Beatriz Resende, professora da Escola de Teatro da UNIRIO e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),instituição associada ao COEP, fala a respeito da ascensão cultural da periferia brasileira. Segundo ela, esta emergência tende a ser definitiva no país, tendo em vista que a sociedade não mais se sente representada pelos modelos culturais ?oficiais? de tempos atrás.
Mobilizadores COEP – Em se tratando de Brasil, o que você considera periferia? E qual a relação entre periferia, centro e conflitos sociais?
R.: Designamos como ?periferia? ? e não apenas entre nós, mas também em países europeus, por exemplo ? toda camada populacional de baixa renda que vive em torno das grandes cidades. As desigualdades refletem-se tão mais claramente quanto mais próximos estiverem pobres e ricos. Por isso, as áreas próximas ou no interior das grandes cidades, como o Rio de Janeiro, são também as áreas de maiores conflitos sociais. Ou seja, como já estamos cansados de saber, quanto maior a desigualdade num país, maiores os conflitos sociais.
Mobilizadores COEP – A que você atribui o movimento de ascensão das culturas periféricas nos últimos anos no país?
R.: Primeiro ao fato de que, cada vez mais, os excluídos falam por eles mesmos. Os movimentos sociais dos anos 70 e 80 tiveram este grande objetivo: fazer com que as subjetividades emergentes ? mulheres, negros, gays e outros grupos ? se tornassem senhores de seu próprio discurso e conhecessem melhor sua importância e seu lugar numa sociedade democrática. A chegada da democracia ao Brasil foi dando a estes movimentos lugar de protagonismo nas manifestações culturais e políticas. Segundo: há, hoje, uma exaustão dos modelos culturais canônicos. As vozes ?oficiais?, aquelas legitimadas, seja pelo poder econômico seja pelo político, não repercutem mais. A juventude, sobretudo, cansou-se de velhas formas de manifestações culturais que não têm mais nada a ver com suas questões específicas, com sua vida.
Mobilizadores COEP ? Que manifestações culturais de jovens você destacaria hoje no Brasil? Por quê? O que elas revelam?
R.: Um bom exemplo é o graffitti. Começou como uma espécie de protesto, revolta. Hoje, é usado até pela prefeitura e outras instituições que convidam os artistas grafiteiros a ocupar paredes externas de escolas e outros lugares. Na música e na dança há vários exemplos de criação cultural que se impõe, se espalha por toda a cidade. O exemplo dos grafiteiros é bom porque mostra uma via de mão dupla: os jovens absorvem a estética visual da cultura de massa e de artistas plásticos e devolvem à cidade modificada pelo seu gosto pessoal.
Mobilizadores COEP – O que contribui para que atores sociais, anteriormente excluídos, assumam papéis centrais nas produções jornalísticas e artísticas?
R.: Em virtude desta mesma exaustão de modelos, abriram-se possibilidades diversas para que manifestações culturais vindas da periferia encontrassem espaço para divulgação de suas novas propostas. Além disso, os vários grupos produtores de cultura vêm se organizando de forma profissional e combativa. É claro que o apoio de ONGs e ações governamentais, quando acontecem, são importantes. O AfroReggae, por exemplo, é uma organização que tem apoio de empresas públicas e parcerias governamentais em suas ações sociais, o que é muito importante para a continuidade do trabalho que desenvolve.
Mobilizadores COEP – Especificamente falando de comunicação, de que forma mídias alternativas ajudam a questionar idéias preconcebidas e a estimular novas estruturas de pensar e agir na sociedade?
R.: A busca de uma hegemonia cultural é legítima e tem encontrado eco. A periferia, por meio da ação cultural, passa a ter um papel de importância, um reconhecimento que a torna um interlocutor político no qual se precisa prestar atenção. As mídias alternativas têm sido decisivas em alguns campos. Cito, por exemplo, as rádios comunitárias, que liberam novos artistas da dependência de ?jabás? e outras práticas por muito tempo existentes. No campo da literatura, por exemplo, o uso de novas tecnologias como a da internet tem sido fundamental para a eliminação de distâncias ? centros e periferias desaparecem na web ? e para a independência de autores que colocam seu ?produto? para circular sem precisar mais esperar por decisões das editoras. Com isso, inclusive, tornam sua criação mais conhecida pelos grupos editoriais.
Mobilizadores COEP – Você acredita que os brasileiros estão assumindo novas identidades culturais, mais heterogêneas, menos discriminatórias, ou esta tendência está concentrada em alguns grupos da sociedade?
R.: A vitória de iniciativas como o grupo teatral ?Nós do Morro?, com 20 anos de atuação, da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, a ação política de grupos musicais como o AfroReggae, a sofisticação da Companhia Étnica de Dança, sediada no Morro do Andaraí, comprovam a importância dessas ações culturais. Além disso, o trabalho com grupos artísticos do interior do país mostra que qualquer apoio à periferia multiplica-se rapidamente. Evidentemente há sempre resistências ao novo e ao democrático, como mostra a França com o temor que revelou diante do diferente, do periférico, do estrangeiro, durante os protestos recentes nas ruas de Paris, quando jovens da periferia, especialmente imigrantes, negros e de origem árabe reivindicavam melhores condições de educação, de vida. O resultado das últimas eleições francesas mostrou a defesa do conservadorismo e a recusa do novo. Enquanto isso, a música francesa, por exemplo, só se renova pelas vozes dessas mesmas minorias. Mas penso que, hoje, a emergência de novas possibilidades culturais é definitiva, especialmente no Brasil. Todas as expressões culturais só têm a ganhar com isso. Evoco ainda o caso francês, pensando no país que mais influenciou nossa cultura literária: quem pode indicar, neste momento, um autor francês decisivo mesmo para a cultura letrada?Entrevistaconcedida à: Renata OlivieriEdição: Eliane Araujo
Esperamos que tenham gostado da entrevista. Lembramos que o espaço abaixo é destinado a comentários. O entrevistado não se compromete a responder as perguntas aqui postadas.