De acordo com Maureen Santos, do Núcleo Nacional da Fase Brasil Sustentável, o conceito de justiça climática deve nortear as iniciativas para enfrentamento das mudanças climáticas. Neste sentido, diz que as políticas públicas, mesmo as já existentes, devem abordar de forma transversal a questão para que as populações mais vulneráveis possam encontrar formas de resiliência*1 e adaptação*2.
Mobilizadores COEP ? Como os países estão se comportando em relação às mudanças climáticas?
R.: Reconhecer que as mudanças climáticas não são um fenômeno natural já foi algo importante. Neste sentido, vale citar o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)*3, estabelecido em 1988, que apontou que se o aquecimento global atingisse mais de 2ºC até 2020, as mudanças climáticas seriam irreversíveis. Cito também o Protoco de Kyoto*4, que entrou em vigor em 2005 e definiu metas para os países desenvolvidos reduzirem, até 2012, a emissão dos gases que agravam o efeito estufa, muitas das quais, no entanto, ainda não cumpridas.
A maioria dos países ainda usa o tema das mudanças climáticas para aquecer suas economias, seu mercado. A tendência dos países ricos é transformar a crise climática numa ?oportunidade de mercado?, estabelecendo preços e valores para o desmatamento, a poluição atmosférica, bem como para atividades de preservação. É preciso mudar esta concepção urgentemente. As ilhas insulares, por exemplo, estão com risco de desaparecer devido à elevação do nível de mar, e não há uma medida efetiva para frear esta mudança. Não existe um compromisso político dos países. Por isso, os movimentos sociais e organizações querem trazer o tema do clima de volta para o campo da ética.
Mobilizadores COEP – O que está implícito no conceito de justiça climática? Como isto funciona na prática?
R.: A justiça climática é um conceito que vem sendo trabalhado nos últimos cinco anos, e ele surge do conceito de justiça ambiental, criado nos Estados Unidos por organizações do movimento negro que trabalhavam com racismo ambiental, defendendo este grupo social do preconceito.
Quanto à justiça climática, a ideia é que os países que menos contribuíram para o problema das mudanças climáticas não devam ser os que mais paguem o preço pelas ações do enfrentamento das mudanças climáticas. Quer dizer, quem deve pagar a conta são os países do [Hemisfério] Norte [os chamados países desenvolvidos], responsáveis por estas mudanças. A negociação das mudanças climáticas tem um ponto chamado responsabilidade histórica. Ou seja, os países do Norte, que, há mais de 150 anos, com a Revolução Industrial, começaram a emitir gases de efeito estufa na atmosfera, com as indústrias, os transportes, etc. Esta acumulação vem provocando o aquecimento global, que, por sua, vez, vem provocando as mudanças climáticas.
A perspectiva da justiça climática é justamente esta, reconhecer que os países do Norte têm uma dívida histórica com os países e populações dos países do Sul. É preciso incluir a justiça climática como princípio, não criando ações que prejudiquem mais ainda estas populações que não contribuíram para as mudanças climáticas. Isto não só em nível internacional (eixo Norte-Sul), mas em nível nacional. De que forma, o governo pode pensar políticas públicas em diversas áreas, como recursos hídricos, habitação, alimentação, combate à pobreza, saneamento, etc., que possam melhorar as condições de vida destas populações para que elas não sejam tão atingidas pelas mudanças climáticas.
A justiça climática também entende que algumas populações vão ser obrigadas a migrar de uma região para outra, devido ao aumento do nível do mar, à desertificação etc. Estas populações teriam que ter uma vida digna, ou ainda melhor do que tinham antes da migração.
Então o conceito de justiça climática abarca não só a questão dos injustiçados pelo problema, que não tiveram culpa por ele, mas também de que forma os Estados podem melhorar a vida destas populações.
Mobilizadores COEP – Quais as principais críticas ao conceito de adaptação estabelecido na Convenção Marco?
R.: Com a criação do Protocolo de Kyoto, em 2005, a Convenção Marco*5 se dividiu em dois grupos: um deles discute as metas, ou seja, quanto os países devem cortar de emissão de gases, como devem cortar e quem são estes países (só os países desenvolvidos ou os países em desenvolvimento também?) e o outro grupo, de cooperação a longo prazo, ficou responsável por pensar medidas de estabelecimento da convenção.
Neste último grupo, há vários setores de negociação. Um deles é o de adaptação. Nós entendemos que as medidas de adaptação devam andar paralelamente com as medidas de redução de emissões. São dois processos: o de adaptação e mitigação*6, que devem andar juntos. Nas últimas negociações sobre adaptação, houve a proposta de um Fundo de Adaptação. A ideia é que este fundo tenha recursos suficientes para que os países que vão sofrer mais as consequências das mudanças climáticas possam criar formas de atender à sua população e superar estas consequências. O montante inicial do fundo, no entanto, era muito baixo.
Em dezembro de 2009, no Acordo de Copenhague, o valor aumentou um pouco, mas vários países ainda acham um valor baixo frente ao grande desafio do enfrentamento das mudanças climáticas. Para a Conferência de Mudanças Climáticas de Cancun/México (COP 16), que vai acontecer de 29 de novembro a 10 de dezembro de 2010, o valor do fundo vai ser um dos assuntos discutidos. Alguns países, como a Bolívia, defendem, por exemplo, que 6% do PIB dos países do Norte sejam direcionados ao Fundo de Adaptação.
Mobilizadores COEP ? Por que o mercado de carbono não deve ser uma das fontes de financiamento do Fundo de Adaptação?
R.: O mercado de carbono foi aprovado no Protocolo de Kyoto, dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) ? mecanismo que visava à redução das emissões dos países desenvolvidos até 2010 (valor de 5% mais ou menos). O MDL aponta formas de flexibilizar o cumprimento desta meta que os países foram obrigados a cumprir ao assinarem o tratado. Uma delas é o mercado de carbono.
O Tratado de Kyoto determina que, caso seja impossível atingir as metas estabelecidas de redução de CO2, os países ricos poderão comprar créditos de carbono de outras nações que possuam projetos de desenvolvimento de tecnologias limpas. Isso quer dizer a fixação de um valor financeiro para cada tonelada de carbono que deixe de ser lançada na atmosfera, configurando o que popularmente se chama de Mercado de Carbono.
Vejamos um exemplo: A França tem uma cota anual de emissões. Ela quer ultrapassar a cota para produzir mais, então ela compra créditos num país como o Brasil. Como? Por exemplo, uma empresa fez um aterro sanitário no Rio de Janeiro. O gás que vai ser produzido pelo aterro vai seu usado para produzir biogás. Com isso, o aterro terá suas emissões reduzidas. Isso vira uma cota, uma moeda chamada carbono. Então, a França em vez reduzir suas emissões para resolver o problema de verdade, compra as emissões do Brasil e mantém seu status de consumo, de produção e de emissão para a atmosfera. O mercado de carbono transfere o problema para outro, não resolve a questão, que deveria pressupor a transição para um modelo de desenvolvimento de baixo carbono, de redução de consumo, de mais respeito à natureza.
Mobilizadores COEP – Que princípios devem nortear a ação pública em suas ações de adaptação?
R.: É importante pressionar as prefeituras, os governos estaduais para que criem planos municipais e estaduais de mudanças climáticas; para que incorporem as mudanças climáticas nas políticas públicas já existentes.
No plano nacional, é preciso, por exemplo, que a política de recursos hídricos contemple a escassez de água, os problemas que as bacias hidrográficas vão enfrentar com o aquecimento. É necessário incluir transversalmente o tema das mudanças climáticas em todas as políticas públicas e prever a criação de medidas de adaptação e mitigação que possam reduzir os impactos de tais fenômenos para as populações, em especial as em condições de maior vulnerabilidade, as mais pobres. E é muito importante que a população participe, pois será a mais atingida.
Mobilizadores COEP ? A mulher é um ator social fundamental no contexto de adaptação. Por quê?
R.: Pelo papel que desempenham na família, na comunidade, há uma tendência de as mulheres serem as mais impactadas pelas mudanças climáticas. Afinal, muitas desempenham uma dupla ou tripla jornada, trabalhando fora, cuidando da casa, dos filhos. Historicamente, por exemplo, é a mulher a responsável por buscar água para suas casas em locais em que há deficiência de abastecimento.
Por outro lado, em muitas comunidades, as mulheres estão envolvidas em projetos e programas agroecológicos, ecofeministas (ligados à economia feminista, à contribuição que a mulher dá para a economia), em discussões de gênero. Esta participação pode trazer uma outra perspectiva em relação às adaptações às mudanças climáticas, ou seja, de como as mulheres podem contribuir, a partir de sua vivência, para estas adaptações. Logo, é sempre bom discutir não só de que maneira as mulheres serão impactadas, mas como podem contribuir para o enfrentamento do problema.
Mobilizadores COEP ? Como vê a questão do consumo no Brasil? Que implicações traz para as mudanças climáticas?
R.: A lógica do sistema capitalista, baseada no lucro, pressupõe venda, comércio e consumo. A questão do consumo está muito intrínseca em nossa formação (desde a escola, na comemoração das datas festivas etc). No Brasil, ou em qualquer país capitalista do mundo, quebrar, desconstruir este modelo é muito complicado. Não digo negar às pessoas o direito ao consumo mínimo para que tenham uma vida digna, mas quebrar a lógica do consumo exacerbado, repetindo um modelo que contribui ainda mais para acabar com os recursos do planeta. É preciso pensar numa perspectiva de futuro. Este debate é muito importante, especialmente com os movimentos urbanos: qual o meu direito de consumo e como o meu consumo não vai interferir na vida das gerações futuras? É preciso buscar um equilíbrio. É preciso passar para um modelo de baixo consumo.
Mobilizadores COEP – Qual a participação da Fase no Grupo de Trabalho de Mudanças Climáticas, coordenado pelo COEP? Em que fase estão as discussões dentro do GT?
R.: A Fase tem sua sede nacional no Rio, mas tem seis regionais no Brasil. O trabalho todo que a gente faz é trazer as temáticas das discussões locais e fazer uma relação com que está sendo discutido nacional e internacionalmente.
Um deste temas é mudanças climáticas. No GT, participamos dentro da perspectiva da justiça climática. As populações dos países em desenvolvimento, como disse anteriormente, não têm que pagar a conta pelas medidas que serão tomadas para o enfrentamento. Devem é ter melhores condições de vida, para controle social. O foco nesse momento é o de adaptação às mudanças climáticas, já que é um tema que o governo e o fórum brasileiro, de maneira geral, não estavam discutindo. O GT reflete sobre medidas de adaptação para criar um Plano Nacional de Adaptação e pensa de que forma o governo pode utilizar isso para construir políticas públicas que possam realmente enfrentar às mudanças climáticas.
No GT, há vários grupos para elaborar políticas para o Plano Nacional de Adaptação, que vamos propor ao governo, centrado na questão das vulnerabilidades. Há um grupo, por exemplo, focado em agricultura familiar e camponeses. De que forma utilizar propostas alternativas, como cisternas, agroecologia, agroflorestas podem ajudar na resiliência às mudanças climáticas? De que forma estas alternativas, já usadas por diversas populações, podem servir para a adaptação?
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*1 – Resiliência – capacidade de contornar as consequências trazidas pelo aquecimento global e de se adaptar a elas
*2 – Adptação ? Ajuste dos sistemas humanos e naturais para que respondam, de forma eficaz e equitativa, aos impactos esperados pelas mudanças climáticas. O acesso aos recursos necessários para uma maior capacidade de adaptação varia entre comunidades, bem como depende de fatores externos como políticas públicas, a paisagem institucional e as estruturas de poder.
*3 ? IPCC – foi estabelecido em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) para fornecer informações científicas, técnicas e socioeconômicas relevantes para o entendimento das mudanças climáticas. Seus impactos potenciais e opções de adaptação e mitigação.
*4 – Protocolo de Kyoto – é um tratado internacional com compromissos mais rígidos para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de acordo com a maioria das investigações científicas, como causa antropogênicas do aquecimento global. Discutido e negociado em Kyoto no Japão em 1997, foi aberto para assinaturas em 11 de dezembro de 1997 e ratificado em 15 de março de 1999. Para entrar em vigor, precisou que 55% dos países, que juntos, produzem 55% das emissões, o ratificassem. Assim entrou em vigor em 16 de fevereiro de 2005, depois que a Rússia o ratificou em novembro de 2004. Por ele se propõe um calendário pelo qual os países-membros (principalmente os desenvolvidos) têm a obrigação de reduzir a emissão de gases do efeito estufa em, pelo menos, 5,2% em relação aos níveis de 1990, no período entre 2008 e 2012, também chamado de primeiro período de compromisso.
*5 – Convenção Marco – acordo firmado durante a ECO-92, no Rio de Janeiro, que estabeleceu diretrizes para uma coordenação internacional contra o aquecimento global. Desde então, os países signatários da Convenção realizam encontros para discutir o assunto. No final de 2010, haverá a COP 16, em Cancun, México.
*6 ? Mitigação – intervenção humana com o intuito de reduzir ou remedir um impacto ambiental negativo.
Entrevista do Grupo Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Pobreza
Concedida a: Marcelo Valle
Editada por: Eliane Araujo e Renata Olivieri
Excelente a entrevista, o conhecimento nos fortalece principalmente quando se trata de direitos difusos. Parabéns a todos que participaram da mesma.