De acordo com a pesquisadora Emma Siliprandi, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Universidade Estadual de Campinas (Nepa/Unicamp), sem as mulheres não haveria agricultura familiar no Brasil, agricultura esta que responde pela maior parte da produção dos alimentos consumidos no país.
No entanto, apesar de as políticas de apoio à produção dirigidas às mulheres rurais terem se intensificado nos últimos anos ? como a obrigatoriedade da titularidade conjunta da terra nos assentamentos de Reforma Agrária a partir de 2003, o Pronaf-Mulher, os Programas de Documentação das Mulheres ?, ainda prevalece, no Brasil, o não reconhecimento econômico das mulheres, o que mostra como a sociedade não as enxerga em sua real importância, e apenas reconhece sua participação no mundo doméstico.
Mobilizadores COEP – Qual a importância da agricultura familiar para a garantia da segurança alimentar dos brasileiros, especialmente para comunidades de baixa renda?
R.: A participação da agricultura familiar na produção de alimentos no Brasil sempre foi importante e, nos últimos anos, com o crescimento das políticas públicas de apoio a este setor, seu crescimento tem sido ainda maior. De acordo com os últimos dados do Censo Agropecuário divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2006, a agricultura familiar brasileira é constituída por um número bastante significativo de estabelecimentos rurais: 4,3 milhões (84,4% do total de produtores agrícolas que existe no Brasil), que ocupam 24,3% da área, são responsáveis por 38% do valor bruto da produção agropecuária, por 74,4% do total das ocupações rurais, e respondem pela maior parte da produção dos principais alimentos consumidos no país (feijão, milho, hortaliças, frutas, frangos, ovos, leite e muitos outros produtos).
O fato de esses alimentos serem produzidos no país é fundamental para o abastecimento interno, para que não fiquemos sujeitos às crises internacionais de aumento da demanda e, portanto, de aumento de preços. Para a população mais pobre, mais do que a existência da produção no país, o que importa é que esses alimentos estejam disponíveis próximos às suas residências, e a preços acessíveis ? e que eles tenham renda para comprar! Por isso, também é muito importante a existência de políticas de emprego e renda. Para as famílias que vivem da agricultura, a produção para o próprio consumo é uma garantia contra oscilações de mercado e também para não dependerem totalmente da renda obtida fora da propriedade, pois podem produzir uma parte dos alimentos que consomem. A produção diversificada é ainda uma garantia contra os imprevistos, tão comuns na agricultura, como é o caso dos problemas climáticos (secas ou excesso de chuvas). Se algum produto tem problemas de colheita ou de preço, outros podem compensar. Por isso, a agricultura familiar é tão importante, pela forma como se organiza e planeja a sua produção, e por abastecer mercados locais, regionais, nacionais e mesmo internacionais.
Mobilizadores COEP – Nos últimos tempos, é possível assinalar mudanças nos modelos de produção e consumo de alimentos, em especial no meio rural? De que forma tais mudanças influenciam e/ou são influenciadas pelas relações de gênero?
R.: Nos meios urbanos, com a aceleração da entrada das mulheres nos mercados de trabalho, as mudanças na alimentação das famílias são mais evidentes. Aumentou muito o consumo de alimentos fora dos domicílios, por exemplo. A alimentação em casa também se modificou. Por conta de não haver quase nenhuma mudança na divisão de tarefas dentro de casa, e as mulheres se sentirem cada vez mais sobrecarregadas, houve uma tendência de se utilizarem produtos mais rápidos para serem preparados. A urbanização acelerada também levou a mudanças nos canais de comercialização e de abastecimento, com o crescimento dos supermercados, por exemplo. Tudo isso causou um empobrecimento na qualidade da alimentação de todos: nossos cardápios foram se homogeneizando, baseados em um número cada vez menor de ingredientes, e com uma tendência a serem cada vez mais industrializados (dependentes de produtos para aumentar o tempo de conservação, a aparência, a cor, etc.).
No meio rural ocorrem fenômenos semelhantes, ainda que por razões ligeiramente distintas. O maior acesso a eletrodomésticos e a facilidades de infraestrutura (como água encanada e energia elétrica) permitiu certo alívio da carga de trabalho das mulheres rurais com alimentação, que sempre foi muito grande. A especialização da produção, por outro lado, fez com que, em muitos casos, se abandonasse o consumo de alguns pratos e receitas tradicionais, pois muitos dos seus ingredientes deixaram de ser produzidos. Pode-se dizer que houve uma ?urbanização? dos hábitos alimentares também no campo. Um desses exemplos é o consumo de margarina, mesmo onde há produção de leite (e poderia se usar a manteiga); ou o consumo de frango congelado, comprado na cidade, contra a produção de quintal. O uso de refrigerantes em vez de suco, pão de farinha branca e macarrão industrializado, em vez daqueles que eram produzidos nas casas, etc. ? os exemplos são inúmeros. Hoje, há uma luta para resgatar-se a alimentação como um valor social e cultural no campo e na cidade, valorizando-se a diversidade alimentar e os produtos tradicionais. No entanto, essa discussão tem que ser acompanhada do enfrentamento à questão da divisão do trabalho doméstico e dos papéis de gênero, pois nem as mulheres urbanas nem as rurais estão dispostas a aceitar mais uma vez essa responsabilidade como exclusividade sua. Muitas vezes, a gente não considera o quanto o preparo da alimentação significa em termos de horas de trabalho, gastos de energia, preocupação. Não é justo que estas tarefas estejam apenas nas costas das mulheres.
Mobilizadores COEP – Há estimativas de quantas mulheres trabalham com agricultura, hoje, no Brasil? Essas mulheres são reconhecidas como produtoras rurais? Comente.
R.: Muitos estudos mostram que a pobreza e a invisibilidade continuam marcando a inserção econômica das mulheres rurais. O Censo apontava cerca de 15 milhões de mulheres vivendo no campo em 2006; dessas, uma parte significativa (quase 34%, contra 14% de homens na mesma situação) estava ocupada em atividades não-remuneradas. As mulheres rurais dedicadas ao autoconsumo eram 41%, e os homens, 7%. Estudos qualitativos indicam que embora as mulheres trabalhem em praticamente todas as tarefas da propriedade, muitas vezes não têm acesso à renda gerada por seu trabalho, o que leva a um comprometimento da sua autonomia pessoal e financeira.
A conquista de uma maior independência financeira para as mulheres rurais, assim como já alcançado em grande parte pelas mulheres urbanas, é uma das questões importantes que vem sendo colocada pelas organizações de mulheres. As mulheres participam de todas as etapas dessa produção, embora em muitos lugares se considere que apenas ?ajudem? os maridos. Elas trabalham no preparo do solo, das mudas, no plantio, nos tratos culturais, na colheita, na preparação dos produtos para a comercialização (embalagem, secagem, encaixotamento). Além disso, são responsáveis pela transformação dos produtos nas propriedades (fabricação de doces, pães, queijos, etc.). Muitas vezes elas também são as responsáveis pelas atividades extrativas (por exemplo, no coco babaçu, nas frutas tropicais) além de se ocuparem com muitas atividades de pesca e de mariscagem, que também são atividades da agricultura familiar. Além de serem responsáveis, como todas as mulheres, pelo preparo da alimentação da família.
Não existiria a agricultura familiar se não houvesse o trabalho das mulheres, e o seu envolvimento com a produção de alimentos é essencial para a continuidade da produção familiar no meio rural. O seu não reconhecimento econômico ? como pode ser visto nos dados do Censo, por exemplo ? é um espelho de como a sociedade ainda não as enxerga em sua real importância, e apenas reconhece sua participação no mundo doméstico.
Mobilizadores COEP – Homens e mulheres são igualmente contemplados por políticas públicas voltadas à produção e comercialização? Em caso negativo, por quê?
R.: Apesar dos esforços empreendidos nos últimos anos por diferentes setores governamentais para buscar incluir as mulheres como beneficiárias das políticas públicas, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas. O atendimento às mulheres ainda está muito aquém da sua necessidade, seja com relação ao crédito, ao acesso à terra, à assistência técnica, às políticas de comercialização. Isso se deve basicamente a dois fatores: por um lado, a uma cultura política tradicional, persistente no campo, que reconhece apenas o chefe de família (leia-se o homem) como sujeito de direitos da agricultura familiar, como o representante do interesse de todos os membros da família. Essa cultura tradicional é reforçada por leis, normas, e também por uma inércia da burocracia que ainda vê as mulheres como dependentes dos maridos, e não como sujeitos autônomos, que podem tomar suas próprias decisões. Em segundo lugar, há uma dificuldade concreta na organização das mulheres rurais para fazer valer seus direitos. Essas questões têm se modificado a partir de ações como as Marchas das Margaridas, as manifestações da Via Campesina e de muitos outros movimentos de base das mulheres rurais, que têm dado mais visibilidade política para as suas lutas e reivindicações, e têm contribuído para mudar o imaginário social. O mesmo vale para os jovens rurais, que dificilmente vêem suas propostas ou anseios acolhidos pelas políticas públicas.
Mobilizadores COEP – O que vem sendo feito para estimular a equidade de gênero não só nas políticas públicas voltadas à segurança alimentar, como também em políticas transversais? Quais os principais desafios neste sentido?
R.: Muitas lutas históricas do movimento feminista vêm sendo reconhecidas nos últimos anos, tais como mudanças no Código Civil brasileiro, que acabaram com absurdos jurídicos tais como o pátrio poder exclusivo dos pais sobre os filhos, a chefia do casal, e temas semelhantes. A aprovação da Lei Maria da Penha, de combate à violência contra as mulheres, em que pese sua dificuldade de implantação ? principalmente devida ao machismo do nosso sistema jurídico ? também representa um avanço muito grande para o conjunto das lutais sociais. A partir das duas últimas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, que ocorreram em 2004 e em 2007, também tivemos várias políticas públicas específicas. Como exemplo emblemático, podemos citar a titularidade da mulher no recebimento do cartão do Programa Bolsa-Família, um marco no sentido de reconhecer as mulheres como sujeitos de direitos na implantação de uma política social.
No que diz respeito ao meio rural, tivemos também vários avanços, entre os quais, a obrigatoriedade da titularidade conjunta da terra nos assentamentos de Reforma Agrária, a partir de 2003, o Pronaf-Mulher*1, o Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais (PNDTR)*2, o Programa de Apoio à Organização Produtiva das Mulheres Rurais (POPMR)*3. Ainda temos lacunas muito grandes, como é o melhoramento no acesso das mulheres ao sistema público de saúde, várias questões que dizem respeito à sexualidade, e, em particular, a questão do aborto. São dívidas históricas da sociedade brasileira para com os direitos das mulheres. Ainda vivemos uma sociedade muito machista, em que as mulheres são cotidianamente ?coisificadas? pela mídia, por um lado vendo seus corpos serem transformados em mercadorias, e, por outro, sendo incensadas no papel de hiperconsumidoras. Uma vez que não se valorizam as suas contribuições para o desenvolvimento social, tampouco se reconhecem os seus direitos enquanto cidadãs.
Mobilizadoes COEP – Num contexto mais amplo, qual a importância do empoderamento das mulheres para a erradicação da fome e da pobreza?
R.: Há pelo menos duas questões que precisam ser enfrentadas, e que estão vinculadas a essa pergunta: o reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos, e, portanto, vítimas da fome e da pobreza per se, indivíduos que devem ser respeitados na sua condição de vida ? comumente chamados de ?público-alvo? das políticas, uma expressão pouco feliz, mas que expressa o que estou querendo chamar a atenção aqui; e, por outro lado, o fato de serem potencialmente sujeitos ativos na busca de soluções para os problemas das suas comunidades. As mulheres não devem ser vistas como ?instrumentos? para que o Estado, governos ou quem quer que seja atinja seus objetivos. Devem ser consultadas, devem ser ouvidas, devem ser criados espaços em que seja possível, em conjunto com os demais membros de suas comunidades, encontrarem as soluções necessárias para mudar a situação que vivem. As mulheres, hoje, vivem realidades de muita exploração e pouco reconhecimento, o que agrava a sua situação de pobreza e miséria. No entanto, são capazes de atuar politicamente, de organizar-se, de expressar suas necessidades e desejos, e de buscar soluções, a partir de suas experiências e conhecimentos. No entanto, existem relações de poder entre homens e mulheres que as relegam a um lugar subordinado. Para mudar essas relações, é preciso apostar fortemente na organização política das próprias mulheres.
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*1 Pronaf-Mulher? Atende a mulheres agricultoras integrantes de unidades familiares de produção enquadradas no Pronaf, independentemente de sua condição civil. Concede crédito à mulher agricultora, conforme projeto técnico ou proposta simplificada.
*2 O Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais (PNDTR) visa à inclusão social das trabalhadoras rurais, seja na reforma agrária ou na agricultura familiar, uma vez que possibilita a emissão gratuita de documentos civis, trabalhistas e de acesso aos direitos previdenciários, através dos mutirões itinerantes de documentação. O programa também realiza ações educativas com objetivo de esclarecer as beneficiárias sobre o uso de documentos, bem como apresentar as políticas públicas e orientar quanto ao seu acesso.
*3 Criado em 2008, o Programa de Organização Produtiva das Mulheres Rurais (POPMR) amplia e consolida a participação econômica das mulheres e fortalece suas organizações produtivas. Entrevista do Grupo Combate à Fome e Segurança AlimentarConcedida à: Renata OlivieriEditada por: Eliane Araujo