O que faz o Ministério Público, como pode ser acionado e qual a sua relação com a democracia participativa. É isto que comenta nesta entrevista o presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), José Carlos Cosenzo. Ele conta como a instituição foi criada, detalha o funcionamento das muitas divisões do órgão e revela como os direitos difusos são o foco de atuação do MP.
Mobilizadores COEP ? De modo resumido, qual o senhor diria que é a função do Ministério Público na garantia da democracia?
R. Antes da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público (MP) era conhecido como a única repartição pública do mundo composta por uma só pessoa. A partir dali, passou a atuar na defesa dos direitos difusos e coletivos. Os difusos são aqueles em que não se consegue determinar um beneficiário [meio ambiente, segurança pública etc]. Um exemplo de defesa deste tipo de direito: pode-se entrar com uma ação contra a municipalidade para que ela evite a poluição, exigindo que as empresas só joguem na atmosfera CO2 até um dado limite. Outro exemplo: se a empresa de água coloca uma tarifa abusiva, o MP entra com ação que vai favorecer todo mundo ? rico, pobre, todos que forem consumidores. Já os direitos coletivos são aqueles que se referem a grupos específicos, como nas ações de defesa de direito do consumidor. Por exemplo: 50 pessoas compraram um imóvel e a empresa ?deu cano?. Então entra-se com uma única ação que, em vez de atender direito de apenas um, vai atender o direito daquela coletividade. No caso, o grupo de 50 pessoas.
Foi incluído na Carta Magna a grave função a ser exercida pelo Ministério Público: ?da defesa do regime democrático?. Surge do texto a legitimidade para fiscalizar a conduta dos agentes políticos e das próprias eleições, como forma de exigir o equilíbrio de forças, a transparência e o controle dos gastos em campanhas e no desenvolvimento do mandato. A democracia tem várias interpretações doutrinárias, mas uma das melhores é aquela que a define como ?regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo controle da autoridade?.
Portanto, a missão institucional do Ministério Público é utilizar todas as ferramentas jurídicas no sentido de exigir o cumprimento da vontade popular, a mais legítima de todas.
Mobilizadores COEP ? Há divisões: Ministério Público Federal, do Trabalho etc., certo? Quantos “MPs” existem e como se relacionam?
R. O Ministério Público tem como princípios institucionais a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Hoje, não há mais dúvida de que a instituição tem caráter nacional. Todavia, na área de atribuição de matérias quanto à atuação, há um fracionamento para melhor desenvolvimento de suas atividades. O Ministério Público brasileiro abrange o Ministério Público da União, que por sua vez compreende o Ministério Público Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios, e os Ministérios Públicos dos Estados. Cada um tem seu chefe e, enquanto o MP Federal cuida das questões relativas à União, em cada estado da Federação há uma instituição autônoma, inclusive para elaborar e executar seu orçamento, realizar concursos de ingresso, enfim, desenvolver suas atividades com absoluta independência.
Esses diferentes MPs citados acima são as unidades administrativas dos MPs. Porém, existem também as divisões (dentro dos MPs estaduais, do MP Federal, do MP Militar e do MP do Trabalho) por área de atuação: meio ambiente, infância e juventude, defesa da pessoa com deficiência. Isso se dá em função do princípio da especialização. Busca-se profissionalizar o agente político ou membro do MP para ter uma especialização em determinada área. Como acontece com os médicos: se temos dor de garganta, vamos ao otorrinolaringologista; se quebramos o pé, vamos no ortopedista. E daí por diante.
Existe um MP específico para Trabalho, pois esta é uma área social específica. Aplica-se à magistratura do trabalho, que tem um organograma totalmente dela e é uma divisão de ordem constitucional [a própria Constituição ?divide? as leis gerais das leis do trabalho]. O mesmo acontece com a área militar, que também tem um MP específico por ter leis específicas. Ou seja, os promotores destes MPs têm a competência de atuar somente nas áreas a que dizem respeito.
Os princípios da unidade e indivisibilidade [do MP] fazem com que um membro possa ser substituído por outro no processo judicial sem causar nulidade ou prejuízos e, nos recursos [nos processos judiciais], é garantida a continuidade da sustentação pelo Procurador que atua em Superior Instância. Hoje, há uma maior integração entre as unidades para ajuizamento de ações conjuntas com o mesmo objetivo, como na defesa do consumidor, meio ambiente, patrimônio público etc.
Mobilizadores COEP – Quem integra o MP e quais as funções de cada um?
R. O Ministério Público é uma instituição com pouca hierarquia. Há o procurador-geral de Justiça e os demais profissionais, os promotores, estão no mesmo patamar. A grande vantagem é a independência funcional: se um promotor entender que determinado assunto não é caso para denúncia, o procurador-geral não tem como obrigar. Pode, no máximo, passar para outro promotor. Além disso, os promotores que atuam nas ações podem ser facilmente substituídos sem prejuízo para a ação.
Mobilizadores COEP – O que é uma ação civil pública e quando deve ser impetrada? Quando é melhor procurar o MP? Por quê?
R. E uma ação ajuizada pelo Ministério Público para proteger interesses difusos e coletivos, quando eles são lesados. O MP faz um inquérito civil a partir de observações próprias ou denúncias encaminhadas a ele. Como há as áreas especializadas nos MPs, normalmente os promotores dessas áreas já têm os canais que levam denúncias a eles.
A ação civil pública pode ser iniciada de duas formas: ajuizada pelo MP ou por entidades legalmente constituídas como pessoas jurídicas, como ONGs. Por exemplo: uma organização que represente os interesses das pessoas que compraram imóvel em um loteamento fraudulento, como aquele já citado no início.
Normalmente, as pessoas preferem deixar para o Ministério Público iniciar as ações por dois motivos fortes: a instituição tem mais estrutura e tem credibilidade da sociedade e, com isso, os beneficiários da ação não têm custos com advogados.
Mobilizadores COEP – O que é preciso fazer para acionar o Ministério Público? E como proceder depois de aceita a denúncia? É possível fazer denúncia pela Internet?
R. O processo é absolutamente informal. A pessoa procura o escritório do MP de sua cidade, o promotor recebe o cidadão e explica se a denúncia tem sentido ou não. É bom levar o maior número possível de provas. Muitas vezes, as pessoas chegam sem documentos que comprovem qualquer coisa. Nesses casos, o MP tenta providenciar.
Depois que o MP aceita uma denúncia, o processo começa. O réu é citado, ouvem-se as testemunhas e depois o réu. Muitas vezes, as coisas se resolvem apenas no inquérito civil, sem precisar chegar a uma ação judicial. O MP cita [intima para comparecer] a outra parte, dando um prazo para ela resolver o problema sob pena de sofrer ação na Justiça. Isto tem dado mais resultados que as ações. As partes assinam um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), onde a parte denunciada se compromete a resolver o problema.
A pessoa pode acompanhar seja integrando o processo como assistente, seja consultando a tramitação pela Internet. Hoje em dia, a maioria dos MPs coloca on-line a tramitação dos processos. Para consultar o Ministério Público da União, é só acessar www.mpf.gov.br. Para acessar os sites dos MPs de cada estado, basta usar ?www.mp.? seguido da sigla do estado e depois ?.gov.br?. Ou seja, para entrar no site do MP de São Paulo, por exemplo, basta ir em www.mp.sp.gov.br.
Sobre denúncias pela Internet, isso já está acontecendo em alguns estados. Estamos caminhando para que os processos virtuais se tornem uma realidade. Com o tempo chegaremos ao processo sem papel. É o MP que está atuando, e não o promotor isoladamente.
Mobilizadores COEP ? Qualquer pessoa pode acionar o Ministério Público? Em que ocasiões?
R. O Ministério Público tem sua conformação institucional ditada pela vontade popular. Ao elaborar a Carta de 1988, a mais republicana e humanista de nossa história, a intenção foi criar uma instituição suficientemente forte e independente para fazer atuar os direitos individuais, coletivos e principalmente os sociais, com os quais o povo foi contemplado. O Ministério Público é o retrato dessa vontade popular. Por isso, como legítimo guardião da sociedade, suas portas estão sempre escancaradas para que a pessoa mais humilde possa reivindicar a proteção de seus direitos. Basta que a pessoa tenha seus direitos lesados, seja no âmbito do consumidor, meio ambiente, da defesa da pessoa com deficiência, infância e juventude, enfim, todos aqueles que a Constituição Federal lhe confere.
Imagine que uma pessoa tem uma deficiência física, e no seu bairro as calçadas são esburacadas e não dão acesso adequado para o cadeirante. É o MP quem obriga o poder público a atuar. É ele quem faz cessar os danos ao meio ambiente. É ele quem busca o controle dos atos da administração e principalmente, de forma exclusiva, detém a ação penal pública para processar os autores de infrações penais. Assim, basta que a pessoa se dirija ao Ministério Público que será então recebida por um Promotor de Justiça.
Mobilizadores COEP ? Então, questões como falta de vaga em creches e/ou escolas públicas, falta de acesso a serviços como água, luz, transporte, calçamento, impedimento de internação e/ou operação em hospitais públicos são casos para o MP, não é isso? Que tipo provas podem ser apresentadas nesses casos?
R. Sim, todos esses são casos em que se pode acionar o Ministério Público, que toma as providências e pede para a parte se manifestar. Por exemplo: se a pessoa vai ao centro público de saúde e não encontra um remédio que deveria estar disponível para livre distribuição no local, o órgão notifica [comunica oficialmente] o secretário de Saúde para que venha a cumprir, sob pena de ajuizamento de ação judicial. As pessoas não podem acionar o MP para proteger direitos individuais ou assuntos particulares. O Ministério Público é rigorosamente fiscal da Justiça e tutela os direitos indisponíveis ? ou seja, aqueles dos quais não podemos abrir mão. Por exemplo: fornecimento de serviço de transporte público.
Mobilizadores COEP ? O Ministério Público pode ser um instrumento da democracia participativa? Como?
R. A democracia participativa é uma evolução do regime em que se exigem efetivos mecanismos de controle da sociedade civil sob a administração pública, onde o cidadão não se limita ao papel de votar. Pelo contrário: participa do debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação, em acolhimento aos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e da justiça social, para uma lógica reordenação do poder político tradicional.
O Ministério Público tem um planejamento estratégico, com participação plena da sociedade, que identifica os pontos mais frágeis de proteção e as medidas mais efetivas a serem desenvolvidas. Tais pontos variam de acordo com o estado ? alguns são mais complexos que outros. No Amapá ou em Roraima, por exemplo, o ponto mais frágil é a saúde pública. Em um bairro distante de São Paulo, por outro lado, a maior necessidade é acabar com a violência ou prover melhor transporte público.
Até as ações civis públicas ajuizadas na defesa dos direitos difusos e coletivos têm intensa participação da sociedade. O planejamento estratégico citado envolve o máximo possível de pessoas, buscando ouvir a sociedade para que ela indique em quais problemas o MP tem que atuar. Fazemos isso através de audiências públicas, comunicamos à imprensa, buscamos associações comunitárias de bairros etc. Essas audiências públicas são muito importantes, pois é ali que se vê o desmando do poder público.
A nossa instituição, com os poderes recebidos na Carta de 1988, deve ser o ?longa manus? [do latim, mão longa, ou seja, a extensão do poder da Justiça ou, também, o braço longo da lei] da sociedade, para instrumentalizar a democracia participativa. Pois, além de atuação propositiva, podemos buscar as correções judiciais e o reordenamento da política nociva, evidentemente sem interferir na transparência dos atos legítimos praticados pelos cidadãos na escolha de seus representantes nos poderes Legislativo e Executivo. No que se refere à correção judicial, por exemplo, podemos ajuizar uma ação para perda de mandato de um governante, ou seja, para corrigir uma administração. Um exemplo muito comum é o seguinte: o governante decide construir um viaduto. Mas, se for verificado um desvio de finalidade (exemplo: não passa rio, nem tem trânsito naquele local e o viaduto serviria apenas para fomentar um ganho para algumas pessoas), o Ministério Público pode entrar com uma ação.
Mas é importante ressaltar que o MP pode fazer isso tudo com algumas restrições. Não podemos interferir na administração quando esta é legítima. Não podemos probir o prefeito de fazer uma praça, ainda que não dê grande resultado para a sociedade. É preciso respeitar os outros poderes. O poder público só pode fazer o que a lei autoriza (ao contrário do ente privado, que pode fazer o que quiser, só não pode fazer o que a lei proíbe).
Mobilizadores COEP ? As pessoas fazem uso a contento dessas possibilidades? Se não fazem, por que o senhor acha que isso ocorre?
R. É necessário dizer que hoje a população brasileira tem uma perfeita consciência da atuação do Ministério Público, como órgão maior e mais respeitado na defesa da sociedade. Antigamente, as pessoas batiam às nossas portas visando o resguardo de direitos individuais, como créditos trabalhistas, direito previdenciário e até patrimonial de pequena monta. Com o crescimento da atuação coletiva e difusa, é mais fácil acolher os interesses de uma parcela muito grande [da população]. Por exemplo: se a municipalidade aumenta de forma ilegal a taxa de fornecimento de energia, ou água, através de uma ação civil pública é possível se fazer a correção difusa dos direitos. Quando há agressão ao patrimônio, a primeira porta que as pessoas batem é a do MP. É assim com todos dos demais.
Aliado à nossa atuação, é perfeitamente possível dizer que há uma consciência maior do povo na defesa de seus direitos e no combate à corrupção e ao dano ao patrimônio público. Outra questão importante é o trabalho educacional feito atualmente, mostrando às crianças a nocividade dos desvios de verbas públicas, que leva para a conta dos corruptos o dinheiro que deveria ser aplicado em saúde, segurança, lazer, educação…
É formidável, ainda, registrar o trabalho magnífico desenvolvido pela imprensa livre, que possibilita influenciar as pessoas a buscar o ideal comum de cuidar dos bens públicos e dos direitos sociais.
Mobilizadores COEP ? O que é a Conamp e que ações ela realiza?
R. A Conamp – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – é a entidade de classe dos membros do Ministério Público brasileiro, criada inicialmente para buscar mecanismos legais de seus integrantes construírem uma carreira independente.
A estrutura que o MP ostenta hoje é monumental se comparada a de uns anos antes. Os membros do MP eram nomeados e demitidos ao sabor do momento político, pois não tinham qualquer garantia. Todo o trabalho desenvolvido foi com base nos anseios da sociedade, repetimos, que pretendia uma instituição forte, suficientemente forte para enfrentar o próprio Estado. Deixamos de defender o Estado para defender o cidadão. As ideias do povo e dos idealizadores do nosso capítulo na Carta de 1988 somente foram acolhidas pelos deputados constituintes graças a um trabalho forte e presente da Conamp e demais entidades de classe dos Estados.
Talvez, o que mais nos dá a sensação de estarmos aperfeiçoando a nossa atuação é o fato de que, a cada dia, tenhamos que lutar no Congresso Nacional para preservar as ferramentas que nos foram colocadas à disposição. Por isso, sempre procuramos evitar o equívoco da discussão localizada, fomentada por quem não conhece a instituição – ou a conhece até demais -, para enfraquecê-la, que é a esfarrapada desculpa de excesso de poder em nossas mãos. Não admitimos sequer discutir se o MP tem poucos ou muitos poderes, mas nosso objetivo em tais debates é saber se o MP tem os poderes necessários para fazer atuar em juízo os direitos postos em favor da sociedade.
Não buscamos o fortalecimento da instituição como corporativismo. O que pretendemos é dotá-la de mecanismos jurídicos e independência para defender a sociedade, destinatária final de nossa atuação. Entretanto, nossa atuação causa irritação aos infratores da lei e defensores de interesses localizados, cuja retaliação é imediata, no sentido de tentar nos responsabilizar pessoalmente, pela busca da lei da mordaça, pela proibição de investigar e outros verdadeiros atentados.
Para o combate a tão nocivas ações, a classe e a instituição devem contar com uma entidade de classe forte, pois temos hoje em tramitação no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal aproximadamente 1.200 proposições, que, de uma maneira ou de outra, vão acarretar prejuízos à atuação do Ministério Público. Nosso maior conforto é contar com a sólida aliança da sociedade.Entrevista concedida a: Maria Eduarda MattarEdição: Eliane Araújo
Ministério Publico é órgao fiscalizador, é um poder independente, pena que sua atuação é muito mais por meio de denuncias, poderia ser muito mais atuante em beneficio da comunidade se deixasse de se entrometer no executivo.
Excelente! Uma ótima oportunidade de se conhecer , de uma forma simples, em linguagem acesível ao leigo, a função , como atua e a forma de acesso do cidadão ao Ministério Público. Parabéns!