Em entrevista ao Mobilizadores COEP, a secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Isa Oliveira, analisa a situação do trabalho infantil, fala dos desafios do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e das questões socioeconômicas e culturais relacionadas à questão.
Mobilizadores COEP – Qual a situação e quais as principais formas de trabalho infantil hoje no Brasil?
R. Os últimos dados disponíveis sobre trabalho infantil são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a PNAD, de 5 a 15 anos ? faixa etária em que todas as atividades são proibidas, com exceção da aprendizagem, que é permitida a partir dos 14 anos ? 2,7 milhões crianças e adolescentes estão envolvidas no trabalho infantil. Até 2004, a pesquisa mostrava uma continuidade de queda; em 2005, os dados apontaram o crescimento do trabalho infantil, principalmente nas atividades agrícolas e em atividades urbanas para consumo próprio e atividades sem remuneração, o que indica trabalho infantil na informalidade. Acreditamos que esse aumento em 2005 tenha sido causado por uma crise na agricultura, o que gera mais trabalho infantil informal na agricultura familiar. Agora, voltamos à situação que havia em 2004. Então, em 2006, não houve redução significativa embora seja um indicador positivo que o Brasil retome o declínio do trabalho infantil. Mais uma criança no trabalho é uma variação significativa porque acreditamos que isto é uma violação dos seus direitos. Mas a diminuição do trabalho infantil vem sendo muito lenta, as variações são pequenas, o país não consegue reduzir significativamente e achamos que as ações do governo ainda não são eficazes nesse sentido.
Mobilizadores COEP – Qual a avaliação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil sobre o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI? Que desafios ainda existem no combate à exploração da mão-de-obra infanto-juvenil e quais as características de um bom programa de enfrentamento desta questão?
R. O PETI trabalha com três estratégias: transferência de renda através do Bolsa Família para apoiar a familiar na sobrevivência; a obrigatoriedade da família retirar o filho do trabalho infantil e mantê-lo ou inseri-lo na escola; e a freqüência nas atividades no contraturno (atividades socioeducativas e de convivência, merenda, e reforço escolar), que devem ser oferecidas pelas prefeituras. Para tanto, o Ministério do Desenvolvimento Social repassa à prefeitura um valor per capita de 20 reais mensais por criança atendida na área urbana ou rural. A adesão da prefeitura, no entanto, não é obrigatória. É preciso uma ação articulada do Ministério Público do Trabalho, Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Ministério do Trabalho e Emprego, conselhos de direitos, tutelares e fóruns estaduais para o monitoramento das ações do programa. Por exemplo, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego precisam estar articulados para que, de fato, a legislação que proíbe o trabalho infantil seja cumprida e a proteção à criança seja assegurada. É importante também a articulação com a Educação para garantir o acesso e tomar medidas para que as crianças permaneçam na escola e concluam o ensino fundamental porque o percentual de evasão ainda é alto. Há uma recusa, principalmente no Rio Grande do Sul, que é um estado com um percentual elevado de trabalho infantil, em admitir a existência de trabalho infantil e em implementar o programa. É um dado cultural: os estados do Sul têm muita resistência. Desde 2003, a implementação do PETI tem sido pouco significativa.
Em 2002, o programa atendia 810 mil crianças e, em 2007, esse número não chega a 900 mil. Antes, a principal ação de combate ao trabalho infantil era o próprio PETI; o programa hoje foi integrado ao Bolsa Família, privilegiando a inclusão e a permanência na escola para o combate ou prevenção ao trabalho infantil. Evidentemente que isso é importante, mas identificamos a ineficiência do setor de educação. Particularmente na área rural, o acesso é muito difícil, há precariedade das instalações, pouca informação dos profissionais. Além disso, há dificuldades de fiscalização e não se tem conseguido retirar as crianças porque o trabalho é feito na informalidade. Apesar da inviolabilidade do lar, há outras formas de fiscalização, como as denúncias ao conselho tutelar, ao Ministério Público do Trabalho. Se for situação de pobreza, é preciso inserir a família no programa Bolsa Família. Além disso, é preciso dar oportunidade para que a família busque o sustento dos seus filhos e deixe o programa. O programa é necessário, defendemos a transferência de renda, mas não pode haver uma permanência sem fim. É preciso dar oportunidade de emprego, de renda, elevação de escolaridade, para que a família saia do programa. Se ela não sai nunca, haverá uma falência da proposta e do poder público, que estará fazendo uma ação assistencialista e não promovendo a cidadania. Nós defendemos a transferência de renda, que é legítima, justa e contribui para a distribuição de renda, mas tem que ter tempo definido. Tem que ter uma porta de saída da família para a inclusão social, senão o poder público está atestando sua incompetência para a promoção da cidadania.
Mobilizadores COEP – Qual o perfil sócio-econômico das crianças que trabalham?
R. O trabalho infantil tem cor e sexo. A grande maioria das crianças é do sexo masculino, negras e provenientes de famílias pobres. No trabalho infantil doméstico e na exploração sexual, nos quais se faz um recorte de gênero, há predominância de meninas. A maior incidência de crianças, na faixa etária de 5 a 15 anos, é no trabalho rural. Já o maior número de crianças de 5 a 9 anos está no trabalho com as famílias nas casas de farinhas, nos ranchos de castanha de caju, na quebra de pedra. A Região Nordeste ocupa o primeiro lugar em número de casos de crianças trabalhando; depois vem a Região Sul. Embora esteja no Nordeste a maior incidência de beneficiários do Programa Bolsa Família, há uma situação de dificuldades de acesso e permanência na escola, o que motiva que as famílias utilizem o trabalho dos seus filhos. Na região Sul há a questão do fator cultural: o valor do trabalho para a formação do caráter, para que se forme um adulto responsável.
Mobilizadores COEP – Que outros fatores levam ao trabalho infantil? Eles estão relacionados somente à baixa renda das famílias?
R. Não há dados apontando que o trabalho infantil seja solução para pobreza. Ao contrário, ele é um reprodutor de pobreza. Os pais dessas famílias trabalharam quando eram jovens. Não temos pesquisas mais universais, mas há uma pesquisa no Mato Grosso do Sul com adolescentes privados de liberdade que demonstrou que mais de 80% dos internados em Campo Grande foram trabalhadores infantis. Os trabalhadores escravos também foram trabalhadores infantis. O que explica essa situação é não apenas a pobreza, mas a deficiência do sistema escolar. Com certeza, muitas crianças que hoje estão no trabalho infantil estão na escola, mas o rendimento escolar e a oportunidade de concluir os estudos são muito pequenos. Então, a criança abandona a escola devido à repetência e vai reproduzir a situação de suas famílias. São muitos os mitos [ligados ao trabalho infantil]: é bom trabalhar pra ser responsável, ficar esperto, aprender uma profissão, mas esses mitos podem ser contestados. Há também a questão dos valores culturais, que são muito fortes no campo, onde as famílias socializam as crianças ensinando as atividades rurais e valorizando o trabalho. Isso precisa ser feito de uma forma que não imponha às crianças uma jornada de trabalho penosa, nem riscos de saúde e comprometimento do desenvolvimento físico e até psíquico.
É preciso motivar a criança a gostar do campo, do trabalho agrícola, mas isso é muito diferente de trabalho infantil. Quando os filhos se tornam adolescentes e jovens, querem deixar o campo. Essa questão precisa ser analisada: a vida é penosa e eles não querem permanecer. Hoje, há um entendimento de que a criança não pode ficar ociosa. Precisamos discutir esse ócio. Brincar é um direito da criança. Se ela vai pra escola, faz os deveres, cumpre as atividades, depois precisa ter tempo livre. Brincar é importante para ser um adulto mais equilibrado. Temos de mudar esses valores culturais. Outra questão é que, na sociedade, nas famílias, é muito forte a idéia de que a criança pobre tem que trabalhar. A ela é imputada a responsabilidade de trazer renda pra família e até sustentar a família. Se você analisar com responsabilidade a legislação brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente, é inaceitável que, no século 21, crianças estejam sujeitas a atividades perigosas, plantio e tráfico de drogas, redes de exploração sexual, ou desenvolvendo atividades na coleta de lixo, mesmo que de material reciclado, para ter o seu sustento. Isso é inadmissível.
Mobilizadores COEP – Como o trabalho afeta a vida das crianças e que idade é considerada adequada para que o adolescente comece a trabalhar?
R. O trabalho afeta a vida das crianças em situações de comprometimento da saúde: as crianças do lixão apresentam graves problemas de desnutrição, doenças de pele e respiratórias. Entre aquelas que trabalham manipulando agrotóxico, há alguns indicativos de suicídios, já que essas susbtâncias afetam muito a parte neurológica da criança. Na cultura do fumo há registro dessa situação, além de problemas de coluna. Os problemas respiratórios aparecem novamente nos trabalhos ligados à mineração. Há também questões que afetam o desenvolvimento moral: crianças que fazem programa por uma lata de comida, por cinco reais, envolvimento com o tráfico de drogas. Na rua, as pessoas compram o que as crianças vendem, mas quem compra não tem o entendimento de que não está ajudando a criança; ao contrário, está contribuindo para que ela permaneça na rua, principalmente nas grandes cidades, o que significa estar exposta às redes de drogas e exploração sexual. O risco do aliciamento é comprovado. Além de tudo, o trabalho infantil tira a oportunidade de ser criança, que é transformada em adulta, submetida a jornadas pesadas. A legislação no Brasil diz que, a partir de 14 anos, é permitido o trabalho como aprendiz, que é uma oportunidade regulamentada por lei. As demais formas de trabalho só são permitidas a partir dos 16 anos. O aprendiz vai ter a carteira de trabalho assinada, garantias previdenciárias e trabalhistas e proteção para que continue a escolarização. Assim, não se esgota na aprendizagem, precisa estudar pra ter oportunidades no futuro. Abaixo dos 18 anos de idade, não são permitidas aprendizagens em atividades insalubres ou perigosas (tudo que pode botar em risco a saúde e o desenvolvimento), como venda de bebidas alcoólicas, trabalho em bares noturnos ou em cadeias produtivas que usem solvente etc.
Mobilizadores COEP – É feito algum trabalho educativo e de prevenção com as famílias para desestimular o trabalho infantil?
R. Essa é uma das estratégias do PETI: trabalhar a questão do trabalho infantil com as famílias no sentido de dar a elas condições de ter consciência da gravidade da inserção precoce de crianças no mercado de trabalho e de valorizar a escola, mas esse trabalho, durante toda existência do programa, foi feito de forma muito precária e limitada. Em 2003, o levantamento nos municípios mostrou que 80% deles não adotaram essa estratégia. As próprias organizações da sociedade civil, os conselhos de direitos e tutelares têm que fazer o acompanhamento nesse sentido. Se a prefeitura aderiu ao PETI, como contrapartida, ela tem que oferecer atividades no contraturno. Há a própria implementação dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), [espaços que oferecem ações e serviços básicos às famílias em situação de vulnerabilidade social] pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mas o resultado desse trabalho ainda não aparece no que se refere ao trabalho infantil. Pelo que a gente percebe, desde 2003 há uma estagnação nessa área. Efetivamente o Brasil está fazendo muito pouco em relação a essa questão.
Mobilizadores COEP – O que é o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI)? Quais seus principais objetivos e que resultados significativos tem obtido?
R. O Fórum foi criado em novembro de 1994 e é um espaço não-institucionalizado, não-governamental, e que congrega diversos segmentos da sociedade: instâncias do governo federal, representantes dos trabalhadores (centrais e confederações sindicais), confederações patronais, ONGs, e os chamados operadores de direito (Ministério Público e organismos internacionais). É um espaço plural, de debate, e que tem como estratégia a construção das propostas através do consenso. Não se vota, se busca o consenso. Tem uma coordenação colegiada que toma as decisões no intervalo das plenárias, realizadas quatro vezes por ano, e que são a instância máxima de deliberação. A própria metodologia do PETI foi elaborada no Fórum Nacional, que buscou articular elementos como a transferência de renda e o contraturno. Também existe no Brasil, desde 2003, um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, elaborado no âmbito do fórum. O FNPETI tem autonomia em relação aos segmentos que o compõem e sua principal missão é articular, sensibilizar e mobilizar segmentos da sociedade e do governo para buscar alternativas para essa questão. Ele tem papel de controle social e é um interlocutor permanente do MDS, do MTE e de outros segmentos que querem discutir o tema. É um espaço singular: com essas características, só existe no Brasil. Embora o governo esteja aqui, o Fórum é respeitado e reconhecido como a voz que fala para além do governo, do trabalhador, dos empresários e essa autonomia faz uma diferença muito grande.
Entrevista concedida à: Danielle BittencourtEdição: Eliane Araújo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.
|Creio que seria bem mais oportuno e inteligente estimular o trabalho dos presidiários no lugar das crianças. Tem que colocar estes elementos para plantar e colher, para suar nas terras ditas improdutivas mas que se forem trabalhadas darão bons frutos. Os pseudo sem terra também. Lugar de criança é na Escola e não fazendo serviço de adulto malandro.
Super interessante a entrevista. Gostaria de saber qual a avaliação da autora em relação a incorporação do PETI pelo bolsa família. Também gostaria de saber onde encontrar a relação das atividades consideradas insalubres e de risco.
Muito obrigada,
Enid