecer e muitas coisas que precisamos, essa é uma das lógicas dos grupos de trocas: as possibilidades de suprir as minhas necessidades e de poder suprir a de outras pessoas, sem necessariamente entrar na lógica de mercado. Necessariamente, não preciso de moedas sócias para trocar, pois a troca pode acontecer de forma direta, dependendo da negociação entre as partes. Não existe e não deve existir uma só forma de fazer trocas, devemos e podemos reinventar o tempo todo. Inserir as trocas em projetos que já estão em curso, para fortalecê-los, também pode ser um bom caminho. As trocas estão inseridas num projeto maior de Socioeconomia Solidária.
Mobilizadores COEP – Que impactos vêm sendo percebidos nas relações de trabalho com a consolidação de relações de Economia Solidária?
R: As relações de trabalho no sistema capitalista são relações onde o trabalhador e a trabalhadora vendem sua força de trabalho para o capital. Essa lógica tem a ver com a valorização do capital e ainda com a realização de lucro para o mesmo. O trabalho vira então mera mercadoria para esse sistema. Mais será que foi sempre assim? Por que as pessoas trabalhavam e trabalham? Qual o sentido que tem o trabalho principalmente se o cidadão produz não para ele, mas para o capital segundo suas exigências. Podemos pensar o trabalho da seguinte maneira: serve para satisfazer nossos desejos e necessidades gerando o bem viver em todas as suas dimensões e possibilidades. Por conta principalmente da alta tecnologia e da especulação financeira, o trabalho humano no sistema neoliberal e no mundo globalizado beneficia uma minoria e está cada vez mais escasso. Acredito que a economia solidária tem um grande desafio, sem necessariamente ser obrigada a ter uma resposta à saída que vai dar conta dessas questões.
Com o governo Lula, criamos espaços importantes como a SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego) e ainda o FEBES (Fórum Brasileiro de Economia Solidária), que poderiam ter avançado muito mais no sentido da discussão e implementação de políticas voltadas para o fortalecimento dos grupos ligadosà Economia Solidária nos estados. O que percebemos, a partir da experiência do Rio de Janeiro, é que a maioria desses grupos tem dificuldades tanto para produzir quanto para comercializar. E ainda levemos em consideração a qualidade dos produtos e a relação entre os membros dos grupos. Na maioria são mulheres produzindo geralmente artigos de artesanatos e como complementação da renda. Há também alguns serviços importantes oferecidos por algumas cooperativas (serviços de limpeza e enfermagem). Por outro lado, aos poucos, vem se fortalecendo a relação consumidor e produtor, onde o fruto do trabalho desses produtores está chegando direto à mesa do consumidor sem a exploração do atravessador, através da Rede Ecológica que possui hoje mais de 5 núcleos no município do Rio de Janeiro. Temos um grupo grande de famílias produzindo e ainda pessoas individualmente. O Fórum de Desenvolvimento do Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro tem sido um espaço ocupado por esses grupos, e que também vem dialogandocom aSENAES e o FBES. Os espaços de feiras têm funcionado como forma de escoar as mercadorias, mas ainda é muito pouco. Em outros estados vêm acontecendo alguns avanços na parte da indústria de açúcar, laticínios, produção de sapatos e bolsas em couro. É preciso frisar a importânciade mudanças na lei do cooperativismo brasileiro, que venham a favorecer as cooperativas populares. E considero que, apesar dos desafios, já demos passos importantes no sentido de criar outras possibilidades e perspectivas da organização do trabalho não moldado na lógica do capital.
Achei muito bom, principalmente a garantia da fidelidade do texto original. Mais um espaço importante de informação e formação, que ira contribuir para as transformações necessarias e urgentes que precisamos realizar nesse pais.