O Grupo de Mulheres de Dandara desenvolve, há dez anos, experiências agroecológicas numa roça comunitária localizada no Assentamento Dandara dos Palmares, município de Camamu, Baixo-Sul da Bahia. As experiências na roça promoveram a valorização e o reconhecimento do papel das mulheres na agricultura familiar, a qualidade e a diversificação dos alimentos que são produzidos e consumidos, o cuidado com a natureza, e o fortalecimento do trabalho em grupo, entre outras coisas.
Nesta entrevista, Maria Andrelice, representante da roça, com auxílio de Ana Celsa Sousa, técnica do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop), explica ainda como a roça vem contribuindo para mudar as relações de gênero na comunidade e trazer mais qualidade de vida para todos.
Mobilizadores COEP – Como e quando surgiu a roça agroecológica no assentamento? Que tipos de problemas as famílias no local enfrentavam antes da roça?
R.: Quando o acampamento se formou, em 1997, havia muitas famílias com crianças de 0 a 5 anos de idade, com sintomas de desnutrição e baixo peso, e doenças, como diarréia. As famílias passavam por muitas dificuldades, principalmente com a falta de alimentos.
Como, na época, o único cultivo da fazenda era o cacau, em 1998, um grupo de 20 mulheres se uniu e solicitou à associação local um lote de quatro hectares para produzir verduras, legumes e culturas de curto, médio e longo prazo. A roça surgiu em 1999, com a proposta de acabar com a insegurança alimentar no local e trazer mais saúde para todos, especialmente para as crianças.
Em 2000, a Pastoral da Criança começou a apoiar o grupo através de um fundo rotativo, utilizado para compra de insumos, sementes e ferramentas. Já o Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop), entidade parceira, apoiou dando assessoria na produção do viveiro de mudas de frutíferas e no manejo agroecológico.
Mobilizadores COEP – Que princípios regem a produção?
R.: O grupo discutiu sobre algumas possibilidades de manejo. Foram feitas experiências com queimadas da terra numa parte e, em outra, roçando o mato sem queimadas, até que se convenceram de que o melhor manejo era o agroflorestal. O manejo é feito roçando o mato e cobrindo a terra, deixando algumas plantas nativas para proteger a terra. Não é permitido fazer queimada e nem usar insumos químicos.
Para lidar com a presença constante de formigas cortadeiras, por exemplo, o manejo foi feito com ?plantas ajudantes?, que auxiliam no controle de pragas e na melhoria do solo, como o comigo-ninguém-pode, roxinho e água de mandioca (manipueira). O problema foi controlado sem a necessidade de veneno.
Mobilizadores COEP – Quantas pessoas hoje trabalham na roça?
R.: 6 mulheres.
Mobilizadores COEP – Quais os alimentos produzidos?
R.: Mandioca, aipim, feijão, gergelim, batata, fava, inhame, café, milho, cana, abacaxi, banana, milho,urucum, cupuaçu, plantas medicinais e tempero verde.
Mobilizadores COEP – Onde são feitos o beneficiamento e armazenamento dos produtos?
R.: A distância da agrovila para a roça agroecológica das mulheres é de 4 km. Devido a esta distância, o grupo resolveu construir, na própria roça, um local para fazer o beneficiamento e o armazenamento dos produtos, além de guardar os materiais de trabalho.
Mobilizadores COEP – Os alimentos também são comercializados? Em caso positivo, onde e de que forma?
R.: O grupo de mulheres comercializa os produtos semanalmente na roça agroecológica. Há cerca de um ano, os produtos do grupo vêm sendo comercializados na Feira Agroecológica de Camamu, organizada por meio de um sistema de rotatividade semanal delas com mulheres de outras comunidades da região.
Também vende produtos in natura e beneficiados para a o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA/Conab), em parceria com a Agência de Assessoria e Comercialização da Agricultura Familiar do Baixo Sul (AACAF). No momento, o grupo está se organizando para vender para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Mobilizadores COEP – Quais os principais obstáculos enfrentados nestes 10 anos de trajetória?
R.: A falta de recursos financeiros; o descrédito de muitos companheiros [maridos], que pressionavam suas mulheres para que desistissem da roça; a dificuldade de participação das mulheres com muitos filhos; o fato de muitas mulheres, inicialmente, não acreditarem no manejo agroecológico; a baixa auto-estima das mulheres; a falta de distribuição de água na agrovila, dentre outras. Diante destas dificuldades, algumas mulheres foram desistindo, mas o trabalho na roça comunitária em mutirão semanal não parou.
Mobilizadores COEP – Como são as relações entre homens e mulheres na comunidade?
R.: Ainda existe sobrecarga de trabalho para as mulheres, principalmente por terem de tomar conta dos filhos e da casa, buscar água para os afazeres domésticos. O transporte de água para a casa é feito por elas e pelas crianças com latas, em estradas acidentadas e íngremes.
As mulheres tiveram que lutar muito para poderem participar da Associação Comunitária, por exemplo. Logo no início, as que não eram titulares do lote não tinham direito a votar e nem de ser votada. Como a maioria era de homens, poucas participavam das decisões do assentamento. Outro problema era com relação aos benefícios. Sem a documentação necessária, que incluía a ata de participação na associação, as mulheres ficavam atreladas ao marido na hora de acessar direitos como o auxílio-maternidade. Assim, toda vez que a mulher acessava algum tipo de beneficio, o marido exigia a sua parte, alegando que a documentação foi a dele.
Depois de algum tempo, as mulheres conseguiram se associar. Mas como ainda não ganhavam dinheiro com os produtos da roça, não podiam pagar a mensalidade. Inadimplentes, não tinham direito a votar e nem de ser votada. Com muita persistência, o grupo pressionou e conquistou o direito de a família pagar uma única mensalidade na associação.
Além disso, como a venda da produção e a administração da renda das famílias agricultoras são realizadas pelos homens, a geração e a gestão de renda pelas mulheres se tornaram uma questão central para o grupo. A entrada de novas mulheres tem ajudado a dinamizar a produção e a estimular as iniciativas de beneficiamento e de comercialização que estão sob o domínio exclusivo das mulheres.
Mobilizadores COEP – Quais as principais mudanças na vida das mulheres com a roça agroecológica?
R.: Com a roça, está havendo o gradativo empoderamento das mulheres a partir de um processo intenso de mobilização, capacitação, intercâmbio com outras experiências em torno da temática de segurança alimentar e agroecologia e sua articulação com mulheres da região do baixo sul da Bahia; geração de renda e mais autonomia; a tentativa de superar as diversas formas de violência contra a mulher; e principalmente a criação de um espaço próprio, legítimo das mulheres.
Foi participando de encontros agroecológicos, viagens de intercâmbio, reuniões, que as mulheres começaram a se desenvolver mais, falar mais, aprender mais, e a superar barreiras, tanto as da produção como as das relações com o marido.
As mulheres passaram a se reunir para discutir assuntos de seu interesse, como saúde, relações de gênero, acesso à documentação, manejo agroecológico, etc. Em 2005, elas se articularam às mulheres do assentamento e formaram o grupo ?Mulheres de Dandara na luta pelos seus direitos?. O processo mobilizou 32 mulheres, que se dividiram em dois subgrupos produtivos, o grupo da roça agroecológica e o grupo de artesanato.
Mobilizadores COEP – E da comunidade como um todo?
R.: Hoje, os alimentos que são consumidos são mais diversificados e têm maior qualidade; a comunidade aprendeu a cultivar, protegendo a natureza e valorizando os recursos locais; geração e aumento da renda a partir da diversificação de produtos; a comunidade aprendeu a se unir para vencer as dificuldades de forma coletiva; a produção de adubação orgânica, potencializada através dos intercâmbio.
Mobilizadores COEP – Como surgiu a ideia de sistematizar a experiência?
R.: A ideia surgiu a partir da participação do grupo de mulheres do assentamento no Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), onde foi discutida a falta de visibilidade dos trabalhos desenvolvidos pelas mulheres agricultoras. A proposta da sistematização é valorizar e dar visibilidade às experiências desenvolvidas por mulheres dentro da agroecologia, bem como buscar a equidade de gênero.
O processo de sistematização tem ajudado a levantar e aprofundar a reflexão sobre questões fundamentais para o grupo, como a segurança alimentar no assentamento. Há também um resgate das relações de opressões e desigualdade nas relações de gênero na construção da proposta, assim como a identificação de formas de violência vivenciada pelas agricultoras.
Mobilizadores COEP – Que dicas daria a comunidades que estejam passando por dificuldades semelhantes as que passaram?
R.: Fortalecer a união das mulheres dentro da comunidade. A partir desta união, é possível rever o seu papel social e seu poder de decisão e também estimular mudanças coletivas e individuais.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo