Pesquisador do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG), da Coppe/UFRJ, o professor Neilton Fidelis comenta nesta entrevista o que o Brasil vem fazendo para combater as mudanças climáticas e como está o cenário internacional de preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Clima, a ser realizada na Dinamarca, em dezembro. Ele explica também como o fenômeno vai afetar prioritariamente as populações de baixa renda e revela que ações individuais, não resolvem isoladamente o problema. ?As mudanças climáticas são fruto de um processo de produção e uso de coisas?, ensina.
Mobilizadores COEP – Como definir o conceito de mudanças climáticas e quais são os principais fatores associados a ele nos dias de hoje?
R.: O efeito estufa é um fenômeno natural, sem o qual a temperatura da Terra seria muitíssimo fria e talvez impedisse a existência humana. Com ele, a energia que entra na Terra em parte é retida e, em parte, volta para o espaço. Dessa forma, a temperatura média natural permitiu a sobrevivência humana ao longo do tempo. O problema é que, depois da Revolução Industrial [processo de modernização da produção que se expandiu pelo mundo no século XIX], os homens intensificaram a quantidade de emissão de gases que compõem o efeito estufa. Com isso, a energia entra, e uma parte, que naturalmente retornaria, fica presa na atmosfera da Terra, aquecendo o planeta.
Resumindo, o que chamamos de mudanças climáticas? O aumento médio da temperatura do planeta, advindo da intensificação do efeito estufa. Este é o conceito mais fundamental. E isso acontece porque o homem começou a emitir mais gases que aumentam o efeito estufa, a partir da Revolução Industrial. Setenta e cinco por cento do que intensifica o efeito estufa vem da produção de energia, que, desde a Revolução Industrial, vem sendo obtida a partir de derivados de combustíveis fósseis – óleo, carvão, gás natural. Um outro fator [de agravamento das condições climáticas] vem do uso da terra: pecuária, desmatamento, queimadas. Mas o grande peso mesmo está na produção de energia.
Mobilizadores COEP – Como o Brasil está inserido no esforço mundial de combate às mudanças climáticas? Quais são seus erros e acertos?
R.: O Brasil está bem no contexto internacional. Metade da produção de energia brasileira vem de recursos renováveis. Para se ter uma ideia, a Europa está tentando chegar a 10% [de energia renovável]. O grande problema brasileiro para a mudança climática é o uso da terra. Principalmente o desmatamento da floresta tropical, a Amazônia: 75% das nossas emissões de gases do efeito estufa vêm do desmatamento. O Brasil não é o vilão, mas o nosso calcanhar de aquiles é o desmatamento.
Em termos de acertos, o Brasil tem tentado. Acertou quando aumentou a participação de fontes renováveis na sua produção de energia, a exemplo da biomassa, do álcool para transporte, da hidreletricidade etc. Nisso, o Brasil está certo e começou a atuar muito antes de essa questão das mudanças climáticas ficar conhecida. Temos uma matriz limpa. O que não podemos fazer é sujá-la. Somos um país com uma grande demanda reprimida de energia. Sob o conceito do desenvolvimento convencional, vamos precisar de mais energia e, assim, vamos ter que ver de onde tirar. Um sinal vermelho aceso é: “de que forma vamos ampliar nosso parque produtor de energia, que neste momento é limpo??. Isso é uma das grandes questões sob o ponto de vista da tecnologia.
Sob o ponto de vista de ação, o governo criou um Plano Nacional sobre Mudanças do Clima [lançado em dezembro de 2008], cuja ideia é exatamente adotar ações que venham a reduzir, mitigar os gases de efeito estufa que são lançados. Então, uma série de ações está sendo feita. Ao mesmo tempo em que precisamos reduzir as emissões, temos uma dívida social neste país muito grande, que evidentemente vai fazer emitirmos mais.
Mobilizadores COEP – O que foi determinante para as conquistas? De que forma a mobilização e a participação social contribuíram para esse processo?
R.: Um determinante é que o mundo inteiro tem os olhos voltados para o Brasil, para a Amazônia. Essa nossa fragilidade de aumento de emissões por desmatamento levou o Brasil ao centro das evidências. Por isso, o Brasil, que já vinha adotando energias alternativas, tem sido obrigado também a tomar medidas anti-desmatamento.
Nosso país, inclusive, sempre foi muito importante nas negociações internacionais. Algumas tomadas de decisões no âmbito da Convenção do Clima tiveram muita participação brasileira. O Mecanismo de Desenvolvimento Brasileiro [adotado em 1997, no Protocolo de Kyoto, permite o comércio de créditos de carbono], por exemplo, nasce derivado de uma proposta brasileira. O Brasil sempre foi muito atuante na Convenção do Clima. Porque o mundo também tem um olho muito forte voltado para nós.
Mobilizadores COEP – O que se pode esperar em termos de decisão e resultados práticos da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a ser realizada em dezembro, na Dinamarca?
R.: Vai ser complicado. O centro da disputa ali vai ser “como caminhar daqui pra frente?”. Muitos dos objetivos que foram traçados pela Convenção do Clima e pelo Protocolo de Kyoto [acordo firmado em 1997 como espécie de “adendo” à Convenção do Clima] não foram alcançados. Há uma pressão internacional muito forte sobre Brasil, China, Índia e Rússia para que esses quatro países adotem metas [de redução de emissões de gases de efeito estufa], coisa que o Brasil rejeita. O problema é que somos um país que não está no anexo 1 da Convenção [no anexo 1 da Convenção do Clima estão os países desenvolvidos que, justamente por isso, são os que historicamente têm mais responsabilidade pela emissão de gases de efeito estufa], temos uma dívida social grande e, para consertar isso, vamos precisar emitir. Em Copenhagen, o foco de disputa será: como caminhar para que de fato as metas dos países do anexo 1 – ou seja, aqueles que têm obrigação de reduzir emissões segundo o Protocolo de Kyoto ? sejam de fato colocadas em prática, e como criar mecanismos para que países como Brasil, Índia e China também adotem comportamentos que levem a uma redução de emissões? E essa disputa vai se dar em um cenário complicado de recessão econômica no mundo.
Em junho, aconteceu em Bonn, Alemanha, uma reunião preparatória para Copenhagen, em que os países começaram a apresentar suas pretensões para a conferência. Mas ainda há muita coisa para se discutir até lá. A posição americana vai ser fundamental. Na verdade, vai estar em discussão o segundo período do Protocolo de Kyoto, ou seja, as novas metas do Protocolo. Vão se definir novos arranjos para isso. O segundo período de Kyoto (ou seja, as novas metas) a rigor entraria em vigor em 2012. Copenhagen já seria o momento de definir as novas regras, e não tem nada pronto. O problema é que temos apenas dois anos para que os países retomem as negociações e ratifiquem o que ficar decidido no novo acordo. Em resumo, isso já teria que estar sendo discutido agora.
Mobilizadores COEP – Quais ações concretas o Brasil deveria tomar até Copenhagen?
R.: O Brasil já está tomando. O país lançou o Plano Nacional sobre Mudanças Climáticas, em dezembro de 2008, que define metas internas de desmatamento, ações de aumento de eficiência energética e uma série de coisas. Independentemente do que ficar decidido em Copenhagen, o Plano define ações que o Brasil vai realizar, de forma voluntária, já levando a um caminho de redução e de mitigação dos gases. O Brasil vem fazendo esse dever de casa.
Mobilizadores COEP – Quais são os maiores desafios para a implementação do Plano?
R.: A questão agora é averiguar se ele está sendo executado. Em caso positivo, quais são os órgãos responsáveis? Ou seja, o primeiro desafio é o da própria federação, a interlocução com os estados. É importante eles também fazerem seus planos estaduais e que esse pensamento se unifique. É um aprendizado. O desafio do Plano é ver como ajustamos alguns interesses que são, muitas vezes, contraditórios. Somos um país que precisa de algumas ações de desenvolvimento e que, ao mesmo tempo, é muito observado pelo prisma de como avança em relação [ao uso de] recursos naturais. O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda tem uma quantidade significativa de recursos naturais. A dificuldade do Plano é equacionar esses diversos olhares sobre como avançar no desenvolvimento. E é fundamental que os estados adotem seus planos estaduais e que eles se articulem com o Plano Nacional. Esse é um dos grandes desafios. E, dentro do Plano Nacional, o importante é fazer essa articulação entre os diversos interesses que estão na pauta.
O Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas é muito interessante porque tem diversos atores, às vezes antagônicos. Tem ONG e setor produtivo e, às vezes, os interesses são diferentes e tentamos debater. Esse também é um desafio do Plano: obter consenso em relação a esses interesses.
Mobilizadores COEP – E como pode ser fortalecida a participação social na implementação e no controle da execução do Plano?
R.: Isso é o grande desafio da democracia participativa. Quando temos o Congresso, os gestores públicos etc., nós de certa forma creditamos a eles a execução. A primeira coisa que é importantíssima na sociedade em termos de mobilização é ter o conhecimento, desnudado de qualquer pré-conceito ou juízo de valor. É ter o conhecimento do que é o problema. Nesse ponto, organizações como o COEP têm uma missão muito grande que é publicizar para a população um conhecimento que seja o mais imparcial possível. Os meios de comunicação passam informações sobre mudanças climáticas que às vezes não condizem com a realidade. O desafio para a sociedade é, primeiro, ter a ciência da mudança climática, ou seja, entender o que é. A partir daí, entender quais são as causas e ações a serem feitas.
Fico preocupado quando nós individualizamos as ações. As ações individuais são importantíssimas, mas só têm peso quando são coletivizadas. Para isso, o ente é o estado, é o município. Coletivizando, as ações passam a ter um peso na sociedade.
Mobilizadores COEP – Tendo em vista que o COEP é uma Rede Nacional de Mobilização Social que realiza atividades de articulação, capacitação, mobilização e construção de acervos, quais questões, no campo do mudanças climáticas, o senhor considera mais relevantes para abordarmos no período de 2009/2010?
R.: Primeiro, levar para as pessoas assistidas por seus projetos informação de qualidade, desprovida de qualquer juízo de valor. Levar para as comunidades uma leitura das mudanças climáticas sob o ponto de vista da ciência social, da economia, da política (no sentido belo da palavra política). Porque, com a sociedade se apropriando desse conhecimento, aí sim ela pode adotar atitudes coletivas, baseadas em algo mais realista. Por exemplo: está errado uma revista colocar na capa uma imagem da Avenida Atlântica [avenida à beira-mar em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro] toda inundada de água, pois isso não vai acontecer nunca. Em compensação, é na Baixada Fluminense [região com maioria de pessoas de baixa renda na periferia do Rio de Janeiro] que se está mais vulnerável. É isso que uma organização como o COEP e outras têm que fazer: divulgar informações sobre mudanças climáticas e seus efeitos, entendendo as nossas vulnerabilidades.
Mobilizadores COEP – Como as mudanças climáticas vão afetar as comunidades de baixa renda? E como elas, muitas vezes alijadas das grandes discussões nacionais, podem agir para ajudar a combater o fenômeno?
R.: A mudança climática não é algo dissociado na sociedade, não é um asteroide que vai cair na Terra. Ela se compõe de todas as nossas contradições. Hoje, com ou sem mudança climática, essas comunidades já sentem os efeitos de variabilidade climática, como enchente, seca, grandes chuvas que provocam deslizamentos de terra etc. Sempre os mais pobres são os mais vulneráveis e têm uma capacidade de adaptação muito menor. Precisamos ter uma atenção maior sobre essas comunidades. Porque elas não têm a ferramenta para se adaptar mais facilmente. Vamos imaginar que tivéssemos uma realidade sem mudanças climáticas: essas comunidades já precisariam de uma atenção maior. Porque elas ocupam as áreas mais pobres da cidade, ou seja, as menos assistidas com água, luz, escola, saneamento. E quando acontece um evento extremo, ocasionado ou não por mudança climática, fica a tragédia nessas comunidades. O COEP tem uma função importantíssima nisso. Estamos trabalhando para essas comunidades saberem que, além de todas as vulnerabilidades e dificuldades que já têm, as mudanças climáticas vão colocar um elemento a mais de dificuldade na sua sobrevivência.
Mobilizadores COEP – Neste contexto, o que ainda é preciso para consolidar e incorporar no dia-a-dia dos cidadãos o combate às mudanças climáticas no Brasil?
R.: Quando as pessoas entendem o que são as mudanças climáticas, quais as suas origens, vão rapidamente entender que são fruto de um processo coletivo de produção e uso de coisas. Não é decorrente da vida individual de cada um. Se eu não ando de carro, não tenho luz etc., não emito nada e, teoricamente, não contribuo para o agravamento das mudanças climáticas. Sob este prisma, as pessoas de baixa renda já contribuem [para evitar o problema] devido as suas próprias condições de vida. Fica muito mais difícil dar a essas pessoas responsabilidade de agir contra as mudanças climáticas. Por outro lado, quando tomam consciência disso, quando entendem melhor seus problemas, fica muito mais fácil terem uma interlocução com os seus gestores públicos.
Então o crucial, para elas, é entender e ter interlocução com seus gestores públicos, para que as políticas públicas, quando forem pensadas, adicionem na sua estrutura a questão da mudança climática. É o transporte coletivo, a geração de energia com fonte renovável etc. Obviamente a ação individual tem valor. Mas temos que coletivizar essas ações. Essas comunidades têm que entender [o problema] para, junto com seus gestores públicos, fazerem intervenções para que as políticas públicas possam de fato absorver essas ações individuais e transformá-las em ações coletivas.
Mobilizadores COEP – E com relação a pessoas que não são de baixa renda: como elas podem incorporar o assunto no seu dia-a-dia?
R.: Passando a adotar o conceito de desenvolvimento sustentável. Mas é preciso explicar o que é este conceito: é superar uma sociedade pautada no consumo, no desperdício, onde as coisas têm valor quando são produzidas ou quando morrem, ficam obsoletas, são descartadas [gerando, assim, novas necessidades de consumo]. Até a revolução técnico-científica, era o desejo que criava o produto. Hoje, temos uma sociedade em que o produto cria seu desejo. Temos que inverter essa ordem de produção de coisas. Pois é nessa produção de coisas que intensificamos o efeito estufa, pois produzimos coisas que necessitam de uma carga energética muito grande.
Obviamente, a população pode adotar um consumo mais consciente, priorizar o transporte coletivo em detrimento do individual (a regra foi mudada na Revolução Industrial: abdicamos do transporte coletivo e adotamos o individual). É importante prestar mais atenção no próprio consumo, na forma de consumir.
Mobilizadores COEP – O que é o Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG) e quais seus objetivos?
R.: O IVIG é um instituto coordenado pelos professores Luiz Pinguelli Rosa e Marcos de Freitas. Estamos ligados a algumas áreas do pensamento que envolvem questões como energia, transformações sociais vinculadas a mudanças tecnológicas e ocupação do solo, entre outras. É um espaço aberto para a interdisciplinaridade, dentro de uma escola de engenharia, que é a Coppe/UFRJ, mas que se permite associar diversas áreas do conhecimento ligadas à energia, meio ambiente e sociedade.
Entrevista concedida a: Maria Eduarda MattarEdição: Eliane Araújo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
o conceito de desenvolvimento sustentável, vêm ganhando destaque e o que é mais importante, é que vem sendo assimilado pela população de um planeta fadado a destruição.
Considero relevante nosso trabalho, no sentido de fomentarmos políticas públicas pensadas na questão das mudança climática que estão ocorrendo e o que podemos melhorar.
Parabéns pela átéria.
Um abraço.
Mara Eneida