A base das redes sociais é a conversação. Em meio a troca de ideias, transmitimos informações, outras pessoas veem, se interessam e entram na conversa e, assim, alguns temas ganham projeção. Mesmo quando há intenção de se mobilizar por uma causa específica, essa mobilização sempre se dá dentro de um ambiente de conversação. Assim, o alcance das mobilizações depende da amplitude da rede de conversação e do contexto em que elas acontecem.
É o que explica o professor Henrique Antoun, coordenador do Cibercult, laboratório de comunicação distribuída e transformação política da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao falar sobre mobilização por meio das redes sociais.
Ele afirma que a internet é municipal, e não é porque seu alcance é limitado, mas porque a conversa das pessoas é local. “Podemos perceber que a rede gera consequências no local”.
De acordo com Antoun, não basta dar apoio virtual a uma causa. “O virtual têm de ter uma raiz no real e ambos têm de andar juntos, senão a mobilização se perde”, esclarece.
Veja a seguir as análises de Henrique Antoun sobre os potenciais e as limitações das redes sociais em processos de mobilização sociopolítica.
Rede Mobilizadores – De que maneira os dispositivos móveis e a disseminação do uso das redes sociais têm contribuído para a articulação e mobilização política e social? Pode citar exemplos?
R.: A base das redes sociais é a conversação. Esse é seu diferencial. Elas emergem num mundo que atua em rede. Ganhamos meios de estar conectados, acessíveis a qualquer tempo, e precisamos das redes para executar nosso trabalho, afetivo e intelectual.
A partir dos anos 1980, a máquina inteligente ocupa o espaço do trabalho braçal. Estamos o tempo inteiro trabalhando na rede, ela se tornou o nosso chão de fábrica. É natural conversarmos nas redes, porque trabalhamos nela, sobretudo a partir do surgimento dos smartphones, das mídias sociais.
A partir dos anos 1980, a máquina inteligente ocupa o espaço do trabalho braçal. Estamos o tempo inteiro trabalhando na rede, ela se tornou o nosso chão de fábrica.
As mídias sociais são usadas de uma forma direta, ou seja, há uma conversa acontecendo e, em meio a essa conversa, nós transmitimos informações, outras pessoas veem, se interessam e entram na conversa. Quando falamos de mobilização social, há uma parte que ultrapassa isso, pois envolve a postagem de mensagens de mobilização, mas isso sempre se dá dentro de um ambiente de conversação. Assim, o alcance das mobilizações depende da amplitude da rede de conversação e do contexto em que elas acontecem.
Não foi à toa que as revoltas no mundo árabe surgiram num contexto de intensa crise social e violento arrocho econômico. A rede impulsionou a mobilização, e, assim como acontecia no chão de fábrica, as pessoas começaram a gritar porque mataram alguém, porque a violência explodiu. É importante entender que não há como impedir as pessoas de conversar [tirando o sinal de internet por exemplo], pois o trabalho cessaria.
mídia de massa é invasiva, porém no dia seguinte você já não lembra o que viu no dia anterior. As redes sociais não são invasivas.
A mobilização político-social que uma televisão pode fazer é muito mais intensa, atinge mais gente de imediato, porque a mídia de massa é invasiva. Porém, no dia seguinte, você já não lembra o que viu no dia anterior. As redes sociais não são invasivas. Há uma conversa entre as pessoas e os temas voltam. Portanto, elas funcionam mais a médio e longo prazos, mas seu efeito é mais duradouro.
Rede Mobilizadores – O que mudou em termos de mobilização social no Brasil depois das manifestações de junho de 2013?
R.: Vários grupos emergiram nas redes sociais a partir de 2013, inclusive grupos internacionais que passaram a atuar com muita força aqui porque encontraram um ambiente específico. Houve uma mudança nas mobilizações e nas ações após 2013 que não está sendo tematizada fora do mundo acadêmico, que é o perfil social de quem estava atuando.
Houve uma mudança nas mobilizações e nas ações após 2013 que não está sendo tematizada fora do mundo acadêmico, que é o perfil social de quem estava atuando.
Não foi à toa que, depois das manifestações de junho de 2013, houve uma ocupação policial da Maré e do Alemão e que está havendo uma matança louca nesses locais, porque eram eles – a garotada das periferias misturada com a garotada da Zona Sul – que estavam atuando. Eles apareceram como protagonistas sociais. Os grupos contra as remoções, por exemplo, ficaram muito mais fortes e, hoje, têm uma grande capilaridade.
Rede Mobilizadores – Como influenciar de forma efetiva as políticas locais, regionais, nacionais por meio da ação online? Há exemplos bem sucedidos?
R.: A TV e o rádio são capazes de produzirem um surto de revolta, a rede não funciona assim. Ela pode potencializar uma revolta em curso, como aconteceu no mundo árabe. Mas veja que em vários desses lugares a política e a guerra recobriram o que poderia ser uma solução. Nenhum desses lugares se democratizou. O Egito é um exemplo claro.
O único lugar em que a rede está produzindo algum efeito político, ainda desconhecido, é na Espanha, com o surgimento do Podemos como nova força na política. Nas últimas eleições municipais e regionais*1, quatro grandes cidades espanholas passaram às mãos do movimento social, entre elas Barcelona.
O único lugar em que a rede está produzindo algum efeito político, ainda desconhecido, é na Espanha, com o surgimento do Podemos como nova força na política.
De qualquer forma temos que lembrar que a Espanha tem uma tradição anarquista, e a internet e a anarquia têm uma afinidade. A anarquia é o autogoverno, o governo sem intermediários, e internet possibilita acabar com os intermediários, ao possibilitar formas diretas de ação.
A internet é municipal e não é porque seu alcance é limitado, mas porque a conversa das pessoas é local. Podemos perceber que a rede gera consequências no local. Conquistas obtidas por movimentos como o Meu Rio são possíveis porque eles estão enraizados no circuito de quem conversa.
Barak Obama [em 2008] percebeu que, para se eleger, tinha de começar sua campanha na internet muito antes da campanha regular. Ele começou dois anos antes na internet. Mas é a internet junto com a localidade. Ele montava grupos locais, conversava, identificava as principais reivindicações políticas e integrava no seu programa de governo. Isso produziu um efeito que assustou todo mundo. Seus eleitores passaram a defendê-lo com muita ferocidade a cada ataque da mídia e quem construiu isso foi a internet. A mídia não constrói isso. Quando se faz política na internet é preciso pensar no enraizamento que ela permite e na longa vida que ela cria. No Brasil, os políticos usam mal a internet, exceto alguns poucos, e, dentre eles, a maioria tem um enraizamento nas comunidades.
Rede Mobilizadores – Como fazer a transição de uma mobilização online para o mundo offline?
R.: As ações online e offline têm de acontecer juntas. É preciso ter gente que já atua offline e que, ao mesmo tempo, participa de grupos online locais mantendo interações habituais. Só assim é possível amplificar e transversalizar a mobilização social. A mobilização nunca pode ser só online. É sempre misto. A ação online amplifica a atuação offline e vice-versa.
É preciso levar em conta também que hoje, com a banda larga e os smartphones, as pessoas estão na internet durante todo o dia. Nós estamos conectados o tempo todo e por meio de vários dispositivos simultâneos (laptop, celular, tablet, etc). Portanto, o online passou a fazer parte do offline.
O virtual têm de ter uma raiz no real e ambos têm de andar juntos, senão a mobilização se perde.
A rede deixa de ser algo virtual e torna-se real quando os dois espaços se tornam o mesmo. Não basta dar apoio virtual a uma causa se não vou agir também na rua, no mundo real. O virtual na internet não é como na televisão, onde pode substituir o real. O virtual têm de ter uma raiz no real e ambos têm de andar juntos, senão a mobilização se perde.
Mas percebemos também que alguns temas que sempre suscitaram grande mobilização social, como a saúde e a educação, não têm a mesma força no mundo virtual como outros temas, a exemplo da mobilidade urbana, que se tornou um tema mais explosivo. Portanto, também é preciso entender o que mobiliza as pessoas no mundo virtual, de que forma, para que se possa fazer planos de mobilização.
Rede Mobilizadores – No Brasil os meios de comunicação são concentrados nas mãos de poucas famílias. Nesse cenário, qual a importância da mídia livre na articulação das mobilizações sociopolíticas?
R.: O oligopólio da mídia no Brasil é um absurdo. Comparando com os demais países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o Brasil é o que tem menos veículos de comunicação e estão concentrados nas mãos de poucos grupos. Vivemos o chamado coronelismo eletrônico, com redes de TV e canais de rádios nas mãos de grupos extremamente vinculados à tradição política de locais. Eles falam o que querem e calam o que desejam.
Vivemos o chamado coronelismo eletrônico, com redes de TV e canais de rádios nas mãos de grupos extremamente vinculados à tradição política de locais
A internet furou isso ao criar um espaço onde que podemos falar aquilo que não estamos ouvindo. Trata-se de um sistema lateral [à grande mídia] onde as pessoas falam entre si e que mostra o que muitas vezes esses grupos não querem que seja dito ou mostrado.
A internet funciona por meio de grupos com interesses comuns e a conversa acontece dentro desses grupos, mas existe uma transversalidade entre esses grupos na medida em que um grupo pode se interessar por um outro, e é aí que ela pode ter um efeito de massa.
Rede Mobilizadores – O que pode atrapalhar a comunicação e a mobilização na internet?
R.: A comunicação na internet pode sofrer distorções pela existência de alguns tipos de grupos, a exemplo dos grupos de ódio, que são fechados em si próprios, abordam um só assunto e não permitem circular nada diferente do que pregam. Um exemplo são os grupos de intolerância, como aqueles contra os homossexuais. É o pior sistema, pois se fecha em si próprio, e como a internet permite que se apague a controvérsia, ele não ouve mais nada. Há também o grupo carismático, que chamamos de grupo de avatar. Eles têm uma liderança forte e seguidores. Um bom exemplo são grupos de fãs de um artista.
O legal são os grupos que têm temas, mas que são abertos para discutir outros assuntos, que são os grupos de conversação mais ampla. Esses grupos, natural e facilmente, dependendo do que está acontecendo, viram um grupo de mobilização. As posições que existem podem aparecer e, a partir daí, pode surgir uma mobilização.
O que destrói um grupo são alguns tipos característicos de usuários, como o palhaço, que toda hora faz uma piadinha; o sabe tudo, que acha que sabe mais e melhor do que todos os outros sobre qualquer assunto; o troll, que finge que quer conversar, mas na verdade deseja provocar e ofender todo mundo e ver o circo pegar fogo. Quando participamos de um grupo temos de saber neutralizar essas figuras, sem quebrar a liberdade de comunicação, e isso exige trabalho: moderação, filtros. Isso marca a passagem a internet 1.0 para a internet 2.0 que aumentou a interação e a conversação.
vemos na nossa time line o que vamos gostar e teremos interesse de compartilhar, ou seja, entramos numa bolha. E o efeito disso é uma irritação crescente com tudo o que te contraria
O momento atual é o da bolha filtro. O Facebook especializou seus filtros, e usa por robôs e algorítimos que se valem de 100 mil critérios para decidir o que vai aparecer na nossa time line. Assim, das 1.500 mensagens que uma pessoa recebe, em média, em sua time line, o Facebook libera 350, que é o que podemos administrar. Ele não suprime as outras mensagens, mas não dá destaque a elas. É preciso buscar para encontrar. Assim, só aparece na nossa time line o que vamos gostar e teremos interesse de compartilhar, ou seja, entramos numa bolha. E o efeito disso é uma irritação crescente com tudo o que te contraria, é o ódio.
A mídia sempre produz efeitos que ela não advinha. Assim, fechamos as pessoas dentro de um universo em que todos são muito parecidos. Isso restringe, por exemplo, os processos de mobilização, pois eles não atingem quem pensa diferente. É preciso levar em conta também que toda rede facilmente se dispersa, pois nada obriga as pessoas a estarem ali. É preciso criar motivações para manter as pessoas interessadas.
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*1 Eleições municipais e regionais na Espanha – ocorridas em maio de 2015, elegeram vereadores e deputados e foram um golpe na direita espanhola. O PP (Partido Popular) saiu derrotado de forma geral. Ainda que mantenha a maior quantidade de votos, perdeu nas grandes cidades e, na maioria das localidades, só conseguirá compor o governo com o apoio de pequenos partidos de direita, como, por exemplo, Ciudadanos, recentemente criado pela direita para tentar dar uma “cara” nova para sua política. O partido Podemos, em especial, teve uma expressão muito acima do que, em tese, sua estrutura permitiria. Estas candidaturas, levantadas com a vontade de milhares de ativistas sociais que, durante meses, em incontáveis debates e reuniões, sem estrutura econômica e sem aparelhos, expressaram a vontade de milhares de pessoas. O símbolo dessa mudança é a chapa encabeçada por Ada Colau, uma ativista representante dos movimentos sociais e de esquerda, que se destacou entre os indignados dos protestos do 15-M, em 2011. Ela se notabilizou por paralisar despejos hipotecários de pessoas que ficariam sem casa.
Entrevista concedida a: Eliane Araujo
Editada por: Sílvia Sousa
Esse entrevista foi publicada originalmente em 30/11/2015.