Milhões de brasileiros ascenderam economicamente nos últimos anos. Atenta a esse público, recentemente, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), da Presidência da República, passou a chamar os novos grupos recém saídos do pauperismo de “classe média”. Assim, para o governo federal, fariam parte da classe média brasileira todos aqueles que recebem uma renda mensal per capita entre R$ 291 e R$ 1.019,00, ou seja, aproximadamente, 54% da População Economicamente Ativa (PEA) do país. Essa classificação vai orientar a criação das políticas públicas do governo federal para os próximos anos.
Segundo a comissão de especialistas da SAE, para chegar a essa definição a secretaria levou em consideração o padrão de despesa das famílias e os gastos com bens essenciais e supérfluos. Também foi usado como critério o grau de vulnerabilidade, ou seja, da probabilidade de retorno à condição de pobreza.
A nova definição vem dando ‘pano para manga’, já que o critério utilizado foi apenas o da renda, desconsiderando-se outros aspectos essenciais para definição de uma classe social, como acesso à educação de qualidade, à cultura e a serviços de saúde. O sociólogo e professor Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e autor do livro “Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe média trabalhadora?”, é um crítico desta nova definição. Para ele, definir uma nova classe apenas pelo critério da renda soa como uma classificação superficial da realidade.
Mobilizadores Coep – Hoje, no Brasil, tanto o mercado quanto o governo enfatizam a ideia de uma "nova classe média". A que você atribui essa ênfase?
R.: A ênfase é perfeitamente compreensível. Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno. Foi esse estrato que dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de consumo de bens duráveis antes de impossível acesso a grandes parcelas da população. Politicamente, também, ele é a maior novidade no cenário político brasileiro, ainda que seja uma classe muito heterogênea, com distinções regionais importantes e abrangendo desde pequenos empresários até trabalhadores super explorados e sem direitos sociais.
O interessante na atual constelação social desta classe é que, tanto econômica quanto politicamente, estão abertas duas alternativas possíveis: a primeira é essa classe ser cooptada pelo discurso e prática individualista e socialmente irresponsável que caracterizam boa parte das classes dominantes no Brasil; a segunda alternativa é essa classe assumir um papel de protagonista e inspirar, pelo seu exemplo social, a efetiva redenção daquela classe social de humilhados sociais que chamo, provocativamente, de “ralé”. Muitos dos batalhadores que entrevistamos vinham, inclusive, da própria “ralé”, mostrando que as fronteiras entre as classes são fluidas e que não existem classes condenadas para sempre. Esse ponto me parece fundamental, posto que é precisamente a existência desses abandonados sociais o que nos separa das sociedades mais igualitárias e socialmente mais justas do globo.
Mobilizadores Coep – Quais os critérios de categorização da classe média?
R.: A classe média é, antes de tudo, aquela que se apropria do capital cultural como base de seu privilégio social. O capital cultural nas suas diversas formas é a base do funcionamento do mercado e do Estado sob a forma de conhecimento técnico e útil, principalmente. Dessa necessidade objetiva as classes médias retiram toda a sua importância. O capital econômico expressivo é, por sua vez, privilégio das classes altas. Em conjunto, as duas formam as classes dominantes e que têm interesse na reprodução eterna de seus privilégios. Na nossa pesquisa preferimos definir a classe em questão como sendo uma “nova classe trabalhadora” brasileira, chamada impropriamente de “nova classe média”. Isso porque ela parece se definir como uma classe social com baixa incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural, o que explica seu não pertencimento a uma classe média verdadeira.
Mobilizadores Coep – Quais os problemas relacionados à definição de uma classe social pela renda?
R.: A mera classificação econômica e estatística por faixas de renda não explica nada. Mas ela dá a “impressão” que explica. Passa a ilusão de que organiza uma realidade confusa. Mas no que ajuda saber que tantas pessoas estão num certo patamar e outras em outro patamar de renda? O que isso diz dessas pessoas? Pessoas com renda semelhante podem ser muito diferentes entre si. Associar classe à renda é fazer de conta que se fala de classe quando se esconde as questões que esclarecem toda a gênese social dos privilégios injustos.
Mobilizadores Coep – Restringir o conceito de classe ao valor da renda pode ser uma forma de acentuar a invisibilidade da desigualdade brasileira?
R.: A “invisibilidade da desigualdade” moderna exige que a realidade social, pretensamente justa e igualitária, seja compreendida de modo parcial e distorcido. A associação de classe à renda cumpre essa função à perfeição, posto que se traveste ainda de “conhecimento científico rigoroso”, pelo uso da estatística e do “número”, símbolos perfeitos, em uma sociedade que confunde informação com reflexão.
Na verdade, só tem acesso a “relações pessoais vantajosas” quem já possui capital econômico ou cultural em alguma medida. Ou o leitor conhece alguém com “ligações importantes” sem, antes, já ter tido capital econômico ou cultural? O olhar concentrado no capital social, como base da hierarquia social, “esconde” a questão mais importante – posto que condiciona a própria existência do “quem indica” enquanto “capital” valioso – do acesso diferencial, determinada pela posição de classe, aos capitais “impessoais” econômico e cultural. Como a questão principal da “origem de toda desigualdade” é deixada às sombras, então pode-se imaginar os problemas brasileiros como sendo produzidos pela “corrupção do Estado” – nociva, importante de ser combatida, mas longe de ser uma especificidade brasileira – enquanto o mercado é percebido como “reino de todas as virtudes”.
Mobilizadores Coep – Outra crítica ao conceito de nova classe média é o fato de que desconsidera, por exemplo, aspectos como acesso à educação e a serviços de saúde de qualidade. Em sua pesquisa, você analisa outros critérios que ajudam a compor uma classe. Quais são esses critérios e o que eles têm a dizer?
R.: O mecanismo complexo que explica a existência das classes sociais é o segredo mais bem guardado de todas as sociedades modernas. Não só no Brasil, mas também na França, na Alemanha e nos EUA, imagina-se, tanto no discurso de senso comum quanto em boa parte daquilo que se passa por “ciência”, que se está em uma “sociedade de indivíduos” percebidos como “sem passado” e, portanto, “livres”, autônomos e, no jargão de hoje, “empreendedores de si mesmos”. É assim que as sociedades modernas se justificam como “igualitárias” e “justas”.
O pertencimento de classe tem que ser cuidadosamente escondido posto que é ele que decide, em grande medida, o acesso privilegiado, desigual e injusto, a qualquer tipo de bem ou recurso escasso. Esses bens e recursos que não precisam ser materiais, como um carro ou uma casa, mas também podem ser, por exemplo, o tipo de mulher ou de homem que se consegue ter ou o tipo de reconhecimento social ou prestígio que se desfruta em todas as dimensões da vida. Tudo isso é definido, com alta probabilidade pelo menos e na imensa maioria dos casos, pela herança de classe onde se é socializado.
Na verdade, a classe social se forma pela herança afetiva e emocional, passada de pais para filhos no interior dos lares, de modo muitas vezes implícito, não consciente e inarticulado. São esses estímulos familiares – muito distintos em cada classe – que irão construir formas específicas de agir, reagir, refletir, perceber e se comportar no mundo. E é precisamente a presença ou falta de certos estímulos, por exemplo, estímulos para a disciplina, para o autocontrole, para o pensamento prospectivo, para a concentração, que irá definir as classes vencedoras e perdedoras antes mesmo do jogo da competição social se iniciar de forma mais explícita. Essa fabricação social de indivíduos com capacidades diferenciais por pertencimento de classe tem que ser cuidadosamente escondida. Daí que se fale apenas no seu “resultado” mais visível, a renda, de modo a que possa se “falar de classe” sem que nada se compreenda de sua dinâmica.
Mobilizadores Coep – Por que a classe média é considerada como classe dominante?
R.: A classe média é uma das classes dominantes em sociedades modernas como a brasileira porque é constituída pelo acesso privilegiado a um recurso escasso de extrema importância: o capital cultural nas suas mais diversas formas. Seja sob a forma de capital cultural “técnico”, formada pelo exército de advogados, engenheiros, administradores, economistas etc., seja pelo capital cultural “literário” dos professores, jornalistas, publicitários etc. Este tipo de conhecimento é fundamental para a reprodução e legitimação tanto do mercado quanto do Estado. A incorporação deste tipo de capital cultural exige “tempo livre” que só as camadas privilegiadas possuem. É esse fundamento social “invisível” que irá permitir mais tarde tanto a remuneração quanto o prestígio social atrelado a este tipo de trabalho prestigioso e reconhecido.
Mobilizadores Coep – Quem são os batalhadores? Qual é a importância deles para a economia brasileira?
R.: A vida dos “batalhadores” é marcada pela ausência dos “privilégios de nascimento” que caracterizam as classes médias e altas. E, quando se fala de “privilégios de nascimento”, não se está falando apenas do dinheiro transmitido por herança de sangue nas classes altas. Esses privilégios envolvem também o recurso mais valioso das classes médias que é o “tempo”. Afinal, é necessário muito tempo livre para incorporar qualquer forma de conhecimento técnico, científico ou filosófico-literário valioso. Os batalhadores, em sua esmagadora maioria, precisam começar a trabalhar cedo e estudam em escolas públicas muitas vezes de baixa qualidade. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias, quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de super exploração da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras.
Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno. Foi esse estrato que dinamizou a economia brasileira na última década e estimulou o mercado de consumo de bens duráveis antes de impossível acesso a grandes parcelas da população. Politicamente, também, ele é a maior novidade no cenário político brasileiro.
Para seu fortalecimento e continuidade não é importante apenas a conjuntura econômica, mas também políticas sensíveis e corajosas. Temos que aprofundar o círculo virtuoso criado no Brasil pelas políticas assistenciais e de microcrédito. Para onde quer que essa nova classe de brasileiros batalhadores se incline, dessa inclinação dependerá também o desenvolvimento político e econômico brasileiro no futuro.
Mobilizadores Coep – Quais os valores dessa classe batalhadora?
R.: A principal diferença em relação aos excluídos e abandonados sociais é a constituição de uma “ética articulada do trabalho duro”. Afinal, não basta “querer” trabalhar em qualquer área da vida. É necessário também “poder” trabalhar, ou seja, se ter logrado “incorporar” os pressupostos emocionais e morais do trabalho produtivo no mercado competitivo. O capitalismo atual pressupõe crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como “porta de entrada” em qualquer de seus setores competitivos. Como esses pressupostos faltam por diversos motivos à “ralé” esta é condenada aos trabalhos braçais ou com mínimo de conhecimento, servindo, portanto de mão de obra barata para qualquer serviço duro, desvalorizado e pesado.
Este não é o único horizonte dos batalhadores. Quase sempre vindos de famílias pobres, mas, no entanto, bem estruturadas, com os papéis de pais e filhos reciprocamente compreendidos, exemplos de perseverança na família e estímulo conseqüente – baseado em exemplos concretos – para o estudo e para o trabalho, temos nas famílias dessa classe a incorporação e internalização efetiva da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo que sempre está pressuposta tanto em qualquer processo de aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo. Sem disciplina e autocontrole é impossível, por exemplo, se “concentrar” na escola daí que os membros da “ralé”, que analisamos no nosso livro anterior sobre essa classe, diziam repetidamente que “fitavam” o quadro negro por horas sem aprender. Essa “virtude” não é natural, como pensa a classe média que universaliza indevidamente às outras classes suas virtudes e privilégios para depois culpar a vítima do abandono social como se o abandono e a miséria fossem uma escolha. Por outro lado, sem pensamento prospectivo – ou seja, a visão que o futuro é mais importante que o presente – não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento e pela prisão no aqui e agora.
No caso dos batalhadores a incorporação dessa economia emocional e moral mínima é duramente conquistada, às vezes no horizonte do aprendizado familiar, às vezes, tardiamente, nas mais diversas formas de socialização religiosa. Assim, ainda que falte a essa classe o acesso às formas mais valorizadas de capital cultural – monopólio das “verdadeiras” classes médias – não lhes falta força de vontade, perseverança e confiança no futuro apesar de todas as dificuldades. Em um contexto minimamente favorável, como o que vivemos até agora, esse exército de batalhadores se mostra então disponível e atento à menor possibilidade de trabalho rentável e de melhoria das condições de vida por meio, por exemplo, do consumo de bens duráveis que antes lhes eram inatingíveis.
Essa classe de batalhadores é a classe suporte típica do novo capitalismo financeiro não só aqui, mas em todos os países ditos emergentes. Por conta disso, eles aceitam trabalhar até 14h ou 15h por dia. O capital ganhou a luta de 200 anos pelo total controle da força de trabalho. Se todos percebemos como algo bom se trabalhar 14h por dia, então vamos todos comemorar. Eu acho que existem dois lados nesta moeda: ascensão social e possibilidade de consumo a custa de enorme esforço pessoal por um lado; e super exploração da mão de obra com todo o sofrimento, amesquinhamento e dor humanas que isto envolve.
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Entrevista para o Eixo Erradicação da Miséria
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo