No Brasil de hoje, ainda persistem situações que mantêm o trabalhador em condições desumanas e até sem a possibilidade de se desligar de seus patrões ou prepostos. Estimativas do Ministério do Trabalho indicam que, desde 1995, aproximadamente 42 mil trabalhadores foram resgatados de situação semelhante à de escravidão, e aplicados cerca de R$ 5 milhões em multas.
Recentemente, foi aprovada, na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/2001, que estabelece a expropriação do imóvel rural e urbano onde for constatada a exploração de trabalho escravo, e que a área em questão seja utilizada para fins de reforma agrária ou destinada a programas de habitação popular.
Nesta entrevista, o ator e integrante da ONG Humanos Direitos, Marcos Winter, fala sobre direitos humanos e o conceito de escravidão contemporânea. Militante de causas sociais, ele também fala sobre a mobilização e a luta da entidade no combate ao trabalho escravo no país.
Mobilizadores Coep – Qual o conceito de escravidão contemporânea? Onde ela acontece no Brasil?
R.: No Brasil, os maiores focos de trabalho escravo estão no sudoeste do Pará e também no sudoeste do Maranhão. Acontece em lugares mais distantes dos grandes centros, geralmente no interior dos estados, e é mais comum no meio rural. Geralmente, existe um aliciador, chamado de gato, que percorre regiões menos desenvolvidas e com escassa oferta de emprego, em busca de pessoas para trabalhar. O aliciamento começa com a promessa de carteira assinada e um salário mínimo, mas, quando a pessoa se dá conta, já está trabalhando para pagar a alimentação, a hospedagem, as ferramentas de trabalho. Enfim, é a chamada escravidão por dívida, na qual o indivíduo é obrigado a trabalhar exaustivamente, em condições degradantes, sem alimentação adequada, sem condições de higiene adequada, e com a liberdade cerceada, muitas vezes vivendo sob ameaça.
Mobilizadores Coep – Que circunstâncias levaram à elaboração da PEC 438? O que ela prevê?
R.: A Proposta de Emenda Constitucional do trabalho escravo vem sendo discutida na Câmara dos Deputados desde 2004, quando houve a votação em primeiro turno na Casa, motivada pelo assassinato de três auditores do trabalho e de um motorista do Ministério do Trabalho na cidade de Unaí, em Minas Gerais. A proposição teve origem no Senado em 2001 e já se passaram onze anos, desde então. Agora, a PEC voltou a entrar em pauta, após o governo federal anunciar, em janeiro, que sua aprovação seria uma prioridade na área de Direitos Humanos.
O que acompanho mais de perto é que muitas pessoas têm seu nome ligado a esta luta, como o Padre Ricardo Rezende, por exemplo, que há muitos anos defende os interesses dos trabalhadores rurais e denuncia a existência do trabalho escravo pelo interior do Brasil.
A PEC 438 estabelece a expropriação do imóvel rural e urbano onde for constatada a exploração de trabalho escravo e que a área seja destinada à reforma agrária ou a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário.
Mobilizadores Coep – A bancada ruralista tem dito que concorda com a aprovação da PEC, mas defende alterações no Código Penal para delimitar o significado de trabalho escravo e degradante. O que acha dessa demanda?
R.: O grande problema é que a bancada ruralista tem medo de que a PEC seja aprovada e fica arregimentando argumentos que soam muitas vezes até risíveis. Na minha opinião, são argumentos que só fazem jogar poeira em cima da realidade, pois a definição legal do que é escravidão contemporânea está detalhada no artigo 149 do Código Penal Brasileiro*1, que foi atualizado em 2003.
Mobilizadores Coep – Como acredita que o Senado vá encarar as contestações?
R.: A nossa expectativa é de que o Senado use do bom senso para aprovar a PEC, mesmo porque a proposição teve início nesta Casa e sofreu pouca alteração na Câmara. Uma comissão formada por cinco deputados e cinco senadores deverá elaborar o texto a ser votado no Senado, diferenciando aquilo que é trabalho escravo e aquilo que é desrespeito à legislação trabalhista, é a chamada Comissão Mista. Esperamos que o Senado entenda que já existe respaldo jurídico para a aprovação da PEC 438.
Mobilizadores Coep – Na sua avaliação, a sociedade tem noção do que ocorre com esses trabalhadores? Qual o papel da mídia neste sentido?
R.: Acho que a sociedade não tem muita noção do que acontece com esses trabalhadores, mesmo porque esta é uma realidade muito distante e pouco retratada, num país de dimensões continentais como o nosso. O papel da mídia deve ser o de mostrar esta realidade, mostrar que o trabalho escravo ainda existe, é degradante, muito chocante e deve ser combatido.
Mobilizadores Coep – Depois de aprovada, como a sociedade poderá exercer o controle social sobre o pleno cumprimento da PEC?
R.: Acho que a sociedade deve se informar e exercer o seu direito de retaliação, nem que seja a econômica, negando-se a comprar produtos que tenham origem em latifúndios onde existe comprovadamente a prática de trabalho escravo. Hoje já existe uma ‘lista suja’ disponível no site do Ministério do Trabalhoe também sites independentes que informam e denunciam os envolvidos nesta prática. Além disso, a sociedade deve denunciar e colaborar, avisando as autoridades quando suspeitarem de trabalho escravo em determinado local, até mesmo no meio urbano.
Mobilizadores Coep – Como surgiu o Movimento Humanos Direitos e o que tem realizado em relação ao combate ao trabalho escravo?
R.: O movimento surgiu de um grupo de amigos – artistas, produtores, diretores – que sempre se encontravam reunidos em torno de alguma causa. Resolvemos formar então um grupo organizado que lutasse na defesa dos direitos humanos, muito pela vontade de poder colaborar de alguma forma. Aproveitamos a visibilidade que a profissão nos dá e usamos essa condição para contribuir para uma vida mais digna para todos. O grupo se articula como pode e acompanha julgamentos e campanhas no combate ao trabalho escravo. Muitas vezes, a gente fica sabendo que alguém está sofrendo ameaça de assassinato, vai até aquele local, e tenta desarticular o jogo, usando da visibilidade e do carisma que os artistas conquistaram na TV para tentar sensibilizar os envolvidos.
———————-
*1 – Artigo 149 do Código Penal Brasileiro – a nova redação do artigo 149 foi definida pela lei nº 10.803. O texto é o seguinte: "Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. a lei número 10.803, que definiu a nova redação do artigo 149, foi resultado de um processo coletivo no qual participaram pessoas de diferentes áreas preocupadas com o combate a esta grave violação de Direitos Humanos.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem
———————–
Entrevista para o Grupo Participação, Direitos e Cidadania
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.