Para Maria José Nascimento Moura Araújo (Zezinha Moura), coordenadora do projeto de educação popular Escola Zé Peão, desenvolvido em canteiros de obra de João Pessoa (PB), é fundamental favorecer a ação-reflexão-ação dos sujeitos da aprendizagem para uma educação participativa e emancipadora. Confira.
Mobilizadores COEP – O que é e quando teve início o projeto Escola Zé Peão? Quais seus objetivos e onde é implementado?
R.: O Projeto Escola Zé Peão (PEZP) é uma iniciativa pioneira no estado da Paraíba. Criado em 1991 por professores do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em conjunto com a direção do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário (Sintricom)*1, desenvolve estratégia de educação de jovens e adultos. A principal preocupação é a prática pedagógica do projeto. Sendo assim, as atividades desenvolvidas compreendem as aulas, que acontecem de segunda a quinta-feira, com carga horária de 10 horas semanais, durante 10 meses ? março a dezembro; e a formação continuada realizada com todos os educadores (para sua constante capacitação e reciclagem) em encontros semanais, às sextas feiras, consistindo na execução de oficinas com os conteúdos temáticos de linguagem, matemática e estudos sociais e da natureza.
Para garantir a mobilização dos operários, os diretores do sindicato fazem reuniões nos canteiros de obras informando aos trabalhadores sobre o processo de escolarização desenvolvido pelo projeto, que tem como objetivos: alfabetizar trabalhadores da indústria da construção com o intuito de lhes possibilitar, através da aquisição do domínio da leitura, escrita e das noções básica de linguagem matemática e conhecimentos gerais, uma compreensão mais apurada e crítica da realidade social que os envolve; desenvolver capacidades no que tange ao conhecimento da sua realidade, reivindicação dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres enquanto cidadão; promover a construção de habilidades (leitura, escrita, interpretação, cálculo e raciocínio) que contribuam para o seu processo de qualificação profissional; desenvolver estudos sobre o processo de ensino e aprendizagem no campo da alfabetização de jovens e adultos e mais especificamente, do aluno-trabalhador; contribuir, no campo prático e teórico, para a formação e capacitação de educadores para atuarem na Educação de Jovens e Adultos.
A ação do PEZP édesenvolvida em obras da grande João Pessoa (PB) nos bairros mais nobres da capital. Em cada canteiro de obra, funcionam duas salas de aula que atendem operários alojados no canteiro e operários de canteiros vizinhos.
Mobilizadores COEP – Quantas pessoas já foram alfabetizadas?
R.: De 1991 até 2009, mais de 10 mil trabalhadores foram alfabetizados, cerca de 100 operários concluíram o ensino fundamental e dois ou três, o ensino médio.
Mobilizadores COEP – Que programas educacionais o Escola Zé Peão desenvolve?
R.: Em princípio, o PEZP tinha como foco oferecer a alfabetização (APL ? Alfabetização em Primeira Laje) aos operários. Todavia, logo no seu primeiro ano de atividade outra problemática se apresentou: um grande número de operários ? que tinha passado pela escola quando criança por no máximo dois anos abandonando-a, dentre outros motivos, devido às dificuldades financeiras da família e consequentemente ao trabalho na roça ainda com pouca idade ? reivindicou a escola, alegando esquecimento do pouco que havia aprendido. Com objetivo de atender a essa demanda de pós-alfabetização, foi criado o programa TST ? Tijolo sobre Tijolo, destinado aos alunos que já possuíam um certo domínio da leitura, da escrita e dos conhecimentos matemáticos e queriam aperfeiçoá-los para, posteriormente, serem encaminhados ao 2º segmento do Ensino Fundamental em turmas do supletivo presencial.
Para garantir essa continuidade, o PEZP estabeleceu, inicialmente, parceria com o Sesi, garantindo a matrícula dos alunos provenientes das salas do TST em turmas de supletivo presencial. Atualmente, estamos com uma parceria com a Secretaria de Educação do Estado que fornece o material dos alunos e pagamento dos professores para turmas do 2º segmento da Educação para Jovens e Adultos (EJA – supletivo presencial), que também funciona em um canteiro de obras, localizado na orla marítima da capital paraibana.
Mobilizadores COEP ?Qual a proposta pedagógica do projeto?
O PEZP pressupõe que a atividade educativa seja considerada em seus múltiplos desafios de natureza político-social (homens concretos lutando por uma vida melhor); histórica (homens situados no mundo, num tempo e num espaço dinâmicos); e pedagógica (homens construindo o seu conhecimento, mediatizados por metodologias e recursos socialmente construídos).
A proposta pedagógica do projeto visa desenvolver uma educação que promova a capacitação do operário para enfrentar seu contexto social, econômico, político, sindical e educacional, proporcionando maior clareza sobre a escola e o trabalho produtivo. Em termos operacionais, a alfabetização passou a ser o eixo central a partir do qual outros conhecimentos seriam trabalhados. Ao mesmo tempo, tomou-se a indústria da construção como realidade para exigir, dos alunos, o exercício da reflexão, da reelaborarão de conhecimentos e da aquisição de novas formas de linguagens sociais*2.
Com relação especificamente àquestão metodológica da alfabetização, considera-se que o método vem se desenvolvendo em um processo contínuo de tomada de decisões que, dentro de um esquema de orientação geral definido à época da elaboração do projeto original e condicionado pelas circunstâncias da realidade vivida em cada fase de sua execução, veio a se constituir no que hoje poderíamos chamar de “o método de alfabetização que utilizamos”.
A experiência não foi levada ao sabor das imposições do cotidiano, mas estabeleceu mecanismos de acompanhamento e correções de rota, às vezes penosa. O esquema de orientação geral a que nos referimos pauta-se pelos seguintes princípios:
O princípio da contextualização: éfundamental considerar o contexto em que a experiência escolar se realiza. Na operacionalização do conceito de contexto, fomos privilegiando fatos como: (a) as condições de vida, em geral, dos alunos e, em particular, as condições em que se dáa sua inserção no mundo do trabalho, precisamente no mundo da indústria da construção; (b) as lutas do sindicato dos trabalhadores dessa indústria, que desencadeou a elaboração/execução desse projeto escolar como parte de seu programa de formação de base dos operários que representa; (c) a localização da equipe responsável pelo projeto no atual espectro de teorização sobre educação, de um modo geral, e sobre alfabetização, de um modo particular.
O princípio da significação operativa: defende-se, com este princípio, o exercício da busca cotidiana de sentido para “o que se faz” e “por que se faz”, refletindo-se sobre o confronto entre o desejado e o possível, nas circunstâncias dadas.
O princípio da especificidade escolar: defendemos que uma escola tem compromisso com o ensino da lecto-escrita stricto sensu. Por mais elástico que o conceito de “alfabetizado” possa ser, reforçamos a explicitação de nosso entendimento de que os trabalhadores-alunos aprendam a ler/escrever textos, subordinando outras competências à realização, pelo menos concomitante, desse aprendizado específico. Como cidadão: a contribuição da educação para o fortalecimento da cidadania e da democracia.
Mobilizadores COEP – Quais os diferenciais do Projeto Escola Zé Peão em relação a outros projetos de alfabetização?
R.: Considerando-se o contexto global da experiência de educação e alfabetização, o PEZP apresenta ferramentas que podem ser consideradas inovadoras na EJA. Entre elas vale destacar: a) a mobilização dos alunos/trabalhadores pelo sindicato da categoria; b) o processo de seleção dos educadores/as e sua formação inicial e continuada; c) os princípios metodológicos, o currículo interdisciplinar e multicultural; d) os processos de avaliação das aprendizagens (dossiês); e) a avaliação do processo (qualitativo e quantitativo); f) as atividades culturais (confraternizações juninas e natalinas); as atividades extraclasses (palestras, visitas culturais, idas ao teatro, ao cinema e coisas do gênero); e g) manutenção dos educandos atualizados com informações sobre o mundo do trabalho.
Mobilizadores COEP – Na sua avaliação, o que precisaria ser mudado no ensino regular para contemplar as necessidades das comunidades de baixa renda, especialmente na área rural?
R.: Avalio que primeiro seria necessário garantir o acesso das pessoas aos espaços escolares, reconhecendo estes como espaços de aprendizagem dos sujeitos envolvidos com a experiência. Para que isso aconteça, se faz necessário que a equipe pedagógica da escola esteja envolvida e mobilizada para atender as diferentes demandas, suas necessidades particulares e gerais de aprendizagem. Os conteúdos trabalhados precisam estar conectados com essas necessidades de aprendizagem tendo como norte a aplicabilidade prática (técnica, social e política) na vida dos educandos. Ex.: Se o homem e a mulher, jovens ou adultos lidam com a terra, o tema norteador das aprendizagens deverá ser o que for demandado em necessidades para potencializar as pessoas no seu fazer para sobreviverem sem comprometer os recursos naturais e o meio ambiente. Com as informações dos saberes das pessoas e das informações que o conteúdo demandará, trabalhar-se-á a leitura, a escrita e a matemática. A meu ver, essa opção independe de onde se encontram os sujeitos das aprendizagens. Rurais ou urbanas, necessidades diferentes, porém práticas pedagógicas equivalentes.
Mobilizadores COEP – De que forma a educação pode contribuir para a formação de cidadãos participativos? O que a educação brasileira tem feito nesse sentido?
R.: Quando não se ignoram os saberes da experiência e se favorece, nos espaços de aprendizagem, a sistematização desses saberes acrescentando outros de maneira crítica, participativa, sempre problematizando as situações e as necessidades do grupo. O corpo docente precisa ter esse entendimento. Precisa ser criativo, comprometido com as aprendizagens e favorecer a ação-reflexão-ação do que se aprende e se usa no cotidiano. A educação brasileira tem tentado caminhar no sentido da educação para a participação; mas infelizmente ainda não avançamos o suficiente para que possamos falar de uma transformação da realidade educacional no sentido da participação plena.
Mobilizadores COEP – De que forma os estudantes da UFPB atuam no projeto? Qual a importância dessa experiência para os graduandos?
R.: Percebem-se melhorias no desempenho do curso de graduação; busca de ampliação da qualificação através de programas de pós-graduação; inserção em postos de decisão voltados para a EJA; ampliação da participação no Fórum de EJA da Paraíba e em eventos da área; concretização e divulgação de metodologias que possam ser replicadas em projetos com objetivos e natureza semelhantes, contribuindo para a melhoria do processo de educação de jovens e adultos como um todo. Veja o depoimento a seguir:
?Tenho muita satisfação em poder compartilhar com vocês um pouco da experiência profissional que me transformou como pessoa, construindo em mim uma educadora como disciplina nenhuma, por melhor que seja, até aqui conseguiu fazer. O Zé Peão realmente nos deixa curiosos e ansiosos no início e apaixonados por toda a vida. Mesmo ainda não tendo concluído a minha participação, sei que será impossível esquecê-lo. Poderia falar bastante dos alunos que nos transmitem um aprendizado encantador e nos despertam tanto respeito e admiração. Mas quero falar do Zé que vem antes, durante e depois da sala de aula, acreditem: o durante pode se perder se não estiver junto do antes e do depois! Os treinamentos, as oficinas, os planejamentos, os grupos, as fichas de acompanhamento, enfim. Às vezes a gente não se dá conta do significado de tudo isso e acaba permitindo, seja por motivos ou desculpas, que nos escapem pelas mãos tantas coisas produtivas. O Zé é um espaço de busca de caminhos. Errando e acertando, a gente continua tentando porque assim se aprende. Os desafios são constantes. Em quatro anos de Zé, nenhum ano foi igual ao outro. Aliás, nenhum dia foi igual ao outro! Aprendi a me esconder menos e enfrentar mais porque era necessário romper minhas barreiras, lutar contra meus limites. Aprendi a olhar pra dentro de mim e ver que mudar é preciso, falar e ouvir também. Aprendi com alunos, colegas e coordenadores. Aliás, se querem um conselho, aproveitem muito bem as coordenadoras, elas são uma parte muito importante do Zé. Um dia vocês verão que suas contribuições podem deixar grandes marcas. Enfim, “viver é preciso”. Vocês escutarão e sentirão essa frase com muito mais intensidade aqui no Zé. Portanto vivam, sintam e aproveitem o Zé Peão?.
Educadora/Alfabetizadora Leide Jane
Mobilizadores COEP – Quais as principais dificuldades encontradas no decorrer destes anos e como elas foram enfrentadas?
R.: O nosso grande desafio é o de diminuir a evasão formal, quando a saída do aluno da escola é motivada por fatores externos à escola, como: demissão, transferência e rotatividade, características bastante significativas da indústria da construção; e a evasão real, onde a saída do aluno da escola é motivada por fatores como extensão da jornada de trabalho, cansaço, concorrência com formas de lazer e vida social – dominó e baralho, televisão ou rádio, cachaça e namoro -; ou mesmo por conta de elementos inerentes ao próprio projeto, diretamente relacionados ao fazer pedagógico, que incluem dificuldades típicas do processo de ensino-aprendizagem.
Outro grande desafio éo da institucionalização do projeto e sua transformação num programa regular, estável e economicamente sustentado no seio da UFPB e demais instituições públicas que visem àformação de educadores e àorganização e execução de políticas específicas para a EJA.
Ainda contamos com a falta de recursos que, sem dúvida, éum grande desafio. Isso tem inviabilizado a execução de forma integral dos programas que trabalhamos no projeto. O recurso do Programa Brasil Alfabetizado éincipiente e irregular. Não conseguimos concluir um ano letivo dentro do que se entende ser.
Mobilizadores COEP – De que forma o projeto influencia o modo de agir dos alunos, em sua vida pessoal e em suas comunidades?
R.: Percebe-se uma maior capacidade de decisão e mobilização nas questões relativas ao trabalho cotidiano; ampliação do espaço para a direção sindical desenvolver o trabalho formativo; participação mais ativa de todos nas lutas sociais; maior interação nas relações familiares e comunitárias; ampliação das possibilidades de manutenção do atual vínculo empregatício, ascensão profissional ou inserção em novos campos de trabalho e continuidade no mercado de trabalho. Veja depoimento de um aluno do projeto:
?Sou Edmilson. Filho de João Fortunato de Souza, mecânico, e de Maria Anunciação da Silva Souza, lavadeira, nascido em 30-08-1965, pessoense, paraibano. Comecei a trabalhar cedo, pegando frete. Aos treze anos, fui chapeado e com dezessete iniciei na indústria da construção civil. Mas foi em 1995, quando trabalhava na obra do Condomínio Residencial Val Paraíso, no Bessa, com a professora Violeta, que os depoimentos dos alunos me acordaram do pesadelo. Matriculei-me no projeto, tomei gosto e conclui o primário. Logo depois, com a ajuda do Sindicato que, em parceria com a Secretaria de Educação do Estado, passou a oferecer o supletivo presencial, conclui o Ensino Fundamental e pretendo concluir o Ensino Médio. Enfim, sonho em chegar a ser advogado. Hoje, me encanto com a visão de enxergar coisas minuciosas. Tenho orgulho, mas não sou orgulhoso! Sou um aluno do Projeto Escola Zé Peão.?
Edmilson da Silva Souza- aluno
Mobilizadores COEP ?De que forma uma rede de mobilização social como o COEP, que atua no Brasil inteiro pode estimular a prática da educação popular como construtora da cidadania?
R.: Conhecendo as experiências; divulgando-as; favorecendo intercâmbio; circulando material didático (cartilhas, vídeos e outros) e ainda gerando ação concreta na perspectiva de fortalecer a luta por políticas públicas de fato para a EJA. Montar um banco de dados com informação sobre as experiências e disponibilizar na rede, via portal, em fóruns ou outros caminhos nessa direção. Também poderia articular um email de grupo e fazer um encontro regional ou nacional para socialização concreta das experiências.
1Entidade de classe representativa dos operários da construção e do mobiliário, fundado em 1934 e com atuação na capital, João Pessoa, e em 14 cidades do litoral paraibano.
2 Oliveira, Maria de Lourdes B. ?A educabilidade no trabalho: seu realismo numa experiência escolar com trabalhadores?, in Revista Temas em Educação, João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, vol.2, 1992.
Caros mobilizadores, confiram, na seção de textos, o artigo ?Projeto Sal da Terra: Educação e Solidariedade?, sobre o projeto homônimo também coordenado pela entrevistada, e que retrata outra experiência de educação popular, desta vez nas comunidades periféricas da cidade de João Pessoa (PB) e municípios vizinhos.Entrevista concedida a: Renata OlivieriEdição: Eliane Araujo e Renata Olivieri
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.