Raiane Patrícia Severino Assumpção, responsável pela Coordenadoria de Educação Popular do Instituto Paulo Freire, fala sobre a importância da Educação Popular para a participação social e transformação da realidade de pessoas de baixa renda.
Mobilizadores COEP – Em que consiste a educação popular?
R.: Construir uma nova forma de consciência sobre o mundo com as classes populares continua sendo a principal tarefa da educação popular, que ganha corpo na medida em que dialoga com os interesses e as necessidades reais de vida do ?popular?, daqueles a quem é negada não só a consciência do mundo, mas, fundamentalmente, as condições de desenvolvimento da própria vida, a possibilidade de realização de sua vocação ontológica de ser mais, como nos ensinou Paulo Freire.
A concepção de educação que Freire chamou de Libertadora, Humanista e Democrática não separa os seres humanos do mundo porque fora dessa relação (mulheres, homens e mundo) não é possível compreender nem os seres humanos, nem o mundo. Não há um sem o outro. Crê no ser humano como transformador da realidade e por esse motivo busca compreender mesmo o que não está visível no mundo. Só quando compreendemos o que explica a realidade somos capazes de transformá-la. Assim, para Freire, educar é promover a capacidade de ler a realidade e de agir para transformá-la, impregnando de sentido a vida cotidiana. Para isso, a educação não pode ser alheia ao contexto do sujeito, nem o conhecimento pode ser construído ignorando o seu saber. O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. Daí a importância da leitura de mundo.
A localidade dos sujeitos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo. A partir dela, uma ?readmiração? da realidade inicialmente discutida em seus aspectos superficiais vai sendo realizada com uma visão mais crítica e mais generalizada. Transmitir ou receber informações não caracterizam o ato de conhecer. Conhecer é apreender o mundo em sua totalidade, e essa não é uma tarefa solitária. Ninguém conhece sozinho. O ato de conhecer para Freire se dá num processo social, e o diálogo é o mediador desse processo.
A educação, numa perspectiva libertadora, exige a dialogicidade, portanto, a leitura de mundo coletiva. É a partir dela, do conhecimento do nível de percepção dos sujeitos, de sua visão do mundo, que Freire considera possível organizar um conteúdo libertador. O processo educativo deve desafiar o educando a penetrar em níveis cada vez mais profundos e abrangentes do saber. Nisso se constitui uma das principais funções do diálogo, que se inicia quando o educador busca a temática significativa dos sujeitos, procurando conhecer o nível de percepção deles em relação ao mundo vivido. Os sujeitos falam a partir de seu território, do seu lugar de vida, convivência, trabalho e relações sociais; construindo um movimento solidário, dialético e dialógico que lhe permita desvendar o local e o universal, e se comprometam com as ações necessárias à construção do mundo novo, com justiça social e sustentabilidade.
Nesse sentido, a formação do sujeito requer um fazer pedagógico sensível e imerso na sua realidade, de forma que aborde suas problemáticas, reconhecendo seus desafios e potencialidades. É na sua existência concreta (pessoal e coletiva) que os sujeitos se constroem e reconstroem constantemente, ora afirmando ora contrapondo-se, mas sempre reconstruindo a si e o contexto em que atua.
É por isso que se afirma que a prática educativa passa também pela afetividade e pelas emoções (elementos constitutivos do humano), sendo que ?o ouvir? e ?o se fazer ouvir? ocupam papel determinante neste processo: necessitamos do outro até mesmo para nos tornarmos humanos (“incompletude”), mas ao recebemos as marcas do outro, (re) significamo-las.
Nessa perspectiva, o diálogo pode criar, no processo de construção do conhecimento, possibilidades para os sujeitos se compreenderem como em constante aprendizado e se assumirem responsáveis por ações que garantam atitudes e vozes, portanto, que rompam com as diversas formas de opressão vigente em nossa sociedade, e também revelem a diversidade cultural, étnica e de gênero.
Mobilizadores COEP – Como surgiu e quais são os princípios da EP segundo os ideais de Paulo Freire?
R.: Entendemos que a Educação popular constituiu-se em um movimento histórico cujas raízes estão fincadas no terreno das lutas de emancipação das classes populares latino-americanas do século XX, oprimidas por condições sociais desfavoráveis. No Brasil, podemos considerar a obra e o trabalho de Paulo Freire como um marco nesse movimento histórico, embora, em diversas situações e contextos, como ainda hoje, sua contribuição seja vista apenas como uma metodologia para trabalhar com as classes populares, seja nas classes de alfabetizações, nos projetos sociais, nas escolas ou programas pertencentes às políticas públicas. Compreensões dessa natureza não emancipam os sujeitos e nada contribuem para a perspectiva da educação popular freiriana.
Paulo Freire foi um dos principais responsáveis por uma consistente sistematização de idéias e práticas da educação como uma opção político-pedagógica que atua de modo crítico e propositivo às injustiças sociais. Educação esta que é desalienadora e libertadora, que possui um compromisso com a emancipação humana a partir dos mais pobres, por serem os mais oprimidos. Freire concebeu a Educação Popular ?[…] como um esforço no sentido da mobilização e da organização das classes populares com vistas à criação de um poder popular.? *1
Mobilizadores COEP – Em que se baseava a metodologia usada por Freire?
R.: A práxis (ação-reflexão-ação) fundamenta a prática pedagógica, vivenciada por meio da dialogicidade, da ?leitura do mundo?, da tematização e da problematização da realidade, do aprimoramento e da aplicação concreta do conhecimento teórico, da avaliação e da sistematização permanente.
Uma metodologia que tem como princípios: a libertação ? pela práxis; a descoisificação do ser; a ação cultural; e a pronúncia do mundo com a palavra do povo: partir da Realidade imediata, que é resultado não só de uma ação ou experiência, mas de toda uma prática social e histórica; para que possamos apropriar-nos de conceitos teóricos que nos permitam conhecer as distintas dimensões da realidade imediata e global, descobrindo as contradições mais profundas; com o objetivo de utilizar estes conhecimentos teóricos como guia para realizar ações transformadoras.
Mobilizadores COEP – Em que momento da história do país, a EP deixa de ser usada somente de forma informal pelos movimentos sociais e passar a pautar a educação escolar? O que muda com isso?
R.: Com base na observação histórica, constatamos que a consolidação da educação popular enquanto uma concepção política de educação estabeleceu-se no interior de um conflito ideológico, a fim de garantir interesses completamente diversos. Assumir uma prática em educação popular constitui, portanto, a adoção de umaperspectiva em detrimento de outra.
Porém, na atual conjuntura política do capitalismo, a apropriação de discursos populares politicamente corretos tornou-se um meio ideologicamente interessante para a legitimação e manutenção do poder hegemônico das classes dominantes. A consolidação deuma prática efetivamente transformadora da realidade social é condição necessária para o resgate do projeto popular de uma educação com as classes populares, em que o processo de ensino-aprendizagem aconteça no interior das lutas políticas, na efetivação de uma práxis comprometida de fato com a transformação das relações de poder que engendram a própria existência do capitalismo enquanto forma de produção e reprodução da vida.
Comprometer-se com a educação popular nos tempos atuais exige, por parte de educadores e responsáveis por programas de educação, uma visão ampla e atenta sobre as intencionalidades políticas e os objetivos que essa educação tem cumprido na atual conjuntura. È perguntar-se, a todo o momento, ?quem escolhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra quem, a favor de que, contra que?. *2 É ter a consciência da necessidade de construir ações práticas de intervenção social com as classes populares, em que o processo de conscientização e de problematização da realidade, em direção à compreensão dos aspectos totalizantes de constituição desta realidade específica, ganha sentido por meio de práticas efetivas que dialoguem com as necessidades de vida das classes populares.
Mobilizadores COEP – Como formar cidadãos críticos e capazes de influenciar e promover mudanças, num país como o Brasil, onde grande parte da população tem preocupações mais urgentes, como comer e onde morar?
R.: Inúmeras experiências vivenciadas e sistematizadas reafirmam que a teoria freiriana, fundamentada no pensar crítico e libertador, desvela a realidade por meio de seu adentramento crítico e potencializa a constante recriação de intervenções frente aos desafios contemporâneos. A perspectiva presente nessa concepção e prática de educação é a autonomia e a emancipação dos sujeitos envolvidos, especialmente o combate aos propósitos e às diversas formas de opressão.
Freire elaborou uma pedagogia comprometida com os oprimidos. Ele desenvolveu uma teoria do conhecimento que possibilita a compreensão do papel de cada um no mundo e de sua inserção na história. O ato de conhecer se dá num processo social e o diálogo é o mediador desse processo.
O ser humano é ser de relação, caracterizado por sua incompletude, inacabamento e por sua condição de sujeito histórico. A prática educativa deve proporcionar aos sujeitos envolvidos a compreensão de que a forma como o mundo está sendo não é a única possível. O conhecimento construído nessa perspectiva tem a função de motivar e impulsionar a ação transformadora.
Nesse sentido, no contexto atual, a concepção freiriana de educação tem favorecido a compreensão do modelo capitalista neoliberal, como também da estrutura e da dinâmica do Estado e da sociedade civil, provocando os sujeitos a construírem a resposta necessária para enfrentarem as conseqüências desse modelo de sociedade.
Diante de uma economia de mercado que invade todas as esferas de nossa vida, naturalizando a desigualdade, Paulo Freire reafirma que precisamos lutar ? inclusive por meio da educação – para criar na sociedade civil a capacidade de governar e promover o desenvolvimento. Ele cultiva a autonomia, compreendida como a capacidade de decidir-se, do sujeito tomar o próprio destino em suas mãos. Para isso, há necessidade dos sujeitos aguçarem sua capacidade de estranhamento, comprometerem-se com o processo de construção da justiça social, da subjetividade democrática e de uma racionalidade “molhada de afetividade”.
Mobilizadores COEP – Quais os principais desafios para a EP no século XXI?
R.: É na perspectiva da construção do Poder Popular que ousamos vivenciar e refletir a respeito da educação popular hoje. Isso implica a aceitação do novo, a rejeição da discriminação, a reflexão crítica sobre a prática, com rigor metodológico e investigativo, como também a participação política em espaços de construção e mobilização social, tais como:
a) no espaço escolar – aprofundamento da relação escola-comunidade, como também democratizar a gestão e construir o protagonismo infanto-juvenil;
b) nos governos populares e nos projetos de ONGs – participação e incentivo para que o coletivo garanta o controle social das políticas públicas e atue nos espaços de democracia participativa ? conselhos e fóruns;
c) nos movimentos sociais, sindicatos e associações ? promoção da formação política e das estratégias de luta; que na atual conjuntura enfrenta o desafio de construir a unidade na diversidade, superando a fragmentação para construir uma força com uma proposta alternativa. Isto implica fortalecer as redes e as articulações de iniciativas populares por meio de processos pedagógicos críticos e propositivos.
Acreditamos que esse processo alimentará nossa intencionalidade e nos fortalecerá para trilharmos caminhos não percorridos, mas que se deseja percorrer, portanto projetos e utopias, os quais nos ajudarão a viver intensamente, no nosso tempo, com consciência e sensibilidade, aquilo que estamos denunciando e aquilo que estamos anunciando, como: democratização da gestão político-administrativo-pedagógica e construção do protagonismo dos sujeitos nos espaços organizacionais populares e nos movimentos sociais; participação popular e o controle social das políticas públicas; prática da resistência, da amorosidade, da tradição, da criatividade, da estética e da solidariedade entre os membros e defensores das classes populares; formação política como estratégia de luta na atual conjuntura para enfrentar o desafio de construir a unidade na diversidade.
Mobilizadores COEP – Qual a importância da EP para a sistematização de projetos sociais?
R.: Sistematizar um momento educacional é organizar os conhecimentos produzidos pela prática. Refletir sobre a ação para qualificá-la retomando os momentos pedagógicos ao produzir novos conhecimentos.
A inserção da prática sistematizadora em processos de educação popular tem revelado a pertinência e a relevância dessa ação no amadurecimento teórico e prático das experiências. Para uma educação que atua sob uma perspectiva emancipadora, o processo de sistematização é concebido como uma construção participativa que revela o protagonismo dos sujeitos que com ela estão envolvidos.
Desvelar o mundo diante de nossos olhos, ressignificando ações que muitas vezes foram esvaziadas de seu sentido ético-político-pedagógico pelo acúmulo de atividades na busca pela concretização das metas estabelecidas, é uma das possibilidades que o processo de sistematização traz aos seus autores/ sujeitos que vivenciam a educação popular.
São de grande valia para desencadear os processos de sistematização organizar momentos de formação para a sistematização com os educadores da Rede que vão coordenar os processos. Momentos de reflexão sobre O que é sistematizar? Para que sistematizar? Como sistematizar? Como comunicar a experiência?
Mobilizadores COEP – Sendo o COEP uma ampla rede social, que articula e desenvolve projetos para garantir às comunidades de baixa renda a aquisição de seus direitos básicos, que ações pode implementar usando a EP como meio de emancipação social?
R.: Criação de ambientes de aprendizagens colaborativos: 1) depositório de textos; 2) base de referências, 3) constituir um grupo de trabalho virtual permanente com atores de movimentos e organizações populares sobre Educação Popular para a socialização do conhecimento construído (por meio de reuniões, debates, troca de experiências, formações teórico-metodológica).
Mobilizadores COEP – Quais os objetivos da coordenadoria de Educação Popular do Instituto Paulo Freire? Que ações e projetos desenvolve?
R.: Desenvolver práticas educacionais, escolares e não-escolares, pautadas nos princípios teóricos metodológicos freirianos, que contribuam para a formação de uma consciência crítica para o desvelamento e superação da realidade opressora, de forma conjunta com as organizações sociais, governamentais, movimentos populares e sociais.
Ações:
· Realiza Estudos e Pesquisas para contribuir nos processos de formação dos Educadores e nas definições de políticas públicas sociais;
· Desenvolve atividades de educação continuada e acompanhamento educacional;
· Produz materiais pedagógicos e referenciais teórico-práticos, além de socializar os conhecimentos produzidos por meio de publicações;
· Promove a participação popular, potencializando ações, em diferentes redes, para o desenvolvimento do poder local e para a intervenção na gestão de políticas públicas para a educação de boa qualidade;
· Organiza e participa de eventos nacionais e internacionais que promovam o encontro de pessoas, instituições, sistematização e fortalecimento de experiências em torno da educação formal e não formal, referenciadas no legado de Paulo Freire.
Projetos:
· Formação de Educadores Populares na perspectiva freiriana
· Orçamento Participativo Guarulhos
· Rede de Educação Cidadã – Recid
Mobilizadores COEP – Poderia citar exemplos de projetos, no Brasil, que utilizem a EP em diferentes espaços sociais?
R.: MOVA-Brasil/ Petrobrás/ FUP (EJA)
· CEDECA ? Paulo Freire (Defesa direitos da Criança e do Adolescente)
· CEFURIA (Economia Solidária)
· CEDEPH ( direitos humanos)
· CEPIS (EJA)_____________________________________*1 (Freire, 74, In TORRES, R., 2002)*2 (Freire, 2007:110)Entrevista concedida à: Renata OlivieriEdição: Eliane AraujoEsperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.