A população em situação de rua surge a partir de processos de violência, exploração e desigualdade social, geralmente desencadeado por situações extremas de ruptura das relações familiares e afetivas. São pessoas que convivem com o preconceito e o comportamento social excludente. Ficam expostas a abusos, substâncias psicoativas, restrições alimentares e problemas de saúde. Quando chegam às ruas, sentem o quanto o Estado brasileiro não está preparado para lidar com elas.
Maria Lúcia Santos Pereira da Silva conhece de perto essa realidade. Ela viveu durante 16 anos nas ruas da Bahia. Hoje, é coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, criado há 9 anos.
Em entrevista à Rede Mobilizadores, Maria Lúcia fala sobre sua trajetória de luta, faz uma reflexão sobre as pessoas que vivem em situação de rua no Brasil, e enumera conquistas e desafios.
Rede Mobilizadores – Como foi para a senhora ir viver nas ruas?
R.: Por um lado, foi uma experiência bastante traumatizante, porque eu pude sentir de perto o preconceito da sociedade. Eu cheguei às ruas adolescente, aos 16 anos, e não é bonitinho, nem engraçado, acordar debaixo de chuva, ou acordar com os jatos de água da prefeitura, ou ser espancada por pessoas da sociedade dita normal. Tem o lado da fome, de revirar as latas de lixo para ter o que comer, isso tudo é muito traumatizante.
Por outro lado, foi também uma experiência muito interessante. Porque eu pude conhecer a população de rua, que é solidária, protetora, que não permitiu que eu fosse violentada, que me ensinou como sobreviver nas ruas. Com eles, eu tive o acolhimento que não consegui achar em minha casa e nem nos órgãos e instituições que diziam que iriam me proteger.
O que eu faço hoje, na coordenação do Movimento Nacional da População em situação de rua, é justamente um trabalho de gratidão a esse povo que me acolheu e que soube tão bem me proteger.
Mobilizadores – Quem são essas pessoas que vivem em situação de rua no Brasil?
R.: Nós somos quem não tem moradia convencional. Somos 70% negros. A população em situação de rua é formada por mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas que tiveram seus vínculos familiares interrompidos e hoje estão fragilizadas.
São os homens com mais de 40 anos que, infelizmente, alguns dizem que não estão mais propícios para o mercado de trabalho, como se não fossem mais pessoas produtivas, mesmo que estejam capacitadas e certificadas. E, se analisarmos melhor, somos justamente as pessoas que mais trabalham nos mecanismos informais e não reconhecidos.
Essas pessoas são aquelas que migram do interior, as vítimas de desmoronamentos e enchentes, pessoas com transtorno mental, e em alguns casos, pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas.
Mobilizadores – Como lidar com a sociedade que trata a população em situação de rua de forma preconceituosa e excludente?
R.: É uma grande questão. Para se ter uma ideia, não somos contabilizados pelo Censo Demográfico brasileiro. Não dá para ter a visão de quantas pessoas somos, temos apenas números aproximados. E essa contagem incerta comprova a exclusão.
Se você não é contado, você não existe. Se você não existe, não precisa de políticas públicas. Se não precisa de políticas públicas, não tem rubrica pra cuidar de você. É isso o que temos no sistema capitalista.
Precisamos de uma grande campanha de conscientização. As pessoas da sociedade dita “normal” precisam saber que nós não estamos nas ruas porque queremos. Nós somos seres humanos como qualquer outro. Nós somos cidadãos brasileiros.
Infelizmente, a sociedade, sobretudo com influência da mídia, termina traçando um perfil que não é o perfil verdadeiro. Dizem que nós somos marginais, que nós somos vagabundos, que nós somos drogados. O país vive agora essa onda do crack, mas várias pessoas que estão em situação de rua não fazem uso de substâncias psicoativas. Só que quando se fala em crack, as pessoas pensam logo em quem vive em situação de rua.
O nosso papel é quebrar esse estigma. As pessoas que estão nas ruas e que fazem uso de substâncias psicoativas podem estar lá porque não temos no país um sistema de Saúde efetivamente preocupado com elas. Não temos o fortalecimento da rede psicossocial.
Mobilizadores – A quais mais vulnerabilidades as pessoas em situação de rua estão expostas?
R.: Há inúmeros fatores e situações. Assassinatos, violência sexual, espancamentos, preconceito dentro dos equipamentos públicos. Com a Copa chegando, alguns governos municipais vão preferir o quê? A resposta é: “Tirar a sujeira das ruas”, esconder a gente em alguns espaços, e depois colocar todo mundo de volta, no mesmo local.
Há também outra questão. Os desmoronamentos e as enchentes. Com estes desastres acontecendo, para onde irão as pessoas que perderam suas casas? Vão para as ruas. E elas são marginais? Elas vão para as ruas porque desejam? Existe uma preocupação real por essas pessoas? Não existe.
Mobilizadores – Então qual é a atuação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua?
R.: Quando o Movimento entrou na minha vida, a minha luta pela população de rua, que já existia, virou uma luta política. Eu comecei a me preparar para protegê-los e defendê-los diante do poder público.
Nós conseguimos hoje levar a esperança e autoestima para diversas pessoas que estão em situação de rua. A mente da população em situação de rua modificou completamente com o Movimento, porque hoje eles procuram se capacitar para discutirem politicamente.
Muitos deles tem depressão, baixa autoestima, por estarem há muitos anos nessa situação, não acreditam mais na sua potencialidade. E é justamente aí que o Movimento atua e lhe diz: “Primeiro, você é um sujeito de direito. Segundo, não tenha vergonha da sua história de vida. Terceiro, você não está mais sozinho”.
Temos uma sede aqui na Bahia, que fica aberta todos os dias, das 7 horas da manhã até às 6 horas da tarde. Também estamos em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e no Paraná.
Fazemos desses locais um ponto de referência para a população em situação de rua, onde os escutamos e fazemos os devidos encaminhamentos.
Mobilizadores – Quais são as conquistas do Movimento junto ao Estado para garantir a participação da sociedade civil nas deliberações sobre a população em situação de rua?
R.: Ninguém pode discutir sobre população de rua sem a presença da população em situação de rua, este é um ganho muito significativo.
Nós conquistamos a Política Nacional para a População em Situação de Rua, pelo Decreto 7.053, de 2009. Participamos dos conselhos nacionais da Saúde e da Assistência Social. Conseguimos montar um Comitê Interministerial que acompanha e monitora as políticas voltadas para a população de rua. Conquistamos o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis.
Nós temos um encontro anual com a Presidência da República e temos uma abertura muito grande em diversos ministérios. Hoje somos conhecidos e reconhecidos pela nossa militância. Por exemplo, conseguimos incluir a população em situação de rua no programa Minha Casa, Minha Vida.
Conseguimos uma tipificação em toda a rede socioassistencial para a população em situação de rua, capacitações permanentes para profissionais que trabalham nesta causa, estes são alguns dos ganhos que nós tivemos até hoje.
Em tão pouco tempo – o Movimento faz 10 anos no ano que vem – é um grande ganho para nós, pessoas que eram ditas como desorganizadas, excluídas, analfabetas, e sem um mínimo de nível de organização. Nós já realizamos um primeiro congresso nacional aqui em Salvador, e estamos preparando o segundo congresso, que acontece em maio, no Paraná.
Mobilizadores: A partir destas conquistas, quais são os desafios?
R.: Um deles é o fortalecimento dos equipamentos públicos. Imagine uma pessoa que passa o dia fazendo um trabalho psicossocial, mas de noite, não tem um equipamento público socioassistencial para acolhê-lo. Esta pessoa vai para as ruas. Fica vítima da noite, do frio, sem alimento e continua um cidadão exposto e vulnerável.
Entrevista para o Eixo de Erradicação da Miséria
Concedida à: Sílvia Sousa
Editada por: Eliane Araújo