O Brasil é o país mais rico do mundo em termos de reservas hídricas e abriga 13,7% da água doce disponível. Aqui, como na maioria dos países, a água está no topo da agenda ambiental e sua gestão tem grande poder de integração, pois afeta todos os setores da economia e todos os segmentos da sociedade.
Entender como funciona a gestão das águas nas bacias hidrográficas brasileiras é condição fundamental para a preservação não só da quantidade de água disponível, como também de sua qualidade, assegurando esta riqueza às gerações futuras.
Nesta entrevista, Rosana Garjulli, consultora independente nas áreas de Planejamento e Gestão Participativa das Políticas Públicas de Recursos Hídricos, Meio Ambiente, Saneamento Básico e Convivência com o Semiárido, fala sobre Comitês de Bacias e gestão das águas. Ela esclarece quais são as atribuições dos comitês, como funcionam na prática e como a sociedade pode ser mais participativa e atuante.
Mobilizadores Coep – O que são os Comitês de Bacias Hidrográficas e qual seu objetivo?
R.: Os Comitês de Bacia Hidrográfica são organismos colegiados, integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, compostos por representantes do setor público, da sociedade civil e dos usuários de água, cujo objetivo é garantir a gestão participativa, integrada e descentralizada da água.
Os Comitês de Bacia podem ser instalados em rios de domínio da União, quando percorrerem mais de um estado, sendo que neste caso, sua aprovação dependerá do Conselho Nacional de Recursos Hídricos e de um decreto de criação do Presidente da República; ou no domínio estadual quando o rio percorre apenas um estado da federação, sendo que sua aprovação ocorre no respectivo Conselho Estadual de Recursos Hídricos.
Mobilizadores Coep – Quais suas atribuições?
R.: Conforme a Lei 9.433, de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacia tem as seguintes competências:
I – promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes;
II – arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;
III – aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia;
IV – acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;
V – propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;
VI – estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;
VII – estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.
Parágrafo único. Das decisões dos Comitês de Bacia Hidrográfica caberá recurso ao Conselho Nacional ou aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, de acordo com sua esfera de competência.
Mobilizadores Coep – Como funciona um Comitê?
R.: Geralmente, os Comitês de Bacia são constituídos de uma Diretoria, composta por um presidente, um vice-presidente e um secretário executivo (eleitos pelos membros do Comitê), e esta diretoria coordena as ações e o funcionamento do Comitê.
Enquanto não houver cobrança pelo uso da água, a responsabilidade pelo suporte técnico e operacional ao funcionamento do Comitê é do órgão gestor de recursos hídricos. Se o comitê é de rio de domínio da União este apoio é de responsabilidade da Agência Nacional de Águas (ANA), em parceria com os órgãos gestores dos estados envolvidos na respectiva bacia hidrográfica. Se o comitê é de rio de domínio estadual, este suporte técnico operacional deve ser garantido pelo órgão gestor de recursos hídricos do estado.
Após a implantação da cobrança pelo uso da água, o Comitê da Bacia indica uma entidade para ser sua agência de bacia, a qual passará a garantir o suporte técnico operacional ao seu funcionamento, tendo o seu funcionamento custeado com os recursos da cobrança pelo uso da água.
As regras de funcionamento dos comitês de bacia são definidas em regimento interno, aprovado em reunião plenária do respectivo comitê.
Mobilizadores Coep – O que é necessário para formar um Comitê? Como a sociedade pode incentivar sua criação e ser mais participativa nesse processo?
R.: Para se constituir um Comitê de Bacia é necessário, antes de mais nada, que a sociedade de uma determinada Bacia Hidrográfica esteja interessada e mobilizada em participar da gestão das águas, integrando um colegiado que tem atribuições bastante significativas em relação ao planejamento e as intervenções a serem realizadas para a preservação, a recuperação e o uso racional dos recursos hídricos.
É necessário também que no estado, em que se localiza a bacia hidrográfica, exista um órgão gestor de recursos hídricos minimamente estruturado para garantir suporte técnico e operacional, não apenas para o funcionamento do Comitê, mas para implementar os instrumentos e procedimentos de gestão de recursos hídricos (Plano de Bacia, Outorga pelo Uso da Água, Enquadramento dos Corpos d’Água, Cobrança pelo Uso da Água, Monitoramento da quantidade e da qualidade da água, Sistema de Informações, entre outros).
Mobilizadores Coep – Quem pode participar dos Comitês, o que é preciso para participar?
R.: Podem participar dos Comitês de Bacia representantes:
a.dos poderes públicos municipal, estadual e federal;
b.dos setores usuários de água (em termos produtivos);
c.da sociedade civil ( ONG’s, associações comunitárias, entidades técnico – científicas,entidades ambientalistas), com atuação na área ambiental e/ou de recursos hídricos.
Para participar é necessário que a instituição ou entidade interessada se inscreva para concorrer num processo eleitoral que ocorre para constituição inicial do Comitê, ou nos processos de renovação dos membros, geralmente de 2 em 2 anos. Este processo é publico e, para cada Comitê de Bacia, é publicado um edital que apresenta as regras para participação, prazos, cronograma e procedimentos.
Mobilizadores Coep – Como avalia a participação dos representantes das comunidades nos Comitês? O que seria preciso para estimular uma maior participação?
R.: A participação das comunidades ocorre por meio de seus representantes (associações, ONG’s, entidades de classe, entidades de preservação e defesa do meio ambiente, e até mesmo representantes de setores eclesiásticos). Na minha avaliação, esta participação é mais efetiva quando os temas tratados no Comitê de Bacia estão diretamente relacionados aos problemas sentidos pela sociedade da Bacia e também quando de fato existe uma representatividade efetiva dos diversos setores sociais na composição do comitê.
Para estimular uma maior participação, considero necessário se ampliar a comunicação com a sociedade, não apenas sobre a importância da água, mas sobre a gestão participativa e integrada deste bem comum. Estimular mais o exercício da cidadania. Dar maior visibilidade aos Comitês de Bacia existentes e sua importância neste processo de gestão da água.
Mobilizadores Coep – Na sua avaliação os representantes da sociedade civil, especialmente das comunidades mais vulneráveis, conseguem fazer valer seus pleitos nos Comitês? Pode citar exemplo de conquista(s) obtida(s) por uma comunidade a partir da participação num Comitê de Bacia?
R.: A composição de um Comitê de Bacia é bastante diversificada em todo país, em termos de percentuais de vagas designados para cada um dos setores (poder público, sociedade civil e usuários). Nos comitês de rios de domínio da União: 40% das vagas são para usuários de água (não importando se grandes ou pequenos); 40% no máximo para os poderes públicos (federal, estadual e municipal) e não menos de 20% para sociedade civil. Em alguns estados esta composição é paritária, em outros a presença do poder publico é mais expressiva, como é o caso de São Paulo (33% poder público estadual, 33% poder público municipal e 33% usuários + sociedade civil).
Na minha avaliação e até mesmo em dados constatados na ampla pesquisa realizada pelo Projeto Marca d’água*1, com membros de Comitês de todo Brasil, o que tem dificultado garantir a participação igualitária nos Comitês é um maior ou menor grau de acesso à informação e à capacitação sobre os assuntos tratados e não tanto se o membro é da sociedade civil, ou usuário ou até mesmo representante de um órgão público.
Na minha vivência com comitês, presenciei algumas conquistas não relacionadas diretamente a uma comunidade, pois dificilmente um Comitê de Bacia trata de questões muito localizadas, mas constatei, por exemplo que: proposições defendidas por representantes de pescadores do Baixo São Francisco sobre a necessidade de vazão ecológica mínima*2 foi vitoriosa em relação a outros usos, em especial a geração de energia; que pequenos agricultores do Semiárido nordestino têm conseguido garantir prioridade de acesso à água para sua produção em relação à grande irrigação e ao uso industrial; que a aplicação dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água tem sido priorizada pelos comitês da bacia para projetos de preservação, recuperação de áreas degradadas, educação ambiental e saneamento básico.
Mobilizadores Coep – O que é um Plano de Bacia? Como ele deve ser elaborado?
R.: O Plano de Bacia é um dos instrumentos mais importantes da política de recursos hídricos e que deve ser aprovado pelo Comitê da respectiva Bacia.
Como o Comitê é que irá aprovar o Plano de Bacia é fundamental que participe desde o início do processo de elaboração do Plano, definindo, junto ao órgão gestor de recursos hídricos, as necessidades de estudos, de levantamento de informações e de proposições específicas para cada bacia.
É fundamental também, além das reuniões de acompanhamento e das consultas públicas, que o Plano da Bacia seja construído como um Pacto Social com compromissos assumidos por instituições públicas e entidades da sociedade civil que garantam sua implementação. Que ele não seja apenas um instrumento técnico, mas político no sentido de expressar vontades, desejos e compromissos sociais.
Devem constar dos Planos de Bacia:
I – diagnóstico da situação atual dos recursos hídricos;
II – análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo;
III – balanço entre disponibilidades e demandas futuras dos recursos hídricos, em quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais;
IV – metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis;
V – medidas a serem tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem implantados, para o atendimento das metas previstas;
VIII – prioridades para outorga de direitos de uso de recursos hídricos;
IX – diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos;
X – propostas para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção dos recursos hídricos.
Mobilizadores Coep – Quais são as principais Bacias Hidrográficas brasileiras e quantos comitês existem atualmente?
R.: A partir de um estudo realizado pela Agência Nacional de Águas foram definidas Unidades de Gestão de Recursos Hídricos de Bacias Hidrográficas de rios de domínio da União. A Resolução nº. 101/10 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, com base neste estudo, cria as respectivas unidades de gestão e estabelece procedimentos complementares para criação e acompanhamento dos Comitês de Bacia.
•Apenas pra citar algumas, podemos destacar:
oRegião Norte: Amazônica, Araguaia-Tocantins;
oRegião Nordeste: Parnaíba, Piranhas Açu, São Francisco;
oRegião Centro Oeste: Paranaíba
oRegião Sudeste: Jequitinhonha, Paraíba do Sul, Piracicaba, Capivari, Jundiaí, rio Grande;
oRegião Sul: Iguaçu, Paraná, Uruguai
Vale destacar a importância estratégica de algumas bacias estaduais que respondem pelo abastecimento das capitais ou cidades de grande porte, tais como: Jaguaribe (Ceará); Guandu/Paraíba do Sul (Rio de Janeiro), Piracicaba/ Tietê-Sistema Cantareira (São Paulo), Capibaribe (Recife).
Existem hoje no Brasil cerca de 150 Comitês de Bacia Hidrográficas.
Mobilizadores Coep – Podemos dizer que a atuação dos Comitês no Brasil é efetiva? Como se dá esta avaliação?
R.: Esta questão remete para uma reflexão mais aprofundada e detalhada, pois, como destacamos acima, existe uma grande diversidade de experiências em todo o país. Temos comitês que são atuantes, mas que se restringem a discutir a distribuição de recursos oriundos dos fundos públicos ou da cobrança pelo uso da água, outros se concentram nas discussões em torno dos conflitos pelo uso da água, outros que buscam garantir a implementação de todos os instrumentos de gestão em suas bacias, mas, muitas vezes, constatam pouca efetividade em termos de melhoria de qualidade da água e de uma maior equidade na sua distribuição.
O que se tem constatado é que para garantir uma efetiva e eficiente gestão da água, deve-se ir muito além da implementação isolada da Política de Recursos Hídricos, integrando-a às Políticas de Saneamento Básico, de Saúde, de Educação, de Desenvolvimento Econômico, entre outras.
Mobilizadores Coep – Os recursos hídricos no Brasil são considerados um bem comum, e, portanto, administrados pela União. Como funciona isso no caso das bacias hidrográficas, em termos de gestão e planejamento?
R.: A dominialidade das águas é da União quando o rio percorre mais de um estado, mas é de domínio estadual quando tem sua nascente e sua foz num mesmo estado. Portanto, o planejamento e gestão em uma bacia de rio de domínio da União será coordenada pela Agência Nacional de Águas, em estreita articulação com os órgãos gestores estaduais que atuam na respectiva bacia.
O Comitê de Bacia em rio de domínio da União é vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas busca definir sua atuação em estreita articulação com os Comitês de Bacia existentes nos seus afluentes estaduais, por meio de Câmaras Técnicas ou Consultivas de Articulação Institucional.
——————-
*1 – O projeto Marca D’Água é um conjunto articulado de iniciativas voltadas para a produção e disseminação de informações sobre a gestão de águas no Brasil. O objetivo é analisar, de forma comparativa, o processo de organização de organismos de bacia, com ênfase nos condicionantes políticos, econômicos e sociais do processo e sua relação com o modelo de gestão implementado. Saiba mais clicando aqui.
*2 – Cada ambiente aquático possui suas próprias características hidrológicas, morfológicas, químicas e ecológicas. Por isso se calcula a vazão ecológica, que de acordo com as suas características auxilia a manutenção dos habitats, a conversação da fauna e flora, e seus meios físicos. Os fatores físicos que afetam na determinação da vazão são: corrente, substrato, temperatura e oxigênio. A vazão ecológica é muito importante, já que, por exemplo, os peixes, dependem de uma vazão que garanta a sua alimentação, concentração de oxigênio adequada e diluição de excretas. Há três níveis de vazões ecológicas: a vazão ecológica ótima – promove excelentes condições para a sobrevivência, reprodução e crescimento de peixes; vazão ecológica mínima – garante a manutenção ou pequena redução na abundância de peixes; vazão ecológica e sobrevivência – reduz a abundância de peixes, mas não a perda de espécies.
———————————–
Entrevista para o Grupo de Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Pobreza
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.