No Brasil, os agrotóxicos começam a ser utilizados mais intensamente nas década de 60 e 70, e apenas 50 anos depois o país tornou-se o maior mercado mundial desses produtos. Essa liderança no uso de venenos, que contaminam alimentos e o ambiente, é decorrência de um modelo de produção baseado em grande extensões de terras monocultoras, principalmente de soja e milho.
Nessa entrevista à Rede Mobilizadores, André Burigo, pesquisador e professor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e um dos organizadores do Dossiê Abrasco sobre Agrotóxicos, fala sobre o que levou ao crescimento do uso de agrotóxicos, aponta diversos impactos de correntes de seu indiscriminado, e aponta as diversas medidas urgentes que devem ser adotadas para que possamos reduzir o uso desses produtos.
Eles também apresenta dados que provam que a agroecologia pode produzir alimentos de qualidade muito superior e em maiores quantidades do que a agricultura convencional.
Rede Mobilizadores – Como e quando os agrotóxicos começaram a ser utilizados na agricultura mundial?
R.: Os agrotóxicos começaram a ser utilizados mais fortemente na agricultura principalmente após a Segunda Guerra Mundial. E menos de duas décadas depois, em 1962, a bióloga norte-americana Rachel Carson publicou o livro “Primavera Silenciosa”, que relata os impactos desses venenos na biodiversidade dos Estados Unidos. Nessa publicação, ela cunha o termo “biocida” (morte da vida) para designar esses produtos, e aponta uma série de evidências de como esses venenos não são seletivos e atingem toda a teia da vida, e não apenas as pragas que visam combater. Carson mostra os efeitos desses produtos sobre as populações de águias, répteis, pássaros, e também no meio ambiente.
No Brasil, os agrotóxicos começam a ser utilizados na década de 50 para 60, mas é nas décadas de 60 e 70, quando a chamada revolução verde é implementada na América Latina, que são usados mais intensamente. Durante o período da Ditadura Militar se vê a explosão do uso desses produtos no nosso país, com incentivo do Estado, que começa a importar e a implantar fábricas de agrotóxicos no país e a desenvolver um tipo de assistência técnica que induz o uso desses venenos.
Rede Mobilizadores – O que levou o Brasil a se tornar o campeão mundial no uso de agrotóxicos?
R.: Em 50 anos, o Brasil passou a ser o maior mercado mundial de agrotóxicos. E quando falamos isso, usamos como base os dados oficiais, que são muito frágeis. Os pesquisadores do tema percebem que se utilizam muito mais esses produtos do que os dados apontam, tanto pelo fato de nosso país ter uma fronteira gigantesca com os outros países da América do Sul, por onde também entram agrotóxicos contrabandeados, como por termos muito poucos dados disponíveis sobre uso de agrotóxicos.
Em 50 anos, o Brasil passou a ser o maior mercado mundial de agrotóxicos. E quando falamos isso, usamos como base os dados oficiais, que são muito frágeis.
O único sistema que reúne essas informações é do Ibama, que compila os dados que são fornecidos pelas empresas, e que, recentemente, divulgou que há problemas nesses dados, pois algumas empresas têm passado informações de forma irregular. Temos também dados que as próprias empresas divulgam quando fazem projeções de vendas e informam dados relativos à comercialização de anos anteriores.
Esse quadro revela que temos um subdimensionamento do problema em nosso país. Mesmo assim, o Brasil é, desde 2008, o maior mercado de agrotóxicos do mundo, superando os Estados Unidos.
Isso é explicado, pelo fato de que a revolução verde tem se expandido cada vez mais em nosso país, o que significa dizer que temos um tipo de agricultura baseada no monocultivo, que é inimigo da biodiversidade, porque cultiva uma única espécie em áreas muito extensas.
…temos um tipo de agricultura baseada no monocultivo, que é inimigo da biodiversidade, porque cultiva uma única espécie em áreas muito extensas.
Nos últimos 10, 15 anos a economia brasileira tem sido fortemente dependente das exportações de commodities metálicas e agrícolas, entre elas principalmente grãos, com destaque para soja e milho. Entre 1990 e 2014, a área plantada de soja, milho e cana-de-açúcar no país saltou de 28 milhões de hectares para 55,2 milhões de hectares. Nesse mesmo período, tivemos a diminuição de área plantada de alimentos, como arroz, feijão e mandioca, que são a base da alimentação do brasileiro.
As culturas de soja, milho e cana-de-açúcar não expandiram para combater a fome, mas como commodities destinadas ao comércio exterior. A indução desse tipo de agricultura é que tem levado o país a consumir cada vez mais agrotóxicos.
Tem um elemento novo da revolução verde no período recente que é a introdução de plantas transgênicas. A soja da Monsanto, a Roundup Ready (RR), entrou de forma ilegal no mercado brasileiro em 1998 e o governo permitiu a colheita. Nos anos seguintes, foi plantada e colhida novamente, sem que se regulamentassem as plantas transgênicas em nosso país. Somente em 2005, com a Lei da Biotecnologia, é que os plantios transgênicos foram regularizados.
Hoje, temos 52 variedades de plantas transgênicas aprovadas em nosso país: uma de feijão, uma de eucalipto e outras 50, de soja, milho e algodão, que foram modificadas geneticamente para receber algum tipo de agrotóxico. A expansão de lavouras de soja e de milho com plantas transgênicas levou o Brasil a saltar de quarto maior mercado de consumo de agrotóxicos para o primeiro lugar.
….estamos falando de concentração de terras, de concentração de renda, associado ao aumento do consumo de agrotóxicos e de sementes transgênicas, o que diz respeito a uma ligação entre a histórica burguesia agrária brasileira e monopólios internacionais de grandes corporações que controlam o mercado de sementes transgênicas e o mercado de agrotóxicos.
Estamos falando de aumento do uso de agrotóxicos num contexto de aumento de área de monocultivo, principalmente de grande extensão. Ou seja, estamos falando de concentração de terras, de concentração de renda, associado ao aumento do consumo de agrotóxicos e de sementes transgênicas, o que diz respeito a uma ligação entre a histórica burguesia agrária brasileira e monopólios internacionais de grandes corporações que controlam o mercado de sementes transgênicas e o mercado de agrotóxicos. Essas corporações conseguem penetrar no cenário político brasileiro e assegurar o aumento da área plantada e do uso de agrotóxicos. Portanto, não estamos falando de algo espontâneo. O mesmo acontece na Índia, na Argentina e em outros lugares do mundo.
Rede Mobilizadores – Quais os principais efeitos desses produtos sobre a saúde das pessoas e do meio ambiente?
R.: Assim como não temos tantos dados sobre o consumo de agrotóxicos em nosso país, também não temos muitos dados sobre os impactos desses venenos. O país investe muito pouco em pesquisas para revelar esses impactos, mas eles são muitos e têm muitas peculiaridades.
No Brasil, temos mais de 400 ingredientes ativos de agrotóxicos aprovados para serem utilizados na agricultura. Em diferentes regiões do país, temos tipos de exposições muito diversas. Em alguns locais, se pulverizam agrotóxicos por avião diariamente, em áreas próximas às cidades, como em alguns locais do Mato Grosso e do Nordeste, que tem perímetros irrigados para fruticultura.
Nesses locais, há exposição humana direta, além daquela proveniente da contaminação ambiental, da água e também decorrente da ingestão de alimentos contaminados. Há outros grupos expostos apenas pelo consumo de alimentos. Assim, não podemos falar de um único tipo de impacto. Além disso, no Brasil se utilizam agrotóxicos que são proibidos em outros locais do mundo porque está comprovado o efeito danoso à saúde humana.
Em nosso país, se consome agrotóxicos que afetam o sistema endócrino, o qual regula a produção de hormônios, com impactos sobre todo o nosso corpo. Problemas de fertilidade e uma série de doenças, como câncer, estão relacionados ao uso de agrotóxicos que são permitidos no Brasil. Esses impactos não se manifestam logo após a exposição, mas depois de um período, o que torna mais difícil estabelecer um nexo causal entre a doença e a contaminação. As empresas se defendem dessa forma, alegando que essas doenças não têm relação com os agrotóxicos, mas estudos têm provado o contrário.
Um dado importante é que existem sistemas, principalmente o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) que coleta, no Brasil todo, amostras de alimentos in natura nos supermercados, no varejo, e leva para laboratório para análise de presença de resíduos de agrotóxicos. Essas análises revelam amostras contaminadas com 14 tipos de resíduos diferentes. Isso significa que aquele alimento recebeu pelo menos 14 tipos de agrotóxicos. Muitos desses venenos estão acima do limite máximo permitido de resíduos ou têm resíduos de agrotóxicos que não são permitidos no Brasil ou para aquela cultura.
Em nosso país, o uso de agrotóxicos é indiscriminado e irregular, pois não existe fiscalização.
Só esse dado mostra que as pessoas estão se alimentando com uma quantidade de resíduos muito grande e que os agricultores foram expostos à quantidade elevadas e a tipos variados de venenos. Esse é um dado que revela a gravidade da situação. Em nosso país, o uso de agrotóxicos é indiscriminado e irregular, pois não existe fiscalização.
Se parássemos hoje de utilizar agrotóxicos, o que está completamente fora de cogitação, teríamos efeitos irreversíveis. Já temos aquíferos importantes, como o Guarani, contaminados por agrotóxicos.
Rede Mobilizadores – O que é necessário para reduzirmos o uso de agrotóxicos no país?
R.: No Brasil, foi elaborado o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), no contexto da implementação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), que ainda não foi implementado.
Há duas formas de redução: adotar medidas claras para reduzir o uso (a cartilha sobre o Pronara, elaborada pela Articulação Nacional de Agroecologia, aponta várias medidas para isso), e impulsionar uma agricultura agroecológica, que não utiliza agrotóxico.
O Brasil precisa reduzir o consumo de agrotóxicos tanto em quantidade quanto em qualidade. Precisamos banir em nosso país todos os produtos que já foram banidos em algum lugar do mundo devido ao impacto negativo à saúde e ao meio ambiente. Essa é uma medida emergencial.
Os dois agrotóxicos mais consumidos no Brasil são o glifosato e o 2,4 D. O glifosato, que corresponde a quase metade dos agrotóxicos usados no país, foi considerado pela Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer, que é vinculada à Organização Mundial da Saúde (OMS), como provavelmente cancerígeno. Mantendo esse produto, estamos construindo um cenário de epidemia de câncer nas populações mais atingidas por esse produto.
Proibir a pulverização aérea de venenos também é fundamental, pois nessa forma de aplicação há o que chamamos de deriva técnica, que acontece quando a nuvem de veneno pulverizado não atinge o alvo. Os ventos e as condições meteorológicas levam essa nuvem para locais muito distantes, atingindo áreas de biodiversidade, onde há concentração humana. Não há como controlarmos totalmente os impactos da pulverização aérea.
O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Anvisa está diminuindo o número de culturas que estão sendo analisadas e não pesquisa os agrotóxicos mais consumidos no Brasil, como o glifosato e o 2,4D
É fundamental também criar estratégias claras de fiscalização, desde a indústria até o uso no campo. A estratégia de fiscalização que temos é pífia. Precisamos fortalecer o monitoramento de impactos do uso desses produtos. O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Anvisa está diminuindo o número de culturas que estão sendo analisadas e não pesquisa os agrotóxicos mais consumidos no Brasil, como o glifosato e o 2,4D. Dos mais de 400 ingredientes ativos para usar na agricultura, o PARA pesquisa apenas cerca de 200. Ou seja, os resultados não estão mostrando o real impacto desses venenos na agricultura. E esses resultados não podem ser apenas divulgados, têm de ser transformados em medidas efetivas que revertam a situação.
Os fabricantes que desejam aprovar um novo ingrediente ativo, o submetem à análise de forma isolada, mas, na prática, ele é utilizado de forma associada a outros agrotóxicos. Portanto, é preciso também estabelecer um sistema de regulação que levem em conta o mundo real, e não o mundo ideal dos laboratórios.
O Brasil taxa o pão francês, mas não cobra impostos sobre o consumo de agrotóxicos.
Precisamos ainda rever os incentivos concedidos pelo Estado brasileiro ao consumo de agrotóxicos. Há estados brasileiros onde a isenção fiscal concedida a esses produtos é de 100%. O Brasil taxa o pão francês, mas não cobra impostos sobre o consumo de agrotóxicos.
E a arrecadação de impostos que incidem sobre agrotóxicos tem de ser revertida para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, visando atender as populações atingidas, e também para incentivar a produção agroecológica.
Rede Mobilizadores – Os defensores dos agrotóxicos alegam que, devido ao clima tropical brasileiro, seria impossível produzir em larga escala sem o uso desses produtos. Tem algum fundamento essa afirmação? É possível alimentar todo o país apenas com a agroecologia?
R.: É absolutamente possível produzir alimentos sem agrotóxicos para alimentar toda a população. O relator especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Alimentação (2008-2014), Olivier de Schutter, reconhece os impactos negativos da agricultura convencional, e também vê a agroecologia como um modelo que tem de ser impulsionado em todo o planeta.
Já há provas de que a agroecologia pode produzir alimentos de qualidade muito superior e em maiores quantidades do que a agricultura convencional.
Já há provas de que a agroecologia pode produzir alimentos de qualidade muito superior e em maiores quantidades do que a agricultura convencional. E Olivier de Schutter destaca, em seu relatório, a agricultura agroecológica brasileira. Ou seja, o país é referência mundial, apesar de o Estado brasileiro não incentivar essa agricultura e de ela ser atacada pelo agronegócio. Quando um avião pulveriza uma lavoura, por vezes atinge lavouras vizinhas e muitas delas são agroecológicas.
Uma experiência brasileira em larga escala que pode ser citada como referência é uma cooperativa de produção de arroz ecológico do Rio Grande do Sul, que tem produzido anualmente toneladas e toneladas. Esse é um dos exemplos que mostra como é possível produzir alimentos agroecológicos em grande escala. Temos também uma experiência de produção de cana-de-açúcar em grande escala, sem nenhum tipo de agrotóxico.
Mas essas experiências são fortalecidas por pesquisas que têm mostrado que com uso das técnicas agroecológicas adequadas, a agricultura familiar também pode obter resultados de produtividade mais altos que na agricultura convencional.
Acesse a oficina “Agrotóxicos: impactos e alternativas” e deixe seu comentário.
Entrevista e edição: Eliane Araujo
Revisão: Sílvia Sousa