O Instituto Noos cria e oferece serviços voltados para a promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, famílias, instituições e comunidades. Mas a maior parte de suas atividades está ligada ao Programa de Prevenção à Violência Intrafamiliar e de Gênero e à elaboração e implantação de políticas públicas relacionadas ao tema. O presidente do Instituto,Carlos Zuma, nos conta nessa entrevista como é desenvolvida uma das principais ações desse programa:os grupos reflexivos de gênero formados só por homens.
Mobilizadores COEP – Por que promover grupos reflexivos de gênero formados só por homens? Quais são os pressupostos e premissas do trabalho do Instituto Noos?
R – Os grupos reflexivos de gênero com homens, realizados pelo Instituto Noos, fazem parte do Programa de Prevenção à Violência Intrafamiliar e de Gênero da instituição. As ações de Atendimento Direto do programa incluem também os grupos reflexivos de gênero realizados com mulheres e os atendimentos de casal e família. A maioria dos homens que freqüentam os grupos cometeu algum tipo de violência contra uma mulher pelo menos uma vez e, alguns desses homens, sofreram violência cometida por uma mulher. Acreditamos que a violência ocorrida entre parceiros íntimos é, primordialmente, motivada por questões de gênero. Entendemos o conceito de gênero como sendo o conjunto de expectativas que um grupo, uma cultura, uma sociedade, faz, em um determinado momento histórico, em relação ao comportamento de homens e mulheres. ?Homem que é homem…?, ?mulher que é mulher…?. Ou seja, gênero é as características que atribuímos aos homens e às mulheres, é uma construção social e não está determinado no sexo biológico de uma pessoa.Dizemos que uma violência é de gênero, quando é cometida por quebrar expectativas do autor da violência em relação ao comportamento da vítima como homem ou mulher. Por exemplo: uma mulher que apanha do marido por deixar de fazer tarefas domésticas; um homem que é humilhado por não estar podendo prover sua família ou um menino que apanha para aprender a ser forte. Neste sentido, realizamos os grupos reflexivos para que homens e mulheres, envolvidos em situações de violência com seus parceiros íntimos, tenham oportunidade de repensar criticamente como construíram suas identidades como homens e mulheres, tomem consciência sobre suas expectativas em relação ao comportamento do outro e sobre o seu próprio e relacionem esses valores e crenças com seus comportamentos e reações nos momentos de conflito na relação. Quanto mais presos os homens se encontram no modelo predominante de masculinidade, que costumamos chamar de machista, mais probabilidade de reagir com violência nos conflitos relacionais. Quanto mais flexível for sua expectativa em relação ao seu próprio comportamento e ao que os outros vão pensar sobre sua masculinidade, menos propenso estará ao uso da violência. Promover grupos com os homens está relacionado com uma postura de prevenção em relação ao tema da violência contra as mulheres e também com uma visão sistêmica de mundo, com a crença nas soluções que são construídas com todos que participam do problema. Além disso, engajar os homens nas diferentes ações de prevenção da violência contra as mulheres faz parte das resoluções e recomendações de importantes convenções internacionais, com vistas a promover uma sociedade mais igualitária entre homens e mulheres.
Mobilizadores COEP – Como são identificados e escolhidos os homens que participam do programa?
R – Os homens são encaminhados à instituição por Juizados Especiais Criminais, delegacias de mulheres, centros de atenção e defesa da mulher, centros de assistência social e psicossocial, profissionais liberais, ou ainda, por procura espontânea, algumas vezes motivada por uma entrevista ou matéria a que tiveram acesso. Pode participar do grupo qualquer homem com possibilidade de freqüentar a instituição uma vez por semana, durante duas horas e por vinte semanas consecutivas, e que esteja com capacidade de participar de uma conversa coerente com outros homens.
Mobilizadores COEP – Quais têm sido os resultados e repercussões do programa -mensuráveis e não mensuráveis?
R – Após sete anos da implantação do seu Programa de Prevenção à Violência Intrafamiliar e de Gênero, o Instituto Noos atendeu mais de 250 homens e 100 mulheres nos grupos reflexivos de gênero e cerca de 800 famílias, em diferentes projetos. Em relação aos homens, especificamente, os resultados identificados através de avaliações periódicas de nossas atividades dizem respeito a conquistas do próprio homem, a mudanças em suas crenças e atitudes e também mudanças relacionais. Algumas dessas conquistas são:
? aumento da capacidade de expressão e de manter diálogo;
? aumento da percepção do outro;
? aumento da autoestima;
? maior integração de sua rede social;
? desnaturalização da violência;
? questionamento da violência como forma de resolução de conflitos e ampliação de formas alternativas;
? efeito multiplicador da metodologia em diferentes espaços cotidianos (família; local de trabalho…);
? olhar crítico sobre o cotidiano;
? aumento da percepção de cidadania e concidadania;
? baixa reincidência de violência intrafamiliar;
Mobilizadores COEP – Tem havido alguma resistência ao trabalho, por parte da sociedade e/ou por parte dos próprios participantes?
R – Apesar de termos hoje muito estímulo e apoio por parte de representantes do movimento de mulheres, algumas delas demonstraram alguma resistência no início do nosso trabalho com os homens. Elas entendiam que trabalhar com os homens seria uma forma de ?passar a mão na cabeça?, ou seja, seria uma atitude indulgente e tolerante com esses homens e que a única resposta possível da sociedade deveria ser a punição com prisão.Acreditamos que a violência deva ser compreendida tanto como ato quanto como dinâmica. Ou seja, no ato da violência há uma vítima que precisa ser amparada e protegida e um autor que precisa ser responsabilizado pelo ato que cometeu. Há, no entanto, uma dinâmica relacional que possibilita que o ato de violência ocorra. Se queremos ter uma atitude preventiva, e não só reativa, em relação à problemática, então esta dinâmica relacional precisa ser conhecida para que possamos interrompê-la e evitá-la. Neste sentido, a participação de todos os envolvidos faz aumentar a probabilidade de sucesso. Além disso, pensar unicamente em punição para os autores simplifica muito a complexidade do problema. Seria colocar unicamente no indivíduo a fonte de todo o mal. Com isso evitamos pensar na responsabilidade da cultura que compartilhamos e em nossas próprias atitudes que contribuem para a manutenção dessa cultura. Precisamos envolver o maior número de pessoas possível na reflexão sobre essa questão para identificarmos suas causas e encontrarmos soluções compartilhadas. Por exemplo: se queremos fazer uma prevenção primária eficaz, temos que envolver crianças e jovens no debate sobre as relações de gênero e ajudar pais e mães a repensarem seu modelo de educar meninos e meninas. Ainda hoje (Brasil, século XXI) encontramos famílias que não permitem que seus filhos homens entrem na cozinha, nem sequer para pegar um copo d?água, ou que façam qualquer trabalho doméstico, com medo de comprometer sua masculinidade. Sem precisar cair em exageros, pergunte-se: faço distinção na forma como crio meu filho homem e minha filha mulher? Como reagiria se visse meu filho brincando de boneca? Ou, o que faria se minha filha, jovem adulta, quisesse trazer o namorado para dormir em casa, assim como seu irmão e a namorada dele? De que forma essa distinção pode contribuir para que ele ou ela venha a se envolver em situações de violência em suas relações afetivas?
Mobilizadores COEP – Existem planos de ampliação / multiplicação do programa?
R – Temos realizado palestras de sensibilização sobre o tema da violência intrafamiliar e capacitações em nossas metodologias, tanto em nossa sede no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, quanto em outras cidades do Brasil, sempre que somos convidados. A intenção é disseminar nossa forma de pensar e incentivar outras instituições a adotarem nossa metodologia de trabalho. Nosso desafio principal é conseguir mais financiamento para o programa, já que todo atendimento que fazemos é totalmente gratuito, para que possamos ampliar o número de pessoas atendidas.
Mobilizadores COEP – Como homens que desejam integrar os grupos de discussão podem se informar e participar?
R – Basta entrar em contato por telefone com a instituição, dizendo que quer se inscrever para participar dos grupos reflexivos de gênero. Em seguida, um técnico da instituição ligará em retorno para marcar uma entrevista individual.
Temos percebido que os valores culturais presentes em nossa sociedade, talvez da mesma forma como as questões sócio-econômicas, têm determinado a submissão da mulher à vontade do homem, principalmente na vida privada. O que se precisa fazer, com urgência, é estender estes fóruns de debate (cujo público internauta é mais restrito), e estes estudos que são aqui apresentados, às comunidades, às escolas, professores, crianças e adolescentes, aos homens e mulheres e, sobretudo, à mídia, que tem cometido grandes pecados, o maior – e mais grave deles é o de “informar”os casos de violência apenas para ganhar audiência ou fazer sensacionalismo, sem buscar suas causas mais profundas e discuti-las à exaustão. Já vivi em comunidades do nordeste em que, quase todas as mulheres que sofriam violência física, denunciavam os companheiros, saiam de casa com seus filhos e depois voltavam e aceitavam o marido tal e qual, até retiravam suas queixas. O marido é um valor social “simbólico”para elas. Nestes locais, uma mulher solitária não tem valor algum, por melhor que seja como profissional, mãe, etc. A presença de um homem é sempre cobrada em sua vida sem a qual não há realização sexual, social e materna.
Penso ser importante incluir os adolescentes nesta discussão, desenvolvendo trabalhos de sensibilização e articulação nas escolas, nas associações de bairro, nos movimentos religiosos, por exemplo. Existe alguma ação articulada neste sentido?
A evolução feminina, acelerada no século passado, quando a mulher assumiu posições de vanguarda no mercado de trabalho, não foi acompanhada de igual intensidade no que concerne ao seu posicionamento no ambiente doméstico. Mesmo se posicionando como provedora da família, a soberania masculina prevalece nas relações cotidianas. A reconstrução do universo masculino é imperativa, mas até que ponto as mulheres não reforçam o atual modelo, também reconhecido e valorizado pela sociedade?
No Brasil é preciso trabalhar com a realização de fóruns , debates. Principalmente nas escolas de ensino médio.
O homem tem mais dificuldade de se expressar e então tenta resolver na “marra”. Concordo que deva iniciar um trabalho de acolhimento desta dificuldade,com compreensão, com tecnicas, com metodologias, que levem a uma reflexão sobre os fatos, tentando asssim não repetí-los em nova oportunidades.