Uma parceria entre a Justiça Federal e a Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unes) tem possibilitado o financiamento de ações sociais voltadas para populações em situação de vulnerabilidade social por meio de verbas advindas da pena de prestação pecuniária, em que o juiz estabelece um valor em dinheiro. A chamada prestação pecuniária está sendo utilizada como pena alternativa, sob a tutela do Ministério Público Federal, incentivando o surgimento de projetos sociais destinados ao atendimento de crianças, jovens, adultos e idosos em situação de vulnerabilidade.Nesta entrevista, o juiz federal Marcelo Cardozo da Silva, explica o que é a prestação pecuniária, como funciona a parceria entre a Justiça Federal e a Unesc, e o que deve ser feito para que esta iniciativa seja replicada no resto do país. Ele defende que o Poder Judiciário não se limite a ser um repassador de recursos, mas assuma um papel de responsabilidade direta pelos projetos que fomenta e que financia, tornando-se protagonista da transformação social.Mobilizadores COEP – O que é a prestação pecuniária e quais seus benefícios? Esse modelo é utilizado com frequência no Brasil? Por quê?R.: A prestação pecuniária (pena em que o juiz estabelece um valor em dinheiro) é uma pena restritiva de direitos (uma pena alternativa), que, nos casos legais, substitui a pena privativa de liberdade. Nas condenações criminais cujas penas privativas de liberdade não sejam superiores a quatro anos (quando o crime, essencialmente, não envolve violência ou grave ameaça à pessoa), a prestação pecuniária, juntamente com a prestação de serviços à comunidade, é comumente utilizada, evitando-se, com isso, a segregação. Em realidade, cabe ao juiz escolher, de acordo com o caso concreto, quais serão as penas restritivas que serão utilizadas em substituição à prisão. A prestação pecuniária varia de um a 360 salários mínimos.
Mobilizadores COEP – O que é preciso para estimular a prestação pecuniária voltada para projetos sociais?R.: É preciso que interessados em realizar projetos sociais financiados com valores decorrentes das prestações pecuniárias se aproximem dos Juízos responsáveis pela execução penal, propondo parcerias e projetos técnicos, bem como explanando sua forma de realização e de acompanhamento dos resultados. Deve-se ter em mente que não se trata de uma simples destinação de recursos, mas da construção de algo novo, que venha a somar.
Mobilizadores COEP – No que consiste o projeto desenvolvido em parceria entre a Universidade Estadual de Santa Catarina (Unesc) e a Justiça Federal? Qual é seu objetivo?R.: A parceria entre a Justiça Federal e a Universidade do Extremo Sul Catarinense iniciou em 2009. Tem como principal objetivo a execução de projetos sociais destinados ao atendimento de crianças, jovens, adultos e idosos em situação de vulnerabilidade por intermédio da aplicação de recursos oriundos de prestações pecuniárias, transações penais e de suspensões condicionais de processos decorrentes de condenações ou acordos com os réus. A parceria possibilita a otimização dos recursos fugindo de uma abordagem assistencialista, permitindo uma postura mais ativa de transformação social. A universidade contribui em todas as etapas dos projetos, desde a elaboração, passando pelo acompanhamento dos trabalhos financiados, incluindo a verificação dos resultados obtidos.
Mobilizadores COEP – Quais são as pessoas beneficiadas por esta parceria? De que forma elas são estimuladas a participar do projeto?R.: Todos os projetos são desenvolvidos em Criciúma e eles têm como público alvo: a) crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social atendidos no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS Tereza Cristina); b) idosos da Casa de Repouso Festauer; c) autistas da Associação de Pais e Amigos do Autista, d) internos (ala feminina) do presídio Santa Augusta; e) adolescentes do Centro de Internamento Provisório.
Mobilizadores COEP – Quais são as iniciativas estimuladas pelo convênio? Poderia citar exemplos?R.: Atualmente, a parceria tem possibilitado a execução de seis projetos – Editoração Eletrônica e Inclusão Digital, Mãos que Criam, Comunicasom (oficinas de rádio, música e poesia), Cuidando de Si (alunos da universidade prestam atendimento a idosos, visando melhorias na autoestima, saúde e recreação), Integrar é possível (oficinas de artesanato), Aprendendo a Aprender (atividades socioeducativas) -, que têm como foco a inclusão digital, a capacitação profissional, o exercício da boa convivência, o fortalecimento de vínculos sociais, a ampliação da autoestima, a promoção da saúde e o desenvolvimento da aprendizagem. Como destaque recente, a oficina Mãos que Criam, que concilia capacitação profissional em técnicas artesanais, como patchwork, e acompanhamento psicológico das internas do presídio Santa Augusta, inaugurou uma loja em shopping de Criciúma (a ser cuidada pelas próprias internas).
Mobilizadores COEP – Quais são as características dos grupos beneficiados pelos projetos? Como é realizada a seleção dos grupos?R.: Os grupos atendidos, indistintamente, apresentam alto risco de vulnerabilidade social e a seleção dos beneficiados leva em consideração esta realidade. Em sua grande maioria, são crianças e adolescentes moradores da periferia pobre da cidade, apenados em processo de reeducação e reinserção social, e adolescentes que cumprem medidas socioeducativas decorrentes de atos infracionais. Nossos projetos contribuem, assim, com o esforço da sociedade para diminuir as diferenças, oferecer oportunidades e promover a inclusão social.
Mobilizadores COEP – A parceria vem dando resultados positivos? Qual é a sua avaliação? R.: Sem dúvida a decisão de utilizar os recursos em projetos sociais foi acertada. A parceria com a universidade e com as instituições onde são realizados os projetos é um sucesso. Atualmente, mais de 700 pessoas freqüentam nossas oficinas.
Mobilizadores COEP – Quais as principais contribuições do projeto para a sociedade? R.: Nosso compromisso é com a promoção social e a garantia de oportunidades para aqueles que a sociedade desamparou ou que, numa visão equivocada, acreditam na impossibilidade de virem a desempenhar novos papéis.
Mobilizadores COEP – O que poderia ser feito para replicar esta iniciativa para outros estados?R.: A estratégia adotada apresenta singularidades no âmbito do Poder Judiciário. Parte de uma concepção de que também a execução penal deva ser protagonista da transformação social ? verdadeira mudança de paradigma. O Poder Judiciário deixa de ser, assim, um repassador de recursos; assume um papel de responsabilidade direta pelos projetos que fomenta e que financia.Para tanto, é preciso alterar a própria concepção que muitas vezes o próprio Poder Judiciário tem de suas possibilidades. É preciso unir responsabilidade social com uma gestão diferenciada daquela comumente aplicada na distribuição dos recursos. Em vez de se destinar, como se faz hoje – muitas vezes, sem critérios claros de priorização e de necessidade – os recursos sem, ademais, praticamente nenhuma exigência de resultados, passa a caber ao Poder Judiciário, que deverá ter verdadeiros parceiros (como Universidades, por exemplo), promover as devidas seleções de público-alvo, desenvolvendo, então, em conjunto, projetos que possam atender as carências sociais constatadas.Dessa forma, ao invés de se promover uma destinação de poucos recursos para várias entidades, concentram-se esforços na construção e realização de projetos novos, todos tecnicamente desenvolvidos e continuamente acompanhados por todos os parceiros, sob a fiscalização do Ministério Público Federal.Com a estratégia adotada, o momento da destinação da prestação pecuniária deixa de ser instantâneo, sem nenhuma participação posterior do Judiciário. Nasce, com a postura empregada, em realidade, um vínculo do Poder Judiciário com a sociedade, que exige do Poder Judiciário contato social e acompanhamento dos trabalhos e dos resultados. A destinação das verbas fica perenizada, sendo acompanhada integralmente em todos os seus momentos até o atingimento do objetivo social.O modelo empregado é plenamente replicável, portanto, para isso, frisamos, é preciso uma alteração de concepção por parte do próprio Poder Judiciário acerca de suas possibilidades e potencialidades de transformação social.
Mobilizadores COEP – Na sua avaliação, iniciativas como essa podem ajudar a fortalecer os projetos sociais no país? Por quê?R.: Iniciativas como a que temos vêm a fortalecer os aspectos técnicos dos projetos sociais, permitindo uma atuação independente, já que há uma absoluta e desconectada falta de interesses outros de qualquer ordem (como interesses políticos).
Mobilizadores COEP – Como assegurar uma justa distribuição de verbas aos projetos sociais em desenvolvimento em cada estado?R.: Nossas iniciativas, como já expomos, não visam a gerar uma distribuição de recursos a projetos sociais já existentes, mas almejam a construção, o desenvolvimento e o financiamento de novos projetos.Já para a distribuição de recursos para novos projetos, reforço a ideia de parceria: o Poder Judiciário também deve passar a ser ator social de transformação, cabendo adotar uma postura ativa de dialógo, participando intensamente dos “cortes” de vulnerabilidade social que serão enfrentados com os projetos. É preciso, para que se realize esse processo de interação, aproximação dos interessados em desenvolver projetos sociais e abertura institucional por parte dos juízes responsáveis pela execução penal.
Entrevista para o Grupo Mobilização SocialConcedida à: Flávia MachadoEditada por: Eliane Araujo.