Excesso de consumo, muita propaganda, apelos de todos os lados. A infância no Brasil tem sofrido um processo freqüente de mercantilização, causando uma série de impactos que já podem ser sentidos atualmente, como obesidade, encurtamento da infância e erotização precoce, consumo precoce de álcool e tabaco, diminuição das brincadeiras criativas, violência e estresse familiar.
De acordo com Gabriela Vuolo, coordenadora de mobilização do Instituto Alana, a infância é o momento do desenvolvimento humano em que se formam hábitos e valores. E a publicidade cria e amplia o desejo pelo consumo, além de estimular valores materialistas.
Nesta entrevista, ela fala da importância do pleno desenvolvimento para uma infância saudável e do papel dos pais, da escola e do Estado neste processo.
Mobilizadores Coep – O que é o Projeto Criança e Consumo? Qual é seu objetivo?
R.: O Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, desenvolve atividades que despertam a consciência crítica da sociedade brasileira a respeito das práticas de consumo de produtos e serviços por crianças e adolescentes. Debater e apontar meios que minimizam os impactos negativos causados pelos investimentos maciços na mercantilização da infância e da juventude faz parte do conjunto de ações pioneiras do Projeto que busca, como uma de suas metas, a regulação de toda e qualquer comunicação mercadológica dirigida a crianças no Brasil. Mais informações no site: <http://defesa.alana.org.br>.
Mobilizadores Coep – Qual a diferença entre consumo e consumismo?
R.: A diferença entre consumo e consumismo está na maneira como consumimos. Vivemos em uma sociedade de consumo e isso é um fato impossível de mudar. Nossa preocupação aqui no Instituto Alana é com o consumismo, que é o hábito de “comprar por comprar”, comprar por impulso, sem uma necessidade real e sem refletir sobre o tipo de produto que estamos comprando e os impactos desse produto no mundo.
Mobilizadores Coep – Qual o impacto da mídia e do marketing na formação das crianças em nosso país? Que tipo de problemas pode acarretar?
R.: A infância é o momento do desenvolvimento humano em que se formam hábitos e valores. E a publicidade cria e amplia o desejo pelo consumo, além de estimular valores materialistas. Isso pode trazer problemas para essas crianças no futuro, mas alguns dos impactos já podem ser observados hoje: obesidade infantil, encurtamento da infância e erotização precoce, consumo precoce de álcool e tabaco, diminuição das brincadeiras criativas, violência e estresse familiar.
Mobilizadores Coep – As crianças brasileiras influenciam nas decisões de compra de suas famílias? Em que proporção e de que forma?
R.: Sim, hoje as crianças são um alvo preferencial das campanhas de marketing. Já se sabe que os pequenos participam do processo decisório de 80% das compras da casa, de acordo com pesquisa da Interscience, de 2003. São elas também que passam a maior parte do tempo em frente às tevês – em média mais de cinco horas por dia, segundo levantamento do Ibope, de 2011. Assim, os anunciantes de produtos e serviços direcionados ou não ao público infantil falam diretamente com a criança para que ela influencie seus pais no momento da compra. Mas esquecem-se da ética e da vulnerabilidade dos pequenos nessa fase importante de seu desenvolvimento saudável.
Mobilizadores Coep – Qual é o papel da família diante do consumismo infantil? Até onde os pais podem influenciar positiva ou negativamente com relação ao consumo excessivo?
R.: A família tem um papel muito importante nesse processo de minimizar o consumismo na infância. Em primeiro lugar, os pais devem dar o exemplo, pois se a criança vê os pais consumindo excessivamente e sem reflexão, tende a acreditar que esse é o comportamento correto. A criança é mimetista e imita o comportamento adulto. Por isso, é importante que os adultos tenham um discurso coerente com sua prática; se falam e fazem combinados a respeito de consumo com os pequenos antes de ir ao shopping, por exemplo, isso deve servir para eles (pais) também. Promover com os filhos atividades que não envolvam mídia também é um ótimo exemplo, porque reduz a exposição das crianças aos apelos de mercado que vêm embutidos na programação de TV e internet. Por fim, os pais também têm um papel importante ao dizer “não” – tanto para seus filhos, já que a frustração é importante para o desenvolvimento das crianças, quanto para as empresas que anunciam para crianças. Dar preferência a empresas com uma conduta ética e uma preocupação com a infância também é uma maneira de lidar com o consumismo infantil.
Mobilizadores Coep – Qual a influência dos colegas de escolas e amigos no perfil consumista das crianças. Qual deve ser a atitude dos pais em relação a isso? E qual deve ser o papel da escola?
R.: A infância e adolescência são fases de formação de hábitos e identidade. Sendo assim, o grupo de amigos tem extrema importância, pois a criança precisa do outro para se reconhecer e então a opinião do grupo conta muito. A criança precisa se sentir incluída e pertencente e hoje, na sociedade de consumo em que vivemos, a inclusão social passa pela posse de objetos. Por isso, pais e escola devem estar atentos para esse fato e mediar a relação que as crianças têm estabelecido com o consumo para que formem sua identidade baseadas no que são e não no que têm. Pais e educadores precisam mostrar que todos têm algo de interessante em sua personalidade que não passa por objetos…
Mobilizadores Coep – Na sua avaliação, a publicidade dirigida ao público infantil deve ser proibida ou apenas regulamentada? Por quê?
R.: De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, toda publicidade que se aproveite da vulnerabilidade infantil pode ser considerada abusiva, e portanto, ilegal. Estudos apontam que até por volta dos 8 anos, as crianças não conseguem diferenciar a publicidade da programação, e somente por volta dos 12 anos, todas conseguem compreender que a publicidade foi feita para vender alguma coisa. Por isso, no nosso entendimento, toda publicidade deveria ser direcionada exclusivamente para quem realmente pode compreender a mensagem e saber se existe a necessidade daquele produto ou serviço ser consumido, ou seja, o público adulto.
Mobilizadores Coep – Qual a relação entre publicidade e obesidade infantil? Existe algum projeto relacionado ao tema por parte da Anvisa?
R.: A publicidade é um fator preponderante para o aumento dos índices de obesidade, especialmente na infância. Sabemos que a questão da obesidade é multifatorial – sendo relevantes, dentre outros elementos, questões de ordem genética, os hábitos alimentares, a intensidade da atividade física e a educação alimentar. Como já foi comprovado no mundo inteiro, a publicidade também é um desses fatores, e está entre os mais importantes. A publicidade que fala diretamente com as crianças geralmente apresenta alimentos que possuem altos teores de gorduras, açúcar e sódio, além de baixo valor nutricional. Hoje, quase 90% da publicidade de alimentos voltada ao público infantil são de produtos não saudáveis. Na grande maioria dos casos, busca chamar a atenção da criança através de personagens infantis ou da distribuição gratuita de brindes. Isso tudo está diretamente relacionado ao aumento dos índices de obesidade entre as crianças – atualmente 1 em cada 3 crianças brasileiras já está com sobrepeso, e 15% delas estão efetivamente obesas, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (POF/IBGE).
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2006, abriu a Consulta Pública nº 71, para discutir a elaboração de um Regulamento Técnico relativo à publicidade de produtos alimentares de baixo valor nutritivo e com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e/ou sódio. Após 4 anos de debates entre todos os atores envolvidos (governo, sociedade civil, indústria) foi publicada a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 24*1, em 29/6/2010, que não contemplou todo um capítulo relativo à proteção das crianças, mas que trouxe regras específicas para anunciar essas classes de produtos, inclusive com mensagens de alerta à população sobre os riscos que apresentam. Diversas entidades representativas das indústrias de alimentos ingressaram com ações judiciais questionando a Resolução da Anvisa, por entender que não seria competência do órgão regular a publicidade de alimentos, e o tema está, portanto, sendo debatido no Poder Judiciário.
Mais detalhes em: http://biblioteca.alana.org.br/biblioteca/CriancaConsumo/AcaoJuridica2.aspx?v=1&id=55
Mobilizadores Coep – Você poderia citar como outros países lidam ou lidaram com a questão do consumismo infantil? Como está o Brasil nesta questão?
R.: A publicidade dirigida ao público infantil já foi regulamentada em diversos países do mundo, justamente pela preocupação com suas conseqüências na vida das crianças.
Na publicação “Por que a publicidade faz mal para as crianças” há um resumo sobre como a questão é tratada em outros países.
O Brasil infelizmente está bastante atrasado nesse tema, apesar de o Código de Defesa do Consumidor deixar clara a abusividade da publicidade infantil. Existe um Projeto de Lei (5921/2001, proposto pelo deputado Luiz Carlos Hauly) tramitando há quase 11 anos no Congresso Nacional, que visa regular a publicidade dirigida a crianças. No entanto, a demora em sua aprovação continua deixando nossas crianças desprotegidas.
Mobilizadores Coep – Como o governo e Poder Legislativo devem lidar com a questão?
R.: De acordo com a Constituição Federal, a responsabilidade em proteger a infância é compartilhada entre família, Estado e sociedade. Para que tenhamos mudanças efetivas é necessário um esforço conjunto destes atores. Cabe ao Estado criar políticas públicas que realmente garantam que nossas crianças possam exercer plenamente seu direito de ser criança, sem a intromissão dos apelos de mercado. Nesse sentido, o Poder Legislativo tem muito a contribuir. Há inúmeros projetos de lei sobre o tema tramitando no Congresso Nacional; é preciso agora que eles sejam aprovados e implementados.
Mobilizadores Coep – Qual é a importância do tempo livre para as crianças? O que é preciso fazer para educar para a cidadania e não para o consumo? A educação para o consumo e para a alimentação saudável deveria fazer parte do currículo escolar?
R.: É importante que a criança tenha contato não só com outras crianças, mas também com o meio ambiente. Fazer com que a criança brinque na rua e deixe de lado seu brinquedo eletrônico é uma atitude sustentável por que faz com que a criança esteja muito mais em contato com o ambiente em que ela vive. Crianças precisam brincar, pois essa é sua linguagem. Brincando elas se socializam e aprendem sobre o mundo que as cerca, por isso é importante também que brinquem na rua – espaço de exercício de cidadania.
A educação para cidadania e não para o consumo é um dever nos dias de hoje onde a lógica consumista impera. Sendo assim, o tema do consumo consciente deveria fazer parte do currículo escolar como tema transversal nas escolas. Não adianta nada as crianças aprenderem na educação ambiental sobre reciclagem e reutilização se não pensarem em redução do consumo. A escola tem o importante papel de formação de valores e preparação para o exercício da cidadania.
As escolas devem aproveitar o convívio diário com as crianças para fortalecê-las e contribuir para a formação de agentes autônomos, criativos e críticos. Levar o debate sobre consumo e seus impactos para o ambiente escolar é imprescindível no processo de formação das crianças. A educação para o consumo, nesse sentido, deve ser ampla e centrada na reflexão.
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*1 – Resolução de Diretoria Colegiada: Trata de fins normativos, de intervenção ou de alteração do Regimento Interno da Anvisa, bem como para detalhamento de área de ação ou normas de organização de cada área interna da Agência.
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Entrevista para o Eixo Participação, Direitos e Cidadania
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.
Excelente entrevista, o conteudo é de uma reflexão p/ pais, educadores e toda sociedade comprometida pelo bem estar de nossa crianças.