Para a CARE, a adaptação às mudanças climáticas pressupõe ações transformadoras de gênero. Tais atividades devem se basear numa análise abrangente sobre as vulnerabilidades às alterações do clima; quebrar regras e estereótipos enraizados; promover políticas e programas de adaptação em nível local, nacional e internacional, levando em conta necessidades específicas de homens e mulheres pobres; prover acesso a recursos, direitos e oportunidades que possibilitem a homens e mulheres condições de adaptar-se ao seu ambiente em mudança.
De acordo com Markus Brose, diretor-executivo da CARE Brasil, a experiência da organização na redução da pobreza mostrou que empoderar as mulheres nos assuntos de suas comunidades e famílias pode permitir decisões que fortaleçam a capacidade adaptativa às alterações climáticas.
Mobilizadores COEP – Que grupos serão os mais afetados pelas mudanças climáticas?
R.: As mudanças climáticas não são uma ameaça teórica do futuro; elas estão acontecendo. Os impactos são visíveis de formas variadas em diferentes territórios. No litoral de Santa Catarina, por exemplo, temos furacões e enchentes cada vez mais graves, enquanto, no oeste do estado, as secas são cada vez mais frequentes e prolongadas. Na área da Baía da Guanabara [no estado do Rio de Janeiro], em que o mangue foi eliminado, as enchentes são cada vez mais comuns e mais fortes. No sertão de Pernambuco, Alagoas e Piauí, as chuvas são mais irregulares e, quando acontecem, as pancadas são muito fortes. A Amazônia sofre com secas mais severas.
Os grupos mais afetados são as famílias mais vulneráveis, aquelas que têm nome, CPF e endereço registrados no cadastro do Bolsa Família, no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no caso dos aposentados, e os trabalhadores rurais. São também as famílias que integram o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e comunidades de onde advêm os trabalhadores libertados do regime de escravidão pelos fiscais das Delegacias do Trabalho.
Esses são os mais afetados, mas todos são castigados com a situação. As classes A e B o foram, quando tiveram suas casas de veraneio, construídas no meio de dunas e em cima da areia, no litoral, demolidas pela ressaca, no litoral de Florianópolis (SC) e em Olinda (PE). Ou quando as casas de veraneio e haras na Região Serrana/RJ foram soterrados por avalanches de terra e pedra, que desceram os rios e demoliram mais de 150 pontes antes de desaguar no litoral norte do Rio de Janeiro. Com as chuvas de janeiro de 2011, o processo de desenvolvimento econômico da Região Serrana/RJ foi atrasado em, no mínimo, uma década, afetando a todos os moradores da região.
Mobilizadores COEP – De que forma as atribuições reprodutivas e produtivas que pesam sobre as mulheres pobres fazem desse grupo um dos mais afetados por essas mudanças?
R.: Dentro das comunidades rurais e das famílias na periferia urbana, recai sobre as mulheres e meninas as principais tarefas de manutenção da família. Elas precisam passar o dia na frente do fogão à lenha, após coletar madeira para fazer fogo. Elas precisam caminhar horas, todos os dias, para buscar água potável. Elas lavam na mão a roupa da família. Elas cuidam das crianças em áreas que não possuem creche disponível e precisam levar filhos e irmãos aos postos de saúde. São elas que sofrem mais pela falta de privacidade e de água potável para manter sua higiene pessoal; são elas que sentem a precariedade do sistema de saúde pública, por exemplo, quando precisam de atendimento ginecológico regular, ou precisam fazer o pré-natal. Sem contar que, caso de enchentes, em periferias urbanas, as meninas e moças são as mais propensas a ter infecções e doenças ginecológicas pelo contato com a água contaminada.
No caso da migração das famílias, que saem de áreas de risco nas periferias urbanas ou de comunidades rurais isoladas, para cidades de médio e grande porte, são as mulheres que mais sentem a dificuldade de reconstrução da vida e do estabelecimento de novas relações no novo contexto.
Sendo assim, à medida que, nas famílias vulneráveis, as mães e meninas são as responsáveis pela alimentação, acesso à água potável, água para higiene familiar etc. impõe a elas o maior peso. As mães afro-descendentes, arrimo de família, com várias crianças de diferentes pais, são a parcela mais vulnerável da população.
Mobilizadores COEP – Apesar de as mulheres desempenharem papel fundamental na agricultura, são as mais afetadas pela insegurança alimentar. Como esse quadro tende a se agravar com as mudanças climáticas?
R: Tanto as culturas como o gado são afetados pelas mudanças climáticas e isso causa conseqüências na segurança alimentar das famílias.
Existem muitas diferenciações na agricultura, a mais básica é entre famílias sem terra e famílias proprietárias de terra. Dentre estas, temos famílias atuando na subsistência, famílias em transição e famílias integradas ao mercado. Os grupos são afetados de forma diferenciada.
Nas famílias sem terra, extrativistas e famílias que vivem da subsistência, as alterações no curso do regime hídrico já afetam a produtividade das roças de subsistência, aumentando o risco da falta de alimento após uma safra minguada. Como, em geral, os homens migram mais fácil e rapidamente, resta às mulheres, que permanecem morando na habitação precária com os filhos, a responsabilidade pelo alimento diário, garantido em parte pela merenda escolar e Bolsa Família. Resta a elas a terra vulnerável e menos fértil para cultivar culturas voltadas a subsistência familiar.
Fora isso, as mudanças climáticas trazem implicações para a preparação e armazenamento dos alimentos. As safras podem ser reduzidas e mesmo destruídas pelas cheias ou secas. Isso afeta os preços do mercado e a disponibilidade de excedentes para vender.
Mobilizadores COEP – E quanto à relação entre os eventos extremos e o aumento da violência contra a mulher?
R.: Quando ocorrem desastres, como enchentes ou deslizamentos de terra, os grupos que ficam mais vulneráveis são os doentes, incapacitados, pessoas com deficiência, idosos, mulheres e meninas. Estes são os grupos menos lembrados e os que mais sofrem em abrigos inadequados, com a permanência prolongada em habitações provisórias, com moradia temporária na casa de familiares ou amigos, e com perda do acesso a serviços de saúde ou assistência social.
Mobilizadores COEP – Até que ponto as discussões sobre adaptação às mudanças climáticas levam em conta o fato de as mulheres constituírem um grupo altamente vulnerável?
R.: O debate público sobre mudanças climáticas no Brasil ainda é arcaico. Basicamente, a mídia enquadra as mudanças climáticas como um fenômeno meteorológico e/ou ambiental, e, portanto, o debate é dominado por órgãos públicos e ONGs ambientalistas. Tanto os diagnósticos como as legislações propostas, em geral, não consideram o aspecto social das mudanças climáticas e menos ainda o aspecto de gênero.
Boa parte das análises e debates ocorre em Brasília (DF), onde um seleto grupo de técnicos do governo federal, de universidades e algumas organizações da sociedade civil dão o tom e o enfoque.
Os primeiros estudos disponíveis sobre a necessidade de adaptação não levam em conta a questão de gênero e quase inexiste um debate sobre ações de adaptação. O debate em larga escala é ainda dominado pelo enfoque na mitigação da emissão de gases de efeito estufa e, em especial, os novos negócios que são possíveis neste âmbito.
Os homens têm, em geral, mais influência sobre as políticas e programas de promoção da governança local. Sem o poder de decidir sobre os recursos e finanças da família, a capacidade das mulheres de gerir riscos, através da diversificação de culturas, armazenagem de alimentos e sementes, por exemplo, fica limitada.
Mobilizadores COEP – Como é o trabalho desenvolvido pela CARE voltado à adaptação às mudanças climáticas, com foco na redução das desigualdades de gênero? Que tipo de pressupostos leva em conta?
R.: Adaptação às mudanças climáticas no Brasil é, essencialmente, o combate à pobreza. E as duas principais portas de saída da pobreza são acesso à educação de qualidade e à renda familiar.
Regras e normas culturais repressivas restringem a capacidade de muitas mulheres agirem sobre as mudanças climáticas. Da mesma forma, homens pobres e marginalizados também lidam com constrangimentos semelhantes. Portanto, a abordagem da CARE para adaptação inclui ?empoderar? tanto mulheres como homens para desafiar e transformar desigualdades enraizadas. Neste sentido, busca-se implementar atividades visando à equidade de gênero. Atividades que modifiquem normas rígidas e promovam conscientização sobre a posição de homens e mulheres. Atividades que desafiem a distribuição de recursos e a alocação de responsabilidades entre homens e mulheres. Atividades que ajudem homens e mulheres a terem acesso a recursos, direitos e oportunidades de que necessitem para se adaptarem ao seu ambiente em mudança. Atividades que promovam políticas e programas de adaptação em nível local, nacional e internacional, levando em conta necessidades específicas de homens e mulheres pobres.
Os projetos implementados pela CARE Brasil consideram, em grande parte, as necessidades de mulheres e moças para as ações de educação e geração de renda. A experiência da CARE em reduzir a pobreza mostrou que empoderar as mulheres nos assuntos de suas comunidades e famílias pode permitir decisões que fortaleçam a capacidade adaptativa.
Entrevista do Grupo Gênero, Combate à Discriminação e Grupos PopulacionaisConcedia à: Renata OlivieriEditada por: Eliane Araujo