A Coordenadora do Programa Cidadania e Direitos Humanos da UERJ, Esther Maria de Magalhães Arantes, é a patrona do Grupo Observatório da Infância e Adolescência (OIA). Pesquisadora do tema há mais de duas décadas e com várias publicações sobre o assunto, ela é também vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), coordena a Abrapso Regional-Rio pelo biênio 2004/2005 e foi indicada para compor a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia do Rio de Janeiro.
Nesta entrevista ao Mobilizadores COEP, ela faz um histórico do que levou as crianças e adolescentes para as ruas, alerta para a faltas de recursos para a garantia dos direitos sociais e fala sobre o crescimento do número de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação, colocando-se frontalmente contrárias a uma política de respeito aos direitos humanos.
Mobilizadores – Na sua opinião, qual a importância desse novo espaço lançado dentro do Mobilizadores COEP para agrupar pessoas interessadas no tema da promoção dos direitos da criança e do adolescente?
R. A Constituição Federal de 1988 é conhecida como Constituição Cidadã, por ter incluído, pela primeira vez, os direitos sociais como direitos humanos fundamentais, tendo incorporado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como diversos Pactos e Convenções Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Assim, os direitos sociais devem ser atendidos prioritariamente através de políticas públicas que necessitam, para sua implementação, de recursos – os quais, na atual conjuntura, encontram-se cada vez mais escassos. Neste sentido, apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente afirmar que os direitos das crianças e dos adolescentes devem ser atendidos com absoluta prioridade, na prática, tais programas não têm sido implementados nem com a quantidade nem com a qualidade e a urgência necessárias. Em nome do equilíbrio e do cumprimento das metas pactuadas com o FMI, o Estado brasileiro vem progressivamente diminuindo o gasto com as políticas sociais básicas, inviabilizando, na prática, o cumprimento da Constituição. Os movimentos sociais e de defesa dos direitos da criança e do adolescente identificam este processo e apelam, ora para a mobilização política, ora para o judiciário, na tentativa de reverterem tal processo. No entanto, até o momento, tanto as ações jurídicas quanto as ações políticas não têm sido suficientes para impedir os processos engendrados pela chamada globalização da economia, com os centros de poder econômico fora dos Estados nacionais e do uso de novas tecnologias capazes de aumentar a produtividade das empresas, sem, contudo, aumentar o número de empregos e postos de trabalho. A crise que se instala, a partir daí, combina desemprego, desesperança e violência, e os jovens pobres do sexo masculino têm sido as maiores vítimas, sendo que grande parte das mortes nesta faixa etária acontece por motivos externos: acidentes e assassinatos. Preocupa, também, o número de jovens envolvidos em atividades ilegais como forma de obterem renda e o uso abusivo e descontrolado de substâncias psicoativas como forma de se “desligar” desta realidade. Nesta conjuntura, onde faltam recursos para a garantia dos direitos sociais, ou onde tais recursos não são priorizados frente às exigências de controle fiscal, cresce o número de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação. Volta-se assim a um pensamento anterior, quando a ausência de direitos era assegurada pela criminalização e medicalização da pobreza. Assim, espaços como este são oportunidades para trocas de informações e experiências e, principalmente, para a emergência de novas proposições em relação aos problemas envolvendo crianças e adolescentes.
Mobilizadores – Que assuntos a seu ver têm maior relevância nesse momento para aprofundar o debate na área da infância e adolescência?
R: Antes de responder à questão propriamente dita, permita-me um pequeno resgate histórico. No Brasil Colônia os “filhos legítimos de legítimo casamento” ou os “filhos de família” não colocavam problemas à ordem social, pois que justamente encontravam-se sob o controle do “pai de família”, que tinha poderes quase ilimitados. Da mesma forma, os meninos da “terra”, contidos nos colégios jesuítas e os “escravinhos”, propriedades do senhor, encontravam-se controlados socialmente através destas relações de posse e assujeitamento. As crianças ditas “expostas”, “enjeitadas”, “órfãs” ou “desvalidas”, embora sem o suporte familiar, encontravam nos estabelecimentos da caridade como as Casas da Roda e os Recolhimentos dos Órfãos, o seu guardião legal. O problema se modifica quando os escravos adquirem a condição de livres e, portanto, de pais de família, sem contudo adquirirem as condições materiais para o exercício pleno da cidadania. Foi quando, no final do Império e começo da República, crianças e adolescentes pobres, agora denominados “menores”, passaram a ser encontrados nas ruas brincando, trabalhando, pedindo esmolas ou cometendo pequenos furtos. O Estado, longe de reverter este processo, buscou modificar a legislação, permitindo ao Juiz de Menores ampla interferência nas famílias e no encaminhamento dos menores aos internatos – verdadeiros depósitos de crianças e adolescentes pobres. Com a Constituição de 1988, aboliu-se, na legislação, a infame distinção entre “criança/adolescente” e “menor”, concedendo a todos, sem distinção de credo, cor ou classe social, o direito à vida, à educação, à saúde, à dignidade, à convivência familiar e comunitária. Falta, no entanto, abolir esta distinção na prática social. Esta é a questão de fundo, a questão estrutural, a questão que vem se mantendo e se reproduzindo desde 1500. Tomando-se o debate atual, decorridos catorze anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, constatamos que o quadro não se alterou substancialmente: persistem o trabalho e a prostituição infantil como meio de obtenção de renda; elevaram-se os índices de violência praticada contra e pelos adolescentes; cresceu o envolvimento dos jovens com o uso e a venda de substâncias psicoativas. Isto, por um lado. Por outro, em função do chamado “problema da violência”, constata-se o crescimento de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação e das práticas repressivas, colocando-se frontalmente contrárias a uma política de respeito aos direitos humanos, como se direitos humanos não fossem direitos de todos, mas apenas para “proteger bandidos”.
Mobilizadores – A senhora pesquisa este tema desde final da década de 1980 e tem várias publicações sobre o assunto. Neste período o que mudou no Brasil em relação à promoção dos direitos das crianças e adolescentes? Tivemos avanços significativos? Em que áreas?
R: Em junho de 2004, um importante jornal do Rio de Janeiro publicou na primeira página uma foto de adolescentes internados no Instituto Padre Severino (que é uma unidade de internação provisória) com a seguinte chamada: A classe média visita o inferno. A matéria referia-se ao fato de pais e jovens de classe média estarem levando seus filhos para conhecer o IPS a fim de ensiná-los a evitar o envolvimento com o crime. Pela matéria ficamos conhecendo um pouco da rotina bem como a opinião de técnicos, diretores e operadores do Direito sobre o “inferno”. Mais surpreendente do que constatar a caracterização de uma unidade do sistema sócio-educativo como “inferno” foi verificar que nenhum dos entrevistados manifestou indignação diante da flagrante violação de direitos que constitui tal fato. No Brasil Republicano, crimes são condutas descritas em leis, bem como as sansões e procedimentos a serem adotados, não cabendo julgar pessoas por seus pecados nem condená-las ao inferno, à chibata ou ao degredo, como em tempos coloniais. A palavra inferno, no contexto religioso, designa lugar de castigo eterno, tendo o crente rompido com as leis divinas. Esta mesma lógica, utilizada para caracterizar unidades de internação, só pode significar violação de direitos – uma vez que não existe “condenação eterna” no Direito brasileiro e nem o pressuposto de que, com o ato infracional, o adolescente rompeu definitivamente com as leis da sociedade, perdendo sua condição de pessoa. Ao contrário, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 121, diz que “a internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. Assim, respondendo à pergunta, tivemos modificações importantíssimas na legislação, reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento. Por outro lado, tem sido muito difícil modificar as práticas e os modelos de atendimento, como no exemplo acima. Assim, é necessário irmos além e fazer a pergunta: porque permitimos que o sistema sócio-educativo para os adolescentes sejam como o “inferno”?
Mobilizadores – São muitos os problemas que atingem as crianças e adolescentes, como exploração sexual, gravidez na adolescência, evasão escolar, envolvimento com uso e venda de drogas, abando, maus tratos familiares. Como a sociedade brasileira vem lidando com essas questões? Quais têm sido as contribuições da iniciativa privada, no exercício de sua responsabilidade social, para o enfrentamento destes problemas?
R: Ao definir como sendo dever da família, do Estado e da sociedade assegurar os direitos da criança e do adolescente, a Constituição Federal de 1988 não excluiu ninguém desta responsabilidade, sendo cada um de nós chamado a dar a sua contribuição. Sabemos que os problemas são complexos e não serão resolvidos, a não ser com a participação de todos.
Mobilizadores – Nos fale um pouco sobre o trabalho que vem desenvolvendo como pesquisadora da área da criança e do adolescente, como coordenadora do Programa Cidadania e Direitos Humanos da UERJ.
R: Desde o final da década de 1980 tenho me dedicado ao estudo da assistência à infância. Isto tem implicado longas pesquisas sobre a legislação, as práticas, as instituições e os discursos que, ao longo da história do Brasil, incidiram sobre a criança, resultando não apenas em publicações, mas também em cursos, assessorias, orientações de alunos, palestras, participação em debates, enfim, tudo o que corresponde ao trabalho do professor. Ao longo deste anos, verifiquei que a prática de atribuir ao jovem pobre características negativas como infrator, perigoso, marginal etc, gera frustrações, ansiedade, desesperança e revolta. Assim, como profissionais e companheiros na luta dos jovens por melhores condições de vida, por dignidade e pelo exercício do direito à diferença, cabe-nos não apenas recusar esses traços como sendo pertencentes a uma natureza humana diminuída ou inferior, como também problematizar as propostas que são oferecidas aos jovens, recusando todas aquelas que intentam reconduzi-los para dentro de si mesmos e que rompem com a vida comunitária, tornando frágeis os laços de mútua solidariedade.