Qual a diferença entre inclusão e integração? Como a grande imprensa peca ao abordar o tema deficiência? Estas e outras questões são esclarecidas pela jornalista Patricia Moreira. Com ampla vivência na área, Patricia participou da sessão que finalizou e aprovou o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em agosto de 2006, na ONU, em Nova York.Além disso, de2002 a 2007, ela foi gerente de projetos da ONG Escola de Gente ? Comunicação em Inclusão, onde implementou projetos nas áreas de educação, mídia, transformação social, não-discriminação e inclusão de pessoas com deficiência.
Mobilizadores COEP – Quais os principais erros que a grande mídia comete em sua abordagem ao tema deficiência?
R.: Um dos equívocos mais freqüentes ocorre em relação à terminologia. É muito comum o jornalista usar o termo ?deficiência física? para se referir a todas as deficiências, que podem ser sensoriais (cegueira e surdez), motoras, mentais, físicas e/ou múltiplas. Outro erro muito comum é usar a expressão ?portadores de deficiência?. Apesar de a palavra ?portador? estar presente em várias leis que tratam o tema, o movimento pelos direitos das pessoas com deficiência não a utiliza mais. Em primeiro lugar, porque a idéia de alguém ?portar algo? passa, inconscientemente, a mensagem de que aquela situação é um ?problema? da pessoa e de sua família, não despertando na sociedade a consciência de que garantir o direito de acesso e de participação das pessoas com deficiência em todas as esferas sociais é responsabilidade de todos. Além disso, a deficiência é uma característica da espécie humana, como tantas outras, e nós não usamos o termo ?portar? para designar outras particularidades; por exemplo, ninguém diz ?eu porto olhos azuis?. Para alguns, isso pode parecer um mero detalhe, mas as palavras têm um peso muito grande e podem contribuir para perpetuar processos discriminatórios. Outro aspecto fundamental é que raramente a deficiência aparece na mídia de forma transversal a outros temas. Por exemplo, numa matéria de educação que mostre a qualidade do ensino, dificilmente haverá o questionamento de como está o ensino das crianças com deficiência. Em geral, a deficiência ganha maior espaço em datas temáticas, como o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência. Além de normalmente tratar o assunto de forma superficial (suscitando poucos questionamentos sobre as inúmeras barreiras que a sociedade precisa eliminar), esta abordagem faz com que o conceito de inclusão seja lembrado ocasionalmente nestas épocas. Para quem quiser se aprofundar mais nessas questões, uma excelente fonte é o Manual da Mídia Legal ? Comunicadores pela Inclusão, que possui um capítulo sobre esse tema, e está disponível no site da Escola de Gente ? Comunicação (www.escoladegente.org.br).
Mobilizadores COEP – Como os profissionais da mídia poderiam se preparar melhor para evitar tais equívocos? Qual o papel das universidades neste sentido?
R.: O primeiro passo é reconhecer que ainda estamos muito despreparados para lidar com temas que envolvem os direitos humanos. E no caso especial da deficiência, a situação se agrava pelo fato de que muitas vezes não crescemos exercendo a ética da diversidade, ou seja, podemos passar a vida toda sem conviver com a deficiência. Pesquisar, se informar, buscar fontes ligadas aos movimentos de direitos das pessoas com deficiência e procurar aprender mais sobre conceitos utilizados internacionalmente e as legislações existentes são caminhos para uma cobertura mais qualificada. É importante destacar também que nem sempre o fato de uma pessoa ter uma deficiência significa que ela seja uma fonte apropriada. Muitas vezes, ela desconhece seus direitos, as políticas de governo voltadas para essa área, a terminologia correta, entre outras questões. As universidades são o espaço mais propício e fértil para despertar nos futuros profissionais de comunicação o compromisso que todos nós devemos ter na construção de uma sociedade mais justa, que não discrimine em função de nenhuma condição, especialmente a deficiência. Os jovens estão, sem dúvida, muito mais abertos a novos conceitos e, em geral, se dispõe, com mais facilidade, a admitir e rever seus preconceitos. Por isso, é fundamental levar para as universidades esses debates e incentivar a aliança dos movimentos sociais com o meio acadêmico.
Mobilizadores COEP – Quando se fala em pessoas com deficiência, é muito comum ouvir-se o termo inclusão, quando se trata, na prática, de integração. Você poderia diferenciar os dois conceitos e indicar em que casos empregá-los corretamente? Havendo dúvida, que termo deve ser usado?
R.: De fato, a confusão entre os dois conceitos ? que são opostos – é bem grande. A integração é uma linha de pensamento da sociologia funcionalista que transfere ao indivíduo a responsabilidade de se ajustar à estrutura social. Esse conceito foi absorvido, na década de 50, pelos movimentos que lutavam pela participação das pessoas com deficiência na sociedade, reforçando a visão de que elas precisavam se adaptar aos modelos sociais já existentes. Ou seja, quanto menos deficiente a pessoa parecer, melhor. Há uma tendência a disfarçar as limitações para aumentar a possibilidade de acesso. É uma inserção parcial e condicional. Já o conceito de inclusão nasce a partir da Resolução 45/91, da ONU, que em 1990 fez um apelo ao mundo, chamando atenção para os grupos em situação de vulnerabilidade, principalmente as pessoas com deficiência. Defendeu a importância de se passar da fase de conscientização para a ação, com o propósito de se ter com êxito uma sociedade para todos por volta do ano 2010. A inclusão preconiza a inserção total e incondicional da pessoa com deficiência, o que exige rupturas nos sistemas e transformações profundas na sociedade. É preciso garantir o direito de acesso das pessoas com deficiência em todos os níveis, como educação, saúde, trabalho, lazer, transporte, entre outros. A deficiência é, assim, reconhecida como parte da natureza humana e da diversidade que caracteriza a nossa espécie. Um grande equívoco observado na mídia é que a palavra ?inclusão? se popularizou, e muitas ações definidas pelas próprias fontes como inclusivas são, na verdade, integradoras. Na dúvida, recomenda-se o uso do vocábulo ?inserção?, que não está vinculado a movimentos internacionais de defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Mobilizadores COEP – Você trabalhou na Escola de Gente desde seu início, o que representou esta experiência para sua percepção da mídia como veículo de transformação social, em se tratando do tema em questão?
R.: Ter tido a oportunidade de ajudar a fundar a Escola de Gente em 2002, com a jornalista e escritora Claudia Werneck, e ser gerente de projetos da ONG por cinco anos foi um divisor de águas na minha carreira. Até então, minha trajetória profissional tinha ocorrido no segmento de revistas e em sites relacionados à temática da saúde. Desconhecia totalmente o trabalho realizado pelo terceiro setor e, principalmente, o das ONGs engajadas na defesa dos direitos humanos. Foi como se de repente um novo universo se abrisse diante de mim. E o mais revelador foi descobrir como eu, como jornalista, poderia utilizar a minha profissão em prol da construção de uma sociedade melhor.
Percebi que nós, jornalistas e profissionais da comunicação, podemos e devemos ter um papel social muito mais incisivo. É preciso desmistificar a idéia da imparcialidade. Um dos principais aprendizados da minha vivência é que o jornalista não deve ser apenas um relator dos fatos, ele deve ser um agente de transformação da história. Ir além das denúncias, dos relatos, é preciso fomentar o debate, as reflexões e a busca de soluções por parte de todas as esferas da sociedade, inclusive da mídia.
Mobilizadores COEP – De que forma a sociedade, as empresas, os movimentos organizados e a mídia são capazes de estimular a elaboração de políticas públicas inclusivas, que contemplem todos os segmentos da sociedade indistintamente?
R.: Segundo a ONU, 82% das pessoas com deficiência no mundo vivem abaixo da linha de pobreza em países em desenvolvimento, a maioria delas são crianças. No Brasil, os dados do Censo 200O do IBGE apontam para 24,5 milhões de pessoas com deficiência, o que representa 14,5% da população. Quebrar o ciclo de invisibilidade em que se encontram as pessoas com deficiência é o primeiro grande desafio. O segundo é lutar por políticas públicas que atuem de forma conjunta no combate à pobreza e à discriminação enfrentadas por pessoas com deficiência. Esse é o princípio do conceito de desenvolvimento inclusivo, que ressalta a relação inequívoca entre pobreza e deficiência, mostrando o quanto uma pode ser causa e/ou conseqüência da outra.
Cabe ressaltar que o Brasil é signatário de importantes tratados internacionais, como a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência, conhecida como Convenção da Guatemala, de 1999, e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Esta última, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 13 de dezembro de 2006, ratificada pelo Brasil em 30 de março de 2007 e aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Contribuir e exigir que as políticas públicas sejam desenvolvidas à luz desses tratados é o caminho para promover a defesa da pessoa humana, a equidade e a justiça social.
Mobilizadores COEP – O que significou para você a oportunidade de participar da última sessão da ONU que aprovou o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência?
R.: Senti que estava fazendo parte de um momento histórico. Este foi o primeiro tratado internacional dos direitos humanos do século 21. E o seu maior diferencial é que, pela primeira vez, a sociedade civil pôde participar do processo de elaboração do texto e ter voz durante as plenárias, por meio da International Disability Caucus (IDC), uma rede que reuniu mais de 80 organizações não-governamentais do mundo. Esta última sessão, realizada entre os dias 14 e 25 de agosto de 2006, foi a que contou com o maior número de participantes. Foram duas semanas de intensos debates, polêmicas e tensões. Países como China, Sudão (representando o grupo Árabe), Egito, Finlândia (representante da União Européia), Líbia, Índia e Estados Unidos foram os que mais se opuseram às propostas de inclusão apresentadas. O papel das ONGs era o de influenciar os delegados presentes para que o texto da Convenção fosse o mais inclusivo possível. E isso não foi tarefa fácil, pois as diferenças culturais, econômicas e sociais dos 192 países participantes eram enormes. O embaixador da Nova Zelândia, Don Mackay, responsável pela condução dos trabalhos da Convenção, pedia a todo o momento que os países fossem flexíveis.
Ao final da primeira semana, após 35 horas de plenária, ainda faltavam ser aprovados 33 artigos. Esse foi o momento de maior tensão. Começamos a achar que a Convenção não ficaria pronta. Felizmente, a flexibilidade prevaleceu. Quando os últimos artigos foram aprovados, a plenária, com cerca de 500 participantes, celebrou com muitos aplausos e emoção. Não há palavras para descrever o que foi viver esse processo, representando a Escola de Gente e o Brasil.
Sobre a Convenção vale destacar que ela reafirma a universalidade, indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assim como a necessidade de garantir que pessoas com deficiência os exerçam plenamente e sem discriminação.
Mobilizadores COEP – Qual o objetivo do Decreto nº 6.571/08, recém-publicado no Diário Oficial? Como o documento pode ajudar a mídia a fazer uma releitura de sua abordagem sobre educação inclusiva, tão preconizada atualmente?
R.:O decreto dispõe sobre o atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, matriculados na rede pública de ensino regular. É, com certeza, mais uma medida em defesa da educação inclusiva, já que, através dele, o governo federal se compromete a prestar apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a fim de aumentar a oferta desse atendimento.
Entre os seus objetivos destacam-se a implantação de salas de recursos multifuncionais, ou seja, ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos que promovam o acesso dos alunos citados acima. Prevê também a produção e a distribuição de livros didáticos em braile, áudio e na Língua Brasileira de Sinais (Libras), laptops com sintetizador de voz, softwares para comunicação alternativa e outras ajudas técnicas. Estabelece a capacitação de professores e adequação arquitetônica das escolas para torná-las acessíveis.
Esta lei não é a primeira em prol da educação inclusiva. Ela vem se somar a um conjunto de medidas que já defendem esse princípio. Na minha opinião, a principal releitura que a mídia e a sociedade, de modo geral, precisam fazer com esse decreto é que não se pode negar a qualquer criança ou jovem – com ou sem deficiência – o seu direito de conviver na escola regular com a diversidade da sua geração.
Entrevista concedida à: Renata Olivieri
Edição: Eliane Araujo
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